quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Setembro, 39 (texto do blogueiro)



Voa incansável a cotovia ao esplendor do reluzente sol do meio dia. Observa com amor o jovem Henryk,descansante no colo de sua querida Anezka, uma pequena de dezessete anos, de olhos azuis e cabelo rubros como o sangue que corre em suas veias. Ele observava o passar das nuvens, ela olhava o encaracolar dos seus cabelos castanhos lisos.

Os dois não conversavam uma só palavra, trocavam gemidos e sorrisos, raramente alguém fazia um comentário, e absortos, nenhum dos dois se entendia. 

Ela, ela era tcheca, saíra de sua bela vila próxima a Praga, no meio da Boêmia unicamente para estudar, Anezka era uma as bolsistas que vieram a Poznan para aprender filologia, embora o jovem Henryk sequer soubesse o que era isso.

Henry, então com dezoito, tinha olhos penetrantes e físico invejável, estudava engenharia na mesma universidade de Poznan e se interessava por dança e teatro (sabia dançar como ninguém a mazurca e a citar trechos de Shakespeare), mas naquele momento estava absorto com o cantar de sua namorada.

— Querida luz no meio do céu/ Diga-me algo que me revele/ quem é meu amor/ quem é minha paixão/ Estou só, mas estou viva...
Era modinha boêmia bem antiga que nunca Henryk escutara, mas que o fazia sorrir com sua singela homenagem aos antepassados de sua querida amante.
Ali, naquele bosque afastado, naquela parte à sombra, próxima às margens de um gigantesco rio azul-marinho, Henryk recitava poesia, ao som dos rouxinóis cantores de modinhas monótonas e lindas de se ouvir. Ali, com sua namorada a cheirar o exalar das rosas, o zumbido das abelhas, recitava Hamlet.
— Ser ou não ser... Eis a questão. Que é mais nobre para a alma: suportar os dardos e arremessos do fado sempre adverso, ou armar-se contra um mar de desventuras e dar-lhes fim tentando resistir-lhes? Morrer... dormir... mais nada... Imaginar que um sono põe remate aos sofrimentos do coração e aos golpes infinitos que constituem a natural herança da carne, é solução para almejar-se. Morrer..., dormir... dormir... Talvez sonhar... É aí que bate o ponto. O não sabermos que sonhos poderá trazer o sono da morte, quando alfim desenrolarmos toda a meada mortal, nos põe suspensos. É essa idéia que torna verdadeira calamidade a vida assim tão longa! Pois quem suportaria o escárnio e os golpes do mundo, as injustiças dos mais fortes, os maus-tratos dos tolos, a agonia do amor não retribuído, as leis morosas, a implicância dos chefes e o desprezo da inépcia contra o mérito paciente, se estivesse em suas mãos obter sossego com um punhal? Que fardos levaria nesta vida cansada, a suar, gemendo, se não por temer algo após a morte - terra desconhecida de cujo âmbito jamais ninguém voltou - que nos inibe a vontade, fazendo que aceitemos os males conhecidos, sem buscarmos refúgio noutros males ignorados? De todos faz covardes a consciência. Desta arte o natural frescor de nossa resolução definha sob a máscara do pensamento, e empresas momentosas se desviam da meta diante dessas reflexões, e até o nome de ação perdem.
— Lindo, meu querido, lindo.
— Minha querida, nada é mais lindo do que olhá-la como eu olho e saber que esse momento estará marcado em minha alma.
Sobre aquele gramado, ao pé daquela cerejeira, próximos aos ciprestes e choupos, os dois se beijaram, em uma memorável cena romântica, mas aquilo não parecia que ia durar.
Do seu veículo, um Tatra preto sem muitos luxos, Henryk escutara com tristeza e atenção o noticiário do rádio.
Tocava a Polonaise Heróica de Chopin enquanto o narrador, com uma voz estridente e incrivelmente cansada, anunciava:
— Hoje, o nosso querido presidente de nossa amada,  a gigantesca e heróica Polônia, o excelentíssimo senhor presidente  Ignacy Mościcki, confirmou através de nota oficial o impensável: A perfídia nazista parece não ter fins, hoje o Exército Alemão, com uma ousadia jamais comparada na história, adentrou na fronteira de nossa querida Nação. Eles nos oferecem escravidão e submissão, eles oferecem o fim da Polônia como Nação. Devemos aceitar isso? Não! Você, jovem, mostre-se diante os outros, destaca-se dentre os covardes, é hora de lutar por sua pátria. É hora de lutar por nossa Grande Polônia!
Não surtira efeito sobre si aquela transmissão, mal acompanhara o noticiário e não acreditava mesmo assim em uma só palavra naquele noticiário, apenas queria saber de sua querida Anezka, e o modo como seus cabelos esvoaçavam ao vento.
— Como queria que isso nunca acabasse, minha querida.
— Eu também.
— Venha, minha querida, case-se comigo. Sei que somos jovens, mas quem se importa com isso?
— Henryk...
— Não, case-se comigo, por favor — Sacou um estojo preto de feltro e ao abrir a caixinha, mostrou a aliança dourada.
— Mas nós somos tão jovens!
Ele era tão irresponsável assim mesmo, não pensava no futuro, não pensava que ambos não tinham um emprego, uma casa, nem mesmo padrinhos! Mas aquele rapaz, de cabelos castanhos bem cortados, olhos brilhantes, nariz longo e traços de camponês com poeta louco, trazia consigo a irresponsabilidade que talvez sua namorada precisasse.
— Não, não posso me casar, não agora. Eu o amo, eu o amo no fundo do coração, mas, mas não é o momento. Eu não estou bem.
— Há outro homem, não há?
— Não...
O ciúme imprudente percorreu sobre sua pele como um veneno de aranha percorre sobre a vítima, afastou-se e disse:
— Se não me ama, então me diga, mas não venha com mentiras.
Caminhou em direção à macieira próxima, onde, encostado a um galho, notou uma inscrição no tronco da arvóre:
“Amar é uma chama que desatina sem doer”
Não sabia de quem era aquela frase, mas sabia que aquele sentimento o varria dos ciúmes, com um olhar tristonho, voltou-se para sua querida.
— Anezka...
O cantar dos passarinhos, o brandido da correnteza do rio, o ruído dos galhos ao vento, tudo isso fora desconsiderado ao se notar um retumbar pesado se aproximar daquele pequeno campo nos arredores da cidade.
— Achtung! Geben Sie für einige zivile uns sagen, wo ist Poznan.[1]
Eram com certeza alemães, o que os alemães faziam, ali, tão próximo daquele bosque? Henryk não sabia, mas não queria que algo ruim acontecesse.
— Vá, se esconda dentre os arbustos!
— Mas e você?
— Vá logo!
A jovem garota correu em direção a um punhado de arbustos, junto a foz do rio e escondia, observava com atenção o seu namorado ser localizado pelos nazistas.
— Achtung, Polnisch Schwein!
O jovem engenheiro, com um instinto de heroísmo exarcebado, demonstrou-se corajoso e um tanto estúpido, ao levantar-se e seguir em direção ao soldado da SS.
— Nein!
Com um estreita rajada do cartucho de sua MP40, o SS fez com que caísse aos seus pés, corroído de sangue, o rapaz que tinha um futuro na frente, um futuro próspero como engenheiro, destruira por vez qualquer chance de ter se casado com a mulher que amava e com ela ter filhos como qualquer homem normal.

Ali, agonizava, com as tripas de fora, o jovem enquanto o SS se empenhava em humilhá-lo enquanto o pisoteava com o seu reluzente coturno de couro negro.
— AH! — Suspirou Aneska, revelando-se assim para o SS que pisoteava seu querido amor.
— Aparreça!!  Se não eu atirrar! — Disse com um sotaque profundamente carregado, ao apontar a metralhadora.
Com as mãos ao Céu, Aneska implorava que não a matasse, que ela era órfã e que já haviam-lhe tirado a única pessoa gentil e amável que amara em toda a vida.
— Eu não vai matá-la! Mas você ter que fazer algo por mim.
O que ele propunha era infame, ele desejava aproveitar-se da inocência da jovem a fim de conseguir prazer para si. Ele desejava retirar-lhe a sua castidade tão guarda a sete chaves, que nem mesmo o seu finado namorado ousara tocar, sem pedir-lhe em casamento.
— Quer dizer...
— Ja.
Ela sentiu uma repulsa gigantesca por aquele soldado barrigudo, dos dentes podres e olhos diabólicos, sentiu dor por seu namorado, sentia medo de morrer, mas não cogitava um só momento ser possuída por esse ser estranho que matara o único homem que a amara em vida.
Tacirtuna, ponderava as possibilidades, pensava com cautela, e após tanto pensar, decidiu algo não cogitado.
               
Caminhou de costas, dando dois passos atrás e sob a mira da metralhadora correu em direção ao rio Warta, o gigantesco afluente do rio Oder, onde lá se jogou para ser consumida pelas lágrimas da terra natal. A Polônia chorava pelas lágrimas de sua gente, pelo seu sangue derramado e pela dor trazida por aqueles hostis.

Aneska se deixou consumir por pensamentos tristonhos enquanto era consumida pela límpida água cristalina daquele rio observante na planície amarelada da Polônia Central, mas pensava que agora iria ao encontro de seu amado, que agora os dois se veriam juntos para toda a eternidade, e ali ela repousou seu últimos segundos enquanto o borbulhar de suas narinas desaparecia dentre as gotas de água. Morreram os dois pela Polônia.

“Mas,que luz é essa que alí aparece, naquela janela?
A  janela é o oriente,e Julieta o sol.
Sobe,belo astro,sobe e mata de inveja a pálida lua.” Shakespeare.


Minha homenagem aos seis milhões de poloneses que morreram durante o curso de toda a Segunda Guerra (que funebremente  é relembrada hoje, em seu aniversário, dia 1° de setembro)

[1] Alto! Procure algum cívil que nos diga onde fica Poznan.

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