domingo, 26 de maio de 2019

Félicette, a primeira gatonauta


           Em 24 outubro de 1963, os pesquisadores aeroespaciais franceses lançaram uma gata de rua, Félicette, ao Espaço. Os russos já tinham lançado Laika no Sputnik II, em 1957 e os americanos tinham lançado dois chimpanzés ao cosmos, no mesmo período.



         Os franceses, no contexto de negação tanto aos americanos quanto aos soviéticos, resolveram desenvolver uma bomba atômica própria e um programa espacial próprio. O módulo subiu 210 quilômetros acima da Terra no foguete francês Véronique AG1, voando alto no deserto do Saara argelino. Félicette voltou quinze minutos depois, já condecorada como heroína de sua nação.
            Após seu pouso, cientistas franceses do Centro Educacional para Aviação e Pesquisa Médica (CERMA) estudaram as ondas cerebrais de Félicette para ver se elas tinham sido alteradas na sua viagem. Embora não se saiba muito sobre suas descobertas, ou sobre o destino final de Félicette, o CERMA disse que ela fez uma “contribuição valiosa para a pesquisa”.     

A tentativa dos franceses de entrarem na corrida espacial e a bomba H tem muita a ver com as desavenças de  De Gaulle com o Eisenhower (depois com o Kennedy) no início dos anos 60; Os franceses ainda achavam que eram uma grande potência e deveriam ser tratados como tal no plano diplomático mundial.
       O presidente De Gaulle era tão ousado que tirou a França da OTAN em plena Guerra Fria , refletindo os atritos que os franceses tinham com países anglófonos, primeiro a Inglaterra depois os Estados Unidos. Com a Guerra da Argélia e da Crise do Canal de Suez, as relações entre a França e os Estados Unidos pioram e os franceses acabam construindo conversações com o bloco soviético. O programa espacial francês inclusive pode ser relacionado à tentativa de fazer misseis para demonstrar aos americanos (e também aos soviéticos) o poderio tecnológico francês.

                                                 Vídeo sobre o voo de Félicette

        A Crise de Suez e a Guerra da Independência da Argélia mostraram que o orgulho francês permaneceu intacto mesmo após a humilhação dada pela Alemanha Nazista na Segunda Guerra, mas os soviéticos e americanos mostraram que a Europa não dava mais as cartas no mundo e aos poucos a França percebia que era uma idiossincrasia  manter um programa espacial dispendioso enquanto as colônias africanas se tornavam independentes.

          Félicette foi tratada como heroína pelo povo francês e foi lembrada como uma peça importante do orgulho nacional nos anos 60, mas o destino foi trágico e ela acabou esquecida. Logo após a viagem, a gatonauta já apresentava sequelas, ela acabou ficando cega e foi exposta a níveis de radiação fora do recomendado durante o voo orbital; Em virtude disso, ela sofreu uma eutanásia para que o seu cérebro fosse dissecado pelos cientistas aeroespaciais.





Sobre a diplomacia francesa no pós-Guerra, indico a série Au service de la France, disponível na Netflix, que mostra a Guerra Fria sob a perspectiva francesa.




A necrofagia do lucro


          Além dos bancos lucrarem ao acabar com a previdência social (aumentando a demanda por previdência privada), eles ainda querem lucrar sobre os aposentados pobres que não poderão aposentar nem pelo INSS.


          A ideia é fazer com que esses aposentados hipotequem suas casas e recebam um valor mensal do banco, no final, quando falecerem, o banco toma a propriedade dos idosos e joga no leilão.


          Os bancos literalmente viraram corvos, estão explorando os cadáveres de milhares de trabalhadores brasileiros para terem lucro sobre a pobreza na velhice; Os mesmos bancos que financiam a reforma da previdência, os mesmos bancos que cobram juros absurdos quando você entra no cheque especial, os mesmos bancos que devem bilhões ao governo em impostos e tributos da própria previdência social.


              São esses bancos, os "investidores", os representantes do "Deus mercado" que vão ficar com as suas posses na sua velhice. Admirável lucro novo, que novos tesouros nos trazes...







Não vai sobrar ninguém


Não vai sobrar ninguém


No Brasil,

Tiram a nossa paz na velhice,

tiram os nossos sonhos na juventude,

roubam nossos direitos quando adultos.



Nos dão veneno achando que é doce,

quando podemos comprar comida.

Cobram-nos ágios absurdos

para roubar as nossas posses.



Roubam a merenda de crianças,

poluem a nossa água,

nos extorquem novos impostos.



E onde está a sociedade?

Inerte.

Onde está a justiça?

Nos prende.

E a polícia?

Nos mata.



Não tem como sobrar alguém desse jeito,

é mais seguro viver em Marte

 do que tentar a sorte no Brasil.

A República do Shallow Now

          "A República do Shallow Now
         (e também do Golden Shower)



         Diante dos últimos períodos de conturbadas relações sociais, o país que outrora dizia ter acordado agora assiste bestializado a estupidez sendo impregnada em todos os aspectos da cultura, sociedade e política.



         Isso é uma das heranças da nossa cultura política messiânica que ao mesmo tempo que procura heróis, salvadores da pátria, cria a autofagia dos seus próprios ícones: Antes foi Getúlio Vargas, depois foi o Médici, Collor, depois o Lula, agora Jair Bolsonaro. Ao mesmo tempo que o brasileiro pratica a idolatria, ele é iconoclasta;



          Contudo, o ícone criado pela classe média brasileira é feito à sua imagem e semelhança, um indivíduo sem refinamento intelectual, que tem posicionamentos absurdos e não consegue ter a raciocínio minimamente lógico para a suas próprias ideias, como diria Sérgio Buarque de Holanda, o brasileiro é um ser cordial, não por cordialidade ser entendida como educação ou polidez, pelo contrário, cordial no sentido do original, em latim, de indivíduo movido pelo coração, não pelo raciocínio crítico.



             Foi exatamente isso que moveu as pessoas que saíram hoje na defesa de Jair Bolsonaro, não foi raciocinalidade de fazer a análise desse governo que se arrasta por quase um semestre e não faz nada de construtivo para a política brasileira, que não trouxe benefícios à educação, à saúde ou ao combate à corrupção, pelo contrário, só trouxe malefícios. Os que foram protestar hoje foram movidos pelas emoções, ao invés do coração, foram movidos pela bílis, pela raiva e hostilidade aos outros. Assim é o também o governo Bolsonaro, movido pela bílis.



          O brasileiro continua desnorteado do seu papel de protagonista no processo democrático, continua a enxergar apenas aspectos pontuais sob um prisma raso. E o que mais incomoda aos olhos vistos é que se dizem patriotas, mas louvam bandeiras estrangeiras.



          A frustração no futebol acaba se tornando frustração política e cria-se mágoas e ressentimentos que alimentam a retórica do ódio que vivenciamos hoje. Nisso vemos uma série de absurdos germinados na cultura da mediocridade:



         Eis que me lembro do Nelson Rodrigues e o seu conceito: "Complexo de Vira-lata", o brasileiro envergonhado da sua derrota no futebol na Copa de 1950 (tal como agora foi na Copa de 2014 e tbm na de 2018) toma para si a frustração e introjeta um complexo de inferioridade em relação às nações do dito "mundo desenvolvido".



         Temos ainda que lidar com o sofrimento de ver pessoas comuns criando hostilidade aos intelectuais, criando as mais absurdas pseudoteorias possíveis para explicar suas próprias narrativas de mundo e enquanto isso o país afunda a olhos vistos no atoleiro da corrupção.



          Hoje observamos do tupiniquim middle class que ele louva os americanos, mas não sabe falar uma frase decente em inglês. Vemos ministros de estado falsificarem sem qualquer tipo de embaraço diplomas universitários, vemos pessoas cultuarem (de novo o messianismo) um youtuber como se fosse filósofo, sendo que ele nem concluiu o primário;



          E como o brasileiro médio defende isso? Preso na sua bolha social, interagindo apenas com quem referenda as suas ideias, assistindo a TV aberta até o cérebro derreter, tomando como verdades fake news de Whatsapp, uma legião de idiotas acaba se tomando como um grupo de sábios e notáveis.



         Enquanto não se tem consciência do que está acontecendo, o brasileiro está imerso na sua própria mediocridade: a economia patina, o desemprego aumenta, a diplomacia brasileira tornou-se subalterna aos interesses americanos e a educação (como assim?) está se tornando arma de chantagem de meia dúzia de jagunços para aprovar a reforma da Previdência. E sim, Reforma da Previdência, quem fala que tem que reformar a previdência são pessoas que já estão aposentadas ou são pessoas estúpidas que não se importam que elas próprias serão afetadas com o corte direto nas suas próprias aposentadorias.



           É por isso quando entramos nesse terreno perigoso de culto à mediocridade, a política se tornou um ofício pornográfico, com escândalos, baixarias e absurdos incentivados pelo próprio governo, criando uma escatologia resumida pela expressão do próprio presidente: "O que é golden shower?"



             E nisso a necropolítica neoliberalista se alimenta do fervor ideológico dos olavistas para alimentar os interesses do mercado financeiro, dos rentistas, para a reprodução de seu capital especulativo em detrimento do trabalho árduo do brasileiro. Para desvirtuar o foco principal do brasileiro aos problemas econômicos o olavismo incentiva e alimenta o ódio às minorias e aos opositores políticos, e por extensão, o governo desse anteparo ideológico para incentivar a construção protofascista (ou já posso chamar de fascista) do governo Bolsonaro.



            E falam com nenhum embaraço que apoiam o presidente que vai cortar verbas na educação, que vai permitir que idosos não se aposentem e sejam a trabalhar até morrer e que aceitam de bom grado que o dólar dispare. Eles aceitam que a gasolina também chegue a níveis estratosféricos, que todos tenham porte de arma (inclusive milicianos) e que o desemprego aumente para alimentar a falsa sensação de "eliminar o perigo vermelho".



            Retórica pura e estúpida.

             Quem criou isso foi Olavo de Carvalho com sua escolástica messiânica e sem profundidade alguma, em um esforço de utilizar os autores clássicos, como Platão, Aristóteles, e também conservadores, Olavo de Carvalho (que antes era visto como piada) se tornou um guru de uma extrema-direita que não está disposta a ouvir outras narrativas que não sejam as suas.



            Juntos e Shallow now.

            Numa tradução tosca e descabida da música de Nasce uma estrela, Paula Fernandes traduziu tudo, a medíocre tentativa do brasileiro de classe média em se portar como "esclarecido e educado" com um provincianismo descarado ao cultuar de forma acrítica a cultura norte-americana; A sua total falta de percepção da realidade, sua falta de capacidade cognitiva para entender o mundo ao seu redor e a sua falta de profundidade intelectual até nos debates políticos (e conspiratórios) que ele alimenta.



            Juntos e Shallow now (rasos agora)"
                                                                                         Scriptor Inquietus

         

sábado, 25 de maio de 2019

Aço Incandescente III

        Por entre as verdes folhas dos ciprestes
       O uivo temeroso irrompia a falena.
       Ouça bem, o que digo, aedo
       Que bem vivo é tremor do medo
       Que ressabia sobre nossos olhos.

       A toque de fuzis, na intensa saraivada
       Jaz no chão gelado do solo russo
       O sangue de nossos camaradas.

       Seus olhos brilhantes estão opacos,
       as cores vistosas do sangue e do medo
       cortam a extensão desses campos.
       Corvo Negro está próximo."
                                                 Abraham Goldstein, 1918.

      Era uma noite de sábado quando Malinovsky foi acordado contra a sua própria vontade, desabou no chão contrariado enquanto Goldstein e Markus arrumavam suas trouxas de campanha, o céu estava impronunciável, sem nuvens, sem que pudessem haver adjetivos para quantificar aquela noite tão assombrosa, aos poucos começou a cair a chuva, roubando o calor dos soldados que se acomodavam junto aos trilhos do trem, a umidade fria fazia com que alguns tossissem. O chão de barro passou a corromper e enxovalhar as botas dos soldados, enquanto o comissário Petrov lia as ordens de Moscou através do telegrafo.

      Tomado por um completo desrespeito quanto a sua felicidade do destino, Malinovsky pensava se iria durar muito até que a guerra tirasse aquela noite cinzenta e torna-se tudo diferente... Não demorou.

      Os seus olhos viam de longe pequenos vultos correrem pela noite, quando de repente o fumo da pólvora resplandeceu sobre o ar, o comboio estava sendo atacado. Os tchecos chegaram mais cedo, as artilharia escondidas por trás das árvores começaram a quebrar o aço do trem blindado; o foguista, apressado, começou a dar marcha ré para salvar ao menos o trem, os homens tentaram correr para dentro da composição, não houve tempo. Os cossacos começaram a trotar com os seus sabres encurvados pelos flancos, enquanto os tchecos corriam das valas com rifles na mão, não havia nenhuma sombra de conforto naquela situação.

    Malinovsky se jogou no chão, Markus e Goldstein tentaram correr, mas foram contidos diante da fuzilaria. Com o rifle Mosin Nagant engatilhado, o jovem rapaz tentava ver no escuro algo que pudesse atirar; a noite estava tão escura que ele não entendia como os tchecos conseguiam enxergar, foi quando o comissário abriu um caixa com dinamites e começou a acender o pavio com o isqueiro. A toque de poucos minutos, explosões e clarões cortaram o campo aberto e estilhaçaram com o ataque dos tchecos.

     "AO ATAQUE!", gritou o comissário Petrov com um revólver Mauser nas mãos e uma espada na outra. Alguns homens corajosos seguiram atrás do comissário, Malinovsky foi um deles, com o rifle nas mãos ele disparava a esmo; as peças de artilharia se moviam e recalibravam seus canos, tinha que ser rápido, antes que os cossacos chegassem, os soviéticos tinham que rechaçar o ataque à ferrovia.

     Os cavaleiros eram doze ao todo, uma tropa irregular, de homens barbados com ushankas de feltro felpudo, Malinovsky se escondeu atrás de uma pedra e começou a atirar, acertou um cossaco à sua esquerda enquanto outro cossaco ressabiava o seu sabre sobre o pescoço de um companheiro. Diante do caos, Petrov se embrenhou na mata e entrou em luta corpo a corpo com um soldado tcheco escondido debaixo de um tronco de árvore. Aos poucos, os oitenta soldados que sobraram, seguiram o exemplo dos dois e tomaram a iniciativa no ataque noturno; A lua vez por outra aparecia e iluminava a floresta, naquela fronteira entre a Europa e a Ásia, podia-se ouvir os lobos uivando à distância; Não demoraria muito para eles farejarem o cheiro de sangue.

       Markus correu raivosamente na direção de dois Brancos que disparavam indiscriminadamente nos camaradas feridos junto à linha do trem, enquanto os soldados agonizam de dor, os dois patifes se esforçavam pra prolongar a dor, atirando em suas pernas; Malinovsky ao perceber que Markus iria ser atacado por um tcheco, pulou em cima de um cavalo dos cossacos e atropelou o tcheco sem cerimônia.

       Goldstein tremia de medo quando de repente um bala de canhão caiu no jovem rapaz que estava se escondendo ao seu lado, com as tripas expostas, o garoto produzia um grunhido tão horrendo que ensurdeceu a todos no campo de batalha, foi quando o pequeno Abraham pegou o seu rifle e correu em direção à floresta com a baioneta descoberta.

       "Camaradas, protejam-se, não deixem que os canalhas os peguem desprevenidos", gritava Petrov.


        O comissário tropeçou numa pedra e caiu no chão acidentado de um morro, enquanto se arrastava pelo relevo irregular, ele servia de alvo fácil para os tchecos que correram em sua direção.

       "Cuidado, comissário!"

       Foi quando Markus entrou na frente e levou duas balas nas costas, não teve muito tempo, Petrov só pode ver o rosto do jovem letão cair pesadamente na sua frente, seus olhos exprimiam dor, aquilo chocou o comissário, que ainda impactado pela cena, correu para pegar o rifle e disparar contra os emboscadores. A escaramuça produzia resultados miseráveis, mas finalmente o trem blindado contornou a floresta e achou uma posição confortável de tiro, pela retaguarda dos Brancos, as canhoneiras estouravam os tímpanos e quebravam a defesa dos Brancos. As peças de artilharia explodiam ao impacto das cargas de fogo  e o aço incandescia com o calor, queimando a carne dos artilheiros inimigos. O cheiro da carne e do sangue tomou o campo de batalha, os tchecos perceberam que estavam em menor número e começaram a fugir, os cossacos tinham sido liquidados em pleno campo de batalha, Corvo Negro, o comandante Branco gritava para os seus homens voltarem, mas era ignorado, mais do que nunca, aquela tinha sido uma mostra da coragem dos bolcheviques contra os Brancos.

        Neste ataque durante a madrugada cinzenta, diante da cortina de fumaça, Petrov viu entornar o caldo vermelho da Revolução, em plena ebulição o vento frio cortava os seus ossos e beijava as têmporas de seus homens, Petrov tinha perdido ao todo vinte e cinco homens, os Brancos quarenta e três, havia o perigo de ter mais ataques durante a madrugada, foi quando ele gritou:

     "Vamos voltar para o trem, está muito arriscado para ficarmos ao descoberto; Amanhã chegamos a Noviy derevno".


       E assim foi o dia 27 de junho de 1918.



terça-feira, 21 de maio de 2019

Aço incandescente II

         Esperanças e medos


         "Todas as vezes que penso na grandeza desses dias, penso em Maiakovsky:
                'Camaradas, somos um rochedo de granito,
                 Os bandidos da Entente arremessam-se contra ele
                 Mas nada abaterá a Rússia Soviética
                 À esquerda, à esquerda, à esquerda!"   (Nikolai Petrov)


        Dia 25 de julho de 1918

        Desde a tomada triunfal de Petrogrado e Moscou no final do ano passado as coisas ficaram cada dia mais complicada, a Revolução teve que encarar logo cedo a sanha do imperialismo e os nossos inimigos espoliaram de nosso jovem país a Ucrânia, a Bielorrússia e os países bálticos. Na Ucrânia, o populismo ameaça o sucesso da revolução no campo e aos poucos os bandidos de Krasnov e Kolchak se dirigem à nossa capital, Moscou.
         Bukharin sugeriu a evacuação de Petrogrado que corria risco de ser tomada por Yudenich e Wrangel, os alemães que tomaram Pskov e Minsk das mãos de Trotsky agora brigam contra os cossacos ucranianos; Krasnov avança sobre o Don e infelizmente estamos no seu encalço, vivemos em função dos trilhos: Comemos sobre os trilhos, dormimos sobre os trilhos, bebemos sobre os trilhos, atiramos sobre os trilhos e morremos sobre os trilhos, a locomotiva é a nossa única proteção em território hostil, os camponeses não confiam em nós e quando falo que sou comissário, alguns correm com os seus ancinhos em minha direção.

        Percorremos toda a região do Volga, corremos por Kazan, Simbirsk, Oremburgo e agora caímos na Sibéria, no meio desse impasse; Temos que impedir que os tchecos de Kolchak se juntem aos cossacos de Krasnov, a tarefa é difícil e tememos insurreições dos kulaks de Iaroslav. Encontrei- me ontem com três rapazes vindos de Petrogrado, faz tanto tempo que não tenho notícias do oeste que senti-me renovado ao encontrar esses rapazes no vagão do trem em direção à Sibéria. Um deles era mais ativo, um letão chamado Markus, com olhos meio porcinos e rechonchudo, o outro era um judeu pequeno e misterioso, chamado Goldstein e o terceiro era um jovem rapaz chamado Malinovsky, os três recém alistados e estavam em primeira missão contra Kolchak.

        Malinovsky me confessou que o verdadeiro motivo para ter se alistado foi a fome em Petrogrado, a situação anda tão alarmante que as rações de pão foram reduzidas para 200 gramas por dia; Boris Smirnov e eu nos reunimos no vagão principal para planejar a estratégia do cerco às forças de Krasnov, esses dias andam tão corridos, que fumo um cigarro atrás do outro. Um telegrama de Moscou chegou logo a tarde com más notícias, Trotsky mandava um memorando falando que nossas forças são equivalentes à metade das forças de Krasnov e nossos reforços não chegarão a tempo para enfrentar Kolchak. A Revolução corre perigo e como comissário tenho um papel importante a desempenhar, mesmo que isso resulte no fim da minha própria vida.

       Vladimir Ilyich me confiou essa missão e tenho a obrigação de retribuir o voto de confiança, assim como enfrentamos a cavalaria de Krasnov no passado, agora correremos com o último homem que tivermos disponível contra os sabres encurvados dos cossacos. A guerra é uma barbaridade para quem tem consciência que todos nós somos irmãos de sangue, mas se for o preço para a nossa própria liberdade, é um valor muito pequeno a se pagar; Juntos nós seguimos cada mais em direção à revolução mundial.

                                                           Nikolai Petrov, comissário do 2° Corpo do Exército Vermelho".


       Petrov saiu de  sua cabine na parte da frente do trem e seguiu em direção ao samovar, próximo aos assentos dos soldados, era da sua natureza ignorar a hierarquia, desde o tempo em que fora marinheiro do Encouraçado Potemkin, e hoje não seria diferente: serviu duas xícaras de chá de amoras e entregou para o grupo de Petrogrado. Markus e Malinovsky agradeceram, Petrov voltou ao samovar e serviu um pouco de chá para si e para Goldstein.

       "Camaradas, devemos estar chegando a Belyi derevno ao amanhecer, recomendo que vocês aproveitem ao máximo a noite de hoje para descansar.", disse Petrov.

       "Finalmente! Eu não aguento mais sacolejar nesse trem, mais um pouco e eu começo a vomitar de novo", disse Goldstein.

       "Você terá muitos motivos para vomitar amanhã, camarada Goldstein, quando você ver um dos seus companheiros ter as tripas arrancadas pela baioneta, a primeira reação vai ser querer vomitar. Se engana se você acha que o seu impulso vai ser pegar no rifle e atirar, a guerra é bem mais inconsciente do que isso".

         " A quanto tempo está na linha de frente, Nikolai Ivanovich?", perguntou Malinovsky.

        "Desde Moscou, Bukharin e eu lideramos a tomada do Kremlin dos cadetes. Quase perdemos, muitos homens bons, muitos bons soldados morreram durante aquela semana. Depois eu fui enviado para a Ucrânia e depois para o Don, Trotsky gosta de usar o Segundo Exército para tapar os buracos que ele cria", respondeu Petrov.

        "Você conhece o camarada Trotsky? Como ele é?", disse o jovem Markus com evidente curiosidade.

         "Se de longe ele parece inacreditável, de perto ele é realmente inacreditável, no mal sentido. Trotsky é um poço de arrogância, camarada, quando o conhecerem verão que eu falo a verdade."

        O semblante severo de Petrov escolhia em seus olhos o enigma de sua própria tristeza, a guerra estava tomando o seu preço, Svetlana, sua esposa, tinha mandado uma carta falando que Olga pegou uma coqueluche e o médico não podia dar maiores esperanças, o jovem comissário comunista não acreditava em milagres e tomado por um pessimismo genuíno se preparava para o pior, sentia-se perdido,  mas apegado ao seu próprio relógio, ele meditava rapidamente sobre o tempo. Será que ainda haveria tempo dele chegar a Moscou depois de derrotar Krasnov? Ou será que ele está destinado a ser refém do seu próprio relógio, ele não sabia.

        O comissário se levantou e seguiu para a sua cabine, os três amigos se entreolharam e disseram:

        "Realmente o comissário é uma pessoa estranha, Abraham Efremovich.", observou Markus.

        "Espero que ele saiba o que está fazendo, os Brancos não estão para brincadeira"

        "Muito menos nós"...



                                           Parte 3 será publicada na quinta feira.

domingo, 19 de maio de 2019

Aço incandescente I

     Mas,
     Dizei-me,
     anêmicos e anões,
     os grandes,
     onde?
     Em que ocasião,
     escolheram
     uma estrada
     batida?


                                         Nesta vida
                                         Morrer não é difícil.
                                         O difícil
                                         é a vida e seu ofício.

                                                                                  Vladimir Maiakovsky




      "Estamos famintos de liberdade, e com nossa inclinação natural para a anarquia, podemos muito bem devorar a nossa liberdade. É uma coisa bastante provável. Nós destruímos as velhas formas de vida apenas fisicamente; moralmente elas nos cercam e estão em nós mesmos". O texto escrito em letras garrafais era distribuído aos montes, passando de mãos em mãos pelas vielas do bairro operário. O recado de Maximo Gorky era lido atentamente por oradores que usavam pequenos caixotes como se fossem palcos, a cidade estava em efervescência, apesar do frio daquela manhã cinzenta.


       Logo após a Revolução de Fevereiro, os bolcheviques e anarquistas foram os primeiros a serem intransigentes no combate à guerra. Todos estavam cansados da guerra, os soldados, as mulheres, as crianças. Os operários, os camponeses. O pão aumentava o preço todo dia, o carvão era racionado em migalhas no meio do inverno, os trabalhadores faziam armas e munições, mas ainda assim, mesmo trabalhando por 15 horas a fio, ainda era insuficiente para as tropas que lutavam contra os alemães. Foram quase três anos assim até que em outubro tudo estourou.


       O Instituto Smolny incendiou para sempre as páginas da história, Antonov Oevesenko corria com chapéu e rifle na mão na frente dos soldados para tomar o Palácio de Inverno. Lenin discursava, o encouraçado Aurora já tinha disparado aquela bala que iria sepultar de uma vez por todas a fraca república menchevique. Quantos sonhos surgiram naqueles dias! Konstantin Sergueiovich saiu da fábrica Putilov em Virborg e correu com seus camaradas gritando a Internacional a plenos pulmões, o passado era por fim enterrado, algo novo iria nascer. Algo belo, nada mais de patrões! Nada mais de senhores! Cada um agora seria chamado de camarada e cada um seria igual ao outro. Quantos anos ele esperava para ser ouvido, quantos anos ele não baixou a cabeça inconformado com medo do chicote da Okrana? Não mais.

        Foi quando ele soube que a guerra continuava. O czarismo não se dava por vencido e o Exército Branco ameaçava o futuro da revolução, foi por isso que ele se inscreveu para o curso de artilharia na escola Konstantinovskoe, ele pegou o bonde no centro e seguiu para a avenida Zabalkansky,17. 

       "Nome, Patronímico e sobrenome", questionou o chekista responsável.
       "Konstantin Sergueiovich Malinovsky"
       "Ocupação?"
       "Torneiro mecânico"
       "Camarada Malinovsky, sabe manejar uma arma?"
       "Sim, eu trabalhava na fábrica (de armas) Putilov.
       "Muito bem, precisamos de mãos firmes para esmagar os inimigos da revolução. Peso, altura e idade"
        "65 kilos, um metro e setenta e cinco, 24 anos".
        "Sabe o mínimo de aritmética?  Pra função que você irá desempenhar é preciso ler e escrever sem dificuldade, falar fluentemente e saber calcular".

          "Sim, camarada, eu sei calcular e ler sem problemas"

          "Míope?"
        
          "Não."

         "Muito bem, entre naquela fila".

          Malinovsky entrou numa fila que se formava na lateral do edifício, havia apenas dez pessoas na sua frente, cada uma delas era conduzida para dentro das instalações onde eram obrigadas a se despir e eram analisadas por um médico, quem estivesse com suspeita de tifo era descartado imediatamente. Logo após ter sido examinado, Malinovsky recebeu um pedaço de pão e de sopa, sentou-se no canto do refeitório.

          "Camarada, esse local está ocupado?"

          "Não, pode-se sentar", ergueu a mão por educação.

           Dois homens se aproximaram e sentaram-se defronte ao jovem rapaz. Um era pesado, com rosto ligeiramente rechonchudo, braços curtos e olhos brilhantes, tinha um sotaque ligeiramente carregado, Malinovsky apostou que fosse letão. O outro era pequeno, esguio, mas aparentava estar bem doente, o nariz adunco denunciava que era judeu.

            "Vimos o anúncio no Pravda", abriu a conversa o letão, "Parece que vamos ser mandados para ofensiva contra Kolchak"
   
             "Tomara, não aguardo a hora para acabar com esses Brancos", falou Malinovsky.

            "Eu sendo sincero só quero voltar vivo para conseguir casar com Irina, minha noiva", falou o pequeno homem com aparente vergonha, mastigava o pão com dificuldade e mantinha a cabeça baixa a todo momento.

             "De onde você é, camarada?"

            "Odessa. Eu estava na cadeia, me soltaram a pouco tempo"

            "Difícil,  a Ucrânia está toda com os Brancos, isso quando o problema não é Makhno, só Kiev é nossa", respondeu Konstantin Sergueivich.

            "É, a agulha é fina, mas o rasgo é grande", disse o letão em tom de pilhéria. "Eu sou Janis Markus, esse é Abraham Goldstein", os dois estenderam os braços.

              "Konstantin Malinovsky".

              "Prazer, camarada"


             Logo depois do almoço, os recrutas foram encaminhados ao dormitório para deixarem as suas coisas e voltaram ao salão principal onde estava armado um palanque. Um homem pequeno, de barba aparada, nariz aduco e cabelos encaracolados tomava a frente, ele vestia um casacão de couro preto, calças de brim escuro e botas. Aquele era Trotsky, o Comissário da Guerra:


           "Camaradas, cada um de vocês foi selecionado para representar o nosso esforço de derrotar os resquícios cadavéricos do czarismo. O mundo inteiro está de olho em nós, as potências imperialistas nos ameaçam, mas nós somos um vergalhão de aço que não pode ser dobrado diante as adversidades. Cada um de nós tem a missão de defender os ideais de nossa revolução proletária. Os nossos filhos, nossas mulheres e nossos camaradas contam com isso, devemos estar fortes e ágeis, a hidra da autocracia ainda não foi eliminada! Mas serão vocês, camaradas, que irão cortar de uma vez por todas esse câncer que explorou por tantos séculos nossos antepassados.

           Guerra aos canalhas czaristas! Paz para os nossos filhos e para nossas esposas! Todo poder aos Sovietes! Trabalhadores do mundo, uni-vos!"


          E foi quando a banda marcial começou a tocar a Internacional, aquela massa disforme de 30 homens, cantou desafinadamente o hino em uníssono, Trotsky desceu do palanque e deu um breve aceno aos homens, logo em seguida, as aulas começaram. Seria um curso preparatório de dois meses até que todos pudessem ser declarados aptos para o front da Sibéria.


         E foi assim que se passou, dois meses, todos estavam sendo embarcados de trem em direção a Omsk, para combater a Legião Tcheca e os Exércitos de Kolchak.

          Durante o regime czarista, exigia-se que os soldados andassem enrijecidos, de barrigas encolhidas, sem respirar, executassem manobras militares circenses sobre comandos de eia, hurra, e cantassem os hinos em homenagem ao czar. O regime precisava disso para se manter sólido, mas agora tudo isso era passado, os marinheiros de Kronsdant, no lugar, marchavam com bandeiras negras e vermelhas, gritando a plenos pulmões a Marselhesa dos Trabalhadores enquanto se despediam dos camaradas que iam para a Sibéria.

         "Somos o exército do trabalho combativo! Ninguém irá nos comandar, companheiros!" Gritava o comissário Chernov enquanto todos embarcavam. "Saudações a vocês, companheiros do regimento Moskovsky, granadeiros, trabalhadores e metralhadores. Vocês acabarão com a raça de Kolchak!"

          "Konstantin, leia isso que Abraham escreveu", Markus entregou-lhe o papel


           "Guardas! Gendarmes!
            Escutem, fúteis.
            Será que fomos nós que levamos
            Essa escória aos quartéis?


            Ou foram vocês que colocaram
            às suas próprias fileiras.
            Bando de covardes,
            múmias desse passado remoto
            que iremos hoje apagar para sempre.

            Seremos só culpados
            De apunhalar de peito aberto
            A asquerosa nódoa dos seus pecados
            contra o grande esforço do proletariado!

            Morte aos canalhas imperialistas!
            Morte a vocês, corvos negros da morte!"


            "Ficou muito bem feito, Abraham", Konstantin Sergueivich olhou para o amigo, "Mas sua atenção é ao fuzil e não à pena. Essa guerra vai ser vencida só na base da baioneta".

              "Ainda assim venceremos".


         A pesada locomotiva começou a mover suas bobinas à medida que o vapor quente se soltava e condensava no topo de sua chaminé, aos poucos o cavalo de ferro arrastava os quatro vagões da estação Yaroslav em direção à Sibéria. Era com pouca cerimônia que os três companheiros se separavam da jovem capital soviética e de sua efervescência e iam em direção ao desconhecido terreno da guerra; Malinovsky tirou uma garrafa de vodka debaixo do casaco e dividiu com os dois amigos:

           "Brindemos!"

           "Ao desconhecido!"


           "Ao desconhecido!"







                Continua na terça-feira


Coturnos

      A cavalaria marchava,
      Os cavalos presos aos ferros
      Marchavam devagar
      Um atrás o outro, em fileiras.

      Parecia um desfile de 7 de setembro
      Mas era algo mais sério.
      Cada soldado com seu fuzil,
      Capacete e baioneta.

     "Chamem os blindados"
     Era 1964.
     A Esplanada de terra batida,
     A poeira vermelha subia aos olhos.

     O general olhava pelo binóculo,
     Os cadetes corriam desordenadamente.
     A cidade estava deserta.

     O Palácio do Planalto era um caixote,
     Uma casa grande no meio do mato.
     O Congresso era uma alegoria do passado.
     Foi fechado!


     Cuidado, os tanques estão andando.
     Os tons verde-oliva colorem
     A paisagem morta da capital.

     É 1964 ou 2019?
     Um cadáver ordena a morte do país.
     O asqueroso sofrimento
     Do nascimento do natimorto.

     O passado consome o futuro.
     Saturno perverso, magnânimo,
     Abocanha o poder do povo
     ao usar o executivo para executar
     com suas próprias mãos. 

      Irmãos! Será que não vem os grilhões?
      Somos centenas de milhões!
      O sindicato do crime aperta suas mãos.
      O Congresso se congratula,
      Os juízes vendem sentenças.

      O presidente vende o país inteiro.
      A mente sádica teme a liberdade,
      Mente, corrompe, aniquila,
      E com severidade mata o futuro.

      Brasil: Ordem ou Progresso?


Kalinka

        A barba negra e espessa estava suja de neve. Seus olhos azuis não tinham qualquer tipo de expressão, estavam  oblíquos, opacos, como se fossem feitos de porcelana. Sua jaqueta estava suja, com o odor característico do suor impregnado de vários dias sem lavar, mas ao mesmo tempo úmida por causa da neve que nunca secava. Seu semblante severo fitava o relento, ao fundo sentia o cheiro amargo de alho e beterrabas sendo cozidas no caldeirão de ferro.

       Pegou sem entusiasmo uma garrafa de vodka e se escondeu do frio no buraco da trincheira. O rapaz carregava apenas uma pequena mochila de feltro e um velho fuzil enferrujado nas costas, ventava e aos poucos nevava de novo, sem cerimônia, encheu seu cachimbo de tabaco e caminhou sem entusiasmo pela vala da trincheira. Outrora ele ria com seus amigos, flertava com as mulheres e caçava confusão por esporte, mas naquele dia, ele era capaz de arranjar briga com qualquer um por mais um gole de vodka. Atirou a garrafa longe.

       Ao chegar perto do refeitório improvisado junto à tenda de campanha, encontrou um piano incrivelmente intacto e metade de um balcão estilhaçado que servia de banco para a plateia de soldados que se sentavam esparramados pelo chão. Apesar disso, estava com um aspecto vazio, ele preferia desse jeito:

       "Mais bebida pra mim", pensou consigo.

       Ele que levava a vida por um fio não estava preocupado que só tivesse duas balas no cartucho, ele estava preocupado se alguém tivesse encontrado a garrafa com metade de licor de assis atrás do piano de parede. Ele estava feliz ao ter encontrado a bebida sem muita dificuldade.

       Aos poucos, os soldados se serviam de borsch (aquela sopa rala de beterraba, rabanetes e um pouco de carne). Era o segundo ano de guerra, Mikhail estava cansado de andar sobre o campo minado e ouvir a distância os alemães ressabiarem as suas armas contra os desavisados.

       O ano era 1916, o mundo estava prestes a se tornar completamente diferente;


Mad Men

          Mad Men foi provavelmente a série que mais me surpreendeu nos últimos tempos pelo teor ácido de sua história, o desenvolvimento elegante do seu roteiro e a atuação impecável dos seus atores. Recentemente assisti as sete temporadas na Netflix, e foi com um pouco de nostalgia que terminei o último episódio ano passado.


           Mathew Weiner apresentou o projeto de Mad Men para HBO logo depois de terminar Os Sopranos, a famosa série da máfia que extrapolou as fronteiras e limites delimitados pela triologia de Francis Coppola, Godfather, e a série foi rejeitada. A despeito do sucesso de Sopranos, os executivos não queriam apostar em uma série sobre publicidade, eles realmente acreditavam que a audiência seria muito baixa; Erro deles.

           Mad Men no primeiro episódio já mostra para o que vem, fala publicamente que vai se direcionar ao mundo da publicidade na era de Ouro, os anos 60. Centrada na figura de Don Draper, a série começa com o primeiro dia de Peggy, a nova secretária do diretor criativo da agência de publicidade Sterling Cooper.

           Aí vemos a relação que se constrói de Don e sua secretária, que a despeito dos clichés, não tem nada de romântica, e sim de cumplicidade e complementariedade. Peggy torna-se muito mais do que uma secretária, ela se torna ao decorrer da série uma aprendiz, uma amiga e depois até uma potencial rival de seu chefe, demonstrando que embora a misoginia fosse tema recorrente nos anos 60, a sociedade estava mudando e os paradigmas sociais também.

        Draper vive o sonho americano, tem uma excelente casa no subúrbio americano, troca constante de carro, tem uma família estável, mas insatisfeito consigo mesmo e com o seu presente, tem inquietações individuais graves; Por esse motivo ele toma atitudes questionáveis e essas ações acabam também se refletindo no seu trabalho.


        Aos poucos criamos empatia pelos personagens do eixo principal da série, mesmo os mais questionáveis, e vemos a complexidade de cada um sendo exposta por seus dramas individuais; Mad Men não é uma série de mocinhos e vilões, pelo contrário, todo mundo tem um pouco dos dois. Desde o chefe que assedia a secretária, até a secretária que vence as fronteiras do machismo e se torna um contraponto ao papel que se esperava da mulher na sociedade da época.

          Vemos uma evolução gigantesca de Peggy e de Don Draper no decorrer da série, vemos expostos de maneira (por vezes sutil, outras vezes explícita), temas como o racismo, a homofobia, a misoginia e a existência de realidades tóxicas no meio de trabalho.

          Mad Men além disso nos premia com um cenário muito bem construído que é uma reprodução filedigna dos anos 60, seja nos figurinos, seja nos comportamentos (com os atores fumando cigarros de forma descontrolada e bebendo), seja nos eventos históricos que foram muito bem relacionados com a trama principal da série. Os anos 60 são a espinha dorsal da série, mas a série não depende de um recorte cronológico para se desenvolver, seus temas são atuais até hoje.


            O mais interessante é a forma como coexistem discussões geracionais dentro da própria série, a geração que participou da Segunda Guerra dialoga com a geração baby boomer e a nascente geração dos anos 60 que está interessada na ruptura dos padrões e na contestação dos valores que as gerações anteriores construíram. Nisso temos o movimento hippie surgindo, o movimento feminista, o rock, a Guerra do Vietnã, a corrida espacial. 

            Prato cheio pra qualquer aficionado tanto em história quanto no mundo dos negócios, Mad Men (alusão aos Madison Men, os homens engravatados que perambulam pela Avenida Madison até hoje) é uma crua e fina alegoria de uma época tão distante de nós e ainda assim que está tão presente em nossas vidas;

             De toda forma, é um prêmio visualmente falando que foi bem reconhecido pela academia, ganhando 15 Emmys ao todo (sendo que as 4 primeiras temporadas consecutivamente ganharam cada uma o prêmio de melhor série dramática) e 4 Globos de Ouro. As referências visuais remetem organicamente aos filmes de Hitchcock (a abertura é quase uma homenagem ao filme Vertigo) e ao estilo kirsch americano, com planos visuais abertos intercalados com closes e iluminações carregadas a depender da intensidade da cena a ser destacada.


          O título em português da série é oportuno, Inventando Verdades, num mundo em que o conceito de Verdade é subvertido em nome de narrativas (Pierre Bordieu) e particularizado em favor de grupos específicos, Mad Men nos mostra que a manipulação de palavras, conceitos e imagens é um fenômeno antigo e muito bem pensado; Além disso nos mostra que a ausência de moral nos meios corporativos é tão disseminada que os próprios agentes participantes (tanto do processo criativo quanto financeiro) estão imersos e não percebem de fato que várias questões que eles próprios são submetidos cotidianamente são produtos do meio em que eles estão imersos.

            Para quem teme ficar órfão com o término de Game of Thrones, fica aqui a minha sincera recomendação.



       

O medo

       O medo é como um lago
       Que se enche de água
       E preenche todo o vazio
       Com plena morosidade.


       O vento que bagunça meus cabelos
       Carrega a solidão passageira
       Aquele que perdeu tudo por um amor
       Agora está preso à própria liberdade.


       Como um artista que inscreve
       sua obra na folha, eu espero
       Espero que o futuro seja melhor
       Do que o próprio presente.

       Sem o desespero inconsciente
       Fecho meus olhos um momento,
       O vento é violento.
       As minhas ideias espalham-se no chão.


       Sozinho e sem esperança,
       Guardo pra mim o sentimento
       E deixo os planos correrem
       nesse ofício solitário que é viver.

       Parcos momentos de felicidade
       Agora são citações no banco da biblioteca.
       O vício das grandes expectativas
       Esbarra no quadrilátero das incertezas.

       Viver é sozinho um ato revolucionário
       E minhas ideias jogadas ao vento
       São agora o escudo de quem hoje
       Se dedica a vencer o próprio medo.


        O medo irá fracassar,
        assim como o sol apagará
        o sorriso triste dos meus lábios.


        Viva o medo, estude o medo
        Beije o medo!Quando estiver forte
        Chute e corra para longe,
        Pois nada é mais belo
        Do que enganar o próprio medo.
     

Amor

     Amor é um substantivo restritivo que às vezes tem função de advérbio, outras de adjetivo, mas estranhamente é visto como verbo. Verbo indica ação, amar é justamente ficar parado, repleto de dúvidas, com cenho fechado refletindo sobre a virtude de ser amado.

     Amar não é um verbo intransitivo, na verdade depende de um objeto direto, quem ama, ama algo ou alguém. Os bancos amam o dinheiro, os políticos amam o poder, os sábios amam o conhecimento, os indecisos amam a incerteza. A incerteza é uma das coisas que por vezes me corrói, outras vezes me mantêm ativo, hoje esse verbo intransigente chamado amar organicamente toma reflexão e pede subordinação à minha própria consciência.

     Fecho conscientemente meus olhos para os erros e encontros consonantais que tive por esses anos de juventude, repleto do hiato de vários anos, me permito sem explicações acadêmicas amar algo diferente, amar a mim mesmo.

     O amor sempre foi uma oração restritiva para mim, eu amava uma única pessoa de forma intensa, mas aos poucos percebi que tudo isso era besteira. Eu não posso depositar um sentimento tão sólido em uma única pessoa, ciente dessa falha, tentei aos poucos repará-la: Amei à minha irmã como se fosse a minha filha, amei aos meus amigos como se fossem meus irmãos, amei os livros como se fossem meus amigos, amei meus pais como se fossem meus livros e amei meus dias como se fossem meus francos professores.

     Mas amar uma só pessoa, nunca mais consegui fazer. Até porque meu coração teve momentos de grande sofrimento intercalados com momentos de degelo, e resisti à ideia de me permitir amar de forma romântica de novo. Foi quando desenvolvi o amor platônico pelo meu próprio passado, pelas minhas próprias recordações, sem embaraço, tomei gosto de explorar as memórias da minha juventude. Essa mesma juventude que enquanto jovem era insatisfeito e quando velho me sinto lisonjeiro de ter vivido.

      Ter visto minha irmã nascer, ter vivido nove anos com ela antes dela falecer. Tudo isso me trouxe recordações intensas, da mesma forma que eu vi minha primeira namorada crescer comigo e sofri com a perda, da mesma forma que chorei quando a minha segunda namorada partiu desse mundo por suas próprias mãos, eu passei a amar meu próprio passado como pedaço de mim mesmo. Foi algo necessário de ser vivido.

      Hoje ciente disso, tem dias que sou tomado pelo medo, medo não por mim ou pelas pessoas ao meu redor, mas medo do futuro. Futuro por sua inteira simplicidade. O que me reserva o futuro? Um monte de filhos e uma esposa? A solidão e fortuna? Ou a morte? Essa incerteza me incomoda, mas me sinto em paz porque tudo isso está nas mãos da pessoa mais preparada para lidar com essas incertezas, eu mesmo.

      Ao mesmo tempo que amo o passado, rompo com ele, sigo em frente. Fecho meus olhos um momento e acordo desse sonho (que muitas vezes vira um pesadelo) e me torno diferente do que imagino que fui um dia. Hoje amo com leveza o pouco que tenho e à distância descubro que posso amar algo novo sem me desesperar a encontrar algo que seja meu;

      Dizem que é assim que a gente encontra um novo amor, eu não sei, com medo de errar de novo, tenho receio de dizer o que sinto para uma pessoa que amo à distância, uma verdadeira coqueluche que surgiu agora que espero que passe tão rápido quanto ela apareceu. Amar é sempre mudar a alma de casa e por isso mesmo talvez amar seja um verbo irregular e irracional;

Haber e o uso da ciência para o "bem" e para o "mal"

A figura mais controversa pra mim na história da Ciência não é Oppenheimer (pai da bomba nuclear), nem Alfred Nobel (criador da di...