sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Reflexões vespertinas (texto do bloqueiro)


No ensolarado crepúsculo do rubro Sol das cinco horas , sentado no desconfortável banco do autocarro, estava lá um jovem, vestido com uma túnica azulada e uma bermuda cáqui, além de um panamá amarelado,  condizente com o calor insuportável das tardes de agosto- setembro.

Presente ali, em pé, na catraca do autocarro, ele pagava com os seus últimos tostões a sua ultima passagem para casa. Fora uma semana extenuante para o jovem rapaz, os dias da vida universitária lhe roubavam muito de sua energia, mas enfim ele poderia descansar.

Observou  com atenção o motorista do circular, um ameríndio do estilo do ultimo moicano com o índio Peri. Caminhou até a catraca e lá encontrou o cobrador que há tanto conhecia, mas com quem pouco falava. O cobrador era uma pessoa incrivelmente envelhecida, com rugas sobressalentes, calvície na testa e nariz torto, era pequeninho e muito magricelo, bota magricelo nisso! Aquele era um tipo entre Charles De Gaulle e Didi Mocó.

Pagou-lhe com duas moedas douradas a quantia encarecida da viagem do coletivo. Observou que havia poucos lugares por ali e então caminhou dois metros e sentou-se em um dos últimos assentos no corredor, logo atrás a uma jovem muda.

Calado ficou, começou a observar os passageiros enquanto o coletivo prosseguia vagarosamente por uma via arterial no centro da capital projetada no coração da aridez do Planalto Central, por dois arquitetos renomados, a mando de um presidente corrupto, mas sonhador. Ah! Brasília, minha Brasília, quão bela és tu durante a tarde, mas quão abafada és tu durante o calor!

Calmamente observou a conversa entre uma mocinha e a muda sentada à sua frente, percebia que se comunicavam tão bem por leitura labial, que nem por sinais corporais precisavam se comunicar. Aquilo divertiu o garoto, sabia que os outros naquela locomotiva da estrada estranhavam a comunicação delas, mas achava legal a comunicação ser feita de modo tão amigável, sem qualquer preconceito entre as duas.

 Olhou para o canto direito e percebeu o lacrimejar do cobrador, um lacrimejar tristonho, que tanto tentara esconder, mas era perceptível a quem prestava atenção. Tentara se desvencilhar de qualquer comentário:
— Maldito tempo do calor de Brasília! Que tempo horrível! Meus olhos estão ardendo com esse tempo horroroso.
Mas no fundo, o jovem rapaz sabia que ele chorava por outra coisa, mas que não queria transparecer suas emoções, não queria transparecer um homem fraco diante os outros.

Sofria, sabia que sua querida esposa estava acamada num sórdido hospital público, sabia que poucas eram suas chances de sobreviver ao terrível cacro na vesícula, mas preferia não pensar naquilo.

                Acordava todo dia às quatro da manhã, quando o sol não aparecera ainda, numa das mais perigosas partes do mundo; onde há um assassinato a cada dia, talvez dois, aquele local em que corre-se risco de roubarem sua carteira logo ao sair de casa, onde o poder publico se esquece de que existe, mas não esquece de cobrar impostos.

Não havia sistema de esgoto encanado, a energia dos postes era improvisada em gatos e puxadinhos, a erosão corroia por completo a rua de terra batida, em que ao bater do vento soltava uma grossa poeira alaranjada.

Todo o dia ele pegava dois ônibus para chegar ao trabalho, todo o dia enfrentava o frio cortante de manhã, até chegar ao terminal de ônibus daquele bairro onde o ônibus se adentrava. Acordava a cada minuto enquanto conversava com seus colegas e batia papo com o motorista ameríndio, que era seu grande amigo há quase vinte anos, e logo, às seis e vinte da manhã, saía do terminal, no primeiro ônibus para a Universidade, ônibus esse, que o jovem pegava quase todos os dias.

Fazia ele de oito a nove viagens por dia, mas mesmo assim seu salário ainda não lhe cobria  suas necessidades básicas, assim fazia muitas vezes horas extras para suprir os remédios de sua esposa, mas continuava forte, não chorava por nada.

Ao passar em frente ao shopping , chorou novamente. Sabia que não poderia gastar seu diminuto salário com essas coisas, e ao parar da estação ouvia-se uma criança esbravejar:
— Não! Não!  Eu não quero essa coisa! Eu quero um ipod!
— Filho, filho... — Tentou contra-argumentar o pai.
— Mas eu quero...
O que o menino pedia não era apena s um gadget inútil que marcava o tempo, as horas, acessava o e-mail, a internet,  tocava músicas, vídeos e ainda rodava jogos, por uma exorbitante quantia de mais de três quintos do salário de um cobrador local. Ele pedia ainda para que o pai alimentasse a fábrica, enclausurada nas montanhas da China, no meio dos confins do mundo, onde crianças, trabalham todos os dias, por treze, catorze horas, em condições sub-humanas. Crianças essas, crianças da idade daquele pequeno garotinho, que trabalhando, trabalhando muito, não teriam sequer condições de ter uma porcaria daquelas.

Enquanto isso, o pobre cobrador chorava enquanto sentia saudades de sua terra, Caxias, no interior do agreste maranhense, onde os homens eram másculo e as mulheres fortes. Sentia saudades do tempo onde ele vivia tranquilamente, à sombra, na casa onde nascera, há mais de quarenta anos atrás, com os seus pais na roça, trabalhando para fazer farinha, enquanto ele, com seus cinco irmãos, tentavam aprender o alfabeto naquela parte esquecida do Nordeste Brasileiro.

“Coitado desse camarada!” Pensou o jovem.

Na próxima parada, o jovem descera daquele ônibus observando a indiferença dos passageiros com a tristeza do velho cobrador, que de tão abatido, já não expressava nenhuma feição.

“Que coisa triste!”

Caminhou ele duas ruas em direção à casa, pisoteou a grama amarelada dos tempos de estiagem e caminhou pensando consigo.

“Como seria essa cena num contexto socialista?”

Imaginava com nostalgia o sistema soviético em suas feições, imaginava que provavelmente o cobrador não se comoveria quanto à saúde de sua esposa, o Estado certamente custearia isso. Sabia também que aquele irritante garoto, de voz estridente, também não poderia comprar aquela porcaria que acessava a internet e outras coisas mais. Pensava com cautela em sua convicções políticas, sabia que o sistema soviético não era uma erfeição em termos de aplicação, era sem dúvida uma deturpação do sonho que Marx e Lênin sonharam um dia, mas acreditava ele (mesmo que inocentemente) que talvez fosse melhor do que ele acabara de presenciar.

Caminhou mais um pouco e viu uma donzela passar de Rayban nos olhos e bolsa de grife, enquanto entrava num Hyudai I30 do último tipo, com ar condicionado e tudo, com um homem horrível de se ver na direção. Era com certeza a reedição da peça  A bela e a fera.

“Deus do Céu! Como as pessoas se vendem”

Caminhou mais um pouco e deparou-se com o conhecido e afamado Setler inglês que perseguia os transeuntes daquela rua. Cachorro esse tão traiçoeiro, que só atacava pela retaguarda.
“Maldição!” Pensou consigo.
Após a isso, o canídeo partiu para cima do rapaz, com os dentes expondo suas feições mais selvagens. Há poucos metros, estava lá o dono, um garotinho de uns oito anos, que nada fazia a não ser se divertir com a desgraça do garoto do panamá amarelo.

Aquilo revoltou o rapaz, que já exausto de ver tantas maluquices, agarrou um pedaço de tronco que estava ao chão e afugentou o cachorro  com o barulho e quando percebeu que o moleque gargalhava-se com aquilo, foi atrás dele com o pedaço de madeira e uma pedra na mão.

— Volte aqui, excomungado! Verás o que é bom, guri!

Isso fez com que o garoto aprendesse a não deixar mais o cachorro solto para morder os transeuntes naquela rua.

Findos esses capítulos, sem ter alcançado o apavorado infeliz e seu cachorro, o rapaz continuava em direção a sua casa, passando pela grama amarelada dos jardins da quadra.

Em frente a si encontrou um pôster gigantesco de um mercado à mostra no outdoor.
“Vinho?

 Agora com adega climatizada no subsolo
Sacolão Dona de Casa. QE 32 conjunto....”
Aquilo fez lembrar dos negócios de seu velho pai, o velho Francisco, o homem que um dia fora alcoólatra e hoje, tendo superado o vício, tornou isso sua fonte de renda. Sabia mais de vinhos do qualquer enólogo e sabia vendê-los melhor que um mercador judeu. Seu pai agora era um dos prósperos comerciantes que forneciam bebidas àquele sacolão do folder do outdoor.

Isso o enchia de alegria, mas também  de medo, pois tudo que eles conseguiram foi através dos vícios de outras pessoas, embora não fossem eles nem traficantes, ou donos de cassinos, havia um certo moralismo que ainda tocava o jovem.

Aquele dia estava um tanto surreal para o jovem rapaz, pensou em se afundar em litros de vodca, mas decidiu que tudo aquilo já tinha sido demasiado estranho para si, que enquanto ébrio poderia piorar.

Caminhou mais algumas centenas de metros e logo se inseriu dentro de casa. Ao chegar em casa, afundou-se numa confortável poltrona de reluzente couro negro e defronte o computador desatinou-se a escrever: “Reflexão vespertina.  No ensolarado crepúsculo do rubro Sol das cinco horas , sentado no desconfortável banco do autocarro, estava lá um jovem, vestido com uma túnica azulada e uma bermuda cáqui, além de um panamá amarelado,  condizente com o calor insuportável das tardes de agosto- setembro....”

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