domingo, 31 de agosto de 2014

O triste fim da tênue esperança

         É um mito pensar que à sombra da morte de Eduardo Campos nosso sistema político será renovado, Eduardo era uma esperança de um futuro melhor que morreu naquele infeliz acidente aéreo. A despeito do que tentou se associar a escândalos de caixa 2, não acredito realmente que Campos fosse dessa esquife, e sim alguns de seus apoiadores e também apoiadores de Marina Silva.


         No Brasil carece a política índole e aparentemente Campos traria uma nova refrigeração de ideias no cenário nacional, e o PSB estava na vanguarda do pensamento progressista brasileiro, sobretudo com relação à esquerda, por estar mais inclinado ao aspecto ideológico do socialismo europeu gramsciniano. Campos tinha antigas ligações com o lula-petismo, mas isso se encerrou quando ele começou a aspirar voos mais largos.

        A proposta econômica de Campos não está clara para muitos, mas resultava na mudança da política econômica atual de incentivos à setores definidos e passar a um arrocho ministerial, uma terapia para uma economia em estagnação (estamos agora em estagnação técnica). Redução de gastos, redução de taxas, e uma maior abertura da economia brasileira ao exterior sem retirar os avanços sociais do governo Lula. Campos fugiria do pensamento cepalino de Guido Mantega e o Brasil poderia retomar o seu crescimento. Por isso ele era o candidato mais adequado.

        Ele era jovem e tinha iniciativa.


         Mas o maior engodo da campanha de Eduardo foi a aliança com Marina Silva; Inicialmente parecia ser um trunfo cooptar a ala dissidente do Partido Verde, o Rede, que não conseguiu se inscrever a tempo, mas com o passar do tempo o apoio político que parecia ser vantajoso para o PSB passou a ser um problema. O Rede passou a desejar reformulações do programa eleitoral do PSB e Campos foi um dos militantes do PSB a segurar o que o pessoal da Marina Silva desejava fazer, pois isso iria descaracterizar a proposta partidária do PSB.

           No quesito ecológico e sustentabilidade, o primeiro partido a ter essa preocupação não foi o Partido Verde, foi o PSB. Os herdeiros de Miguel Arraes sempre estiveram numa vanguarda política , embora o modelo político brasileiro tenha dado distorções aos quadros partidários do Partido Socialista Brasileiro.

           Não que eu acredite que o sistema político seja mudado de cabo a rabo nesse caso, mas é notável o medo existente de que Marina Silva esvazie o progressismo do PSB, com suas posturas bastante conservadoras com relação aos direitos dos homossexuais em por exemplo estabelecerem matrimônio (Campos era católico fervoroso, mas o seu catolicismo era desvencilhado de suas ações políticas. E no Brasil todo político é cristão em tese, até o mais ateu dos políticos como Getúlio Vargas, era cristão de  soturna).

           E engraçado que Marina é a primeira a romper o círculo católico na presidência (FHC era agnóstico ao que tudo indica, mas todo mundo fingia que ele fosse católico). Ela se for eleita vai ser a primeira presidente (e não presidenta, porque a gramática é sempre mais relevante do que atos diretos da Presidência para mudar a filologia das palavras) evangélica, e isso mostra o ciclo de expansão protestantismo americano no maior recanto católico do Mundo.

           Pra mim é claro que a proposta de Campos está sendo levada a outras matizes quando Marina Silva veio conversar com os usineiros de cana-de-açucar essa semana. A proposta dela de aparecer no evento foi de conseguir apoio político de um grupo que foi massacrado pelas escolhas erradas de um governo que negligenciou a indústria do etanol ao retirar toda a competitividade do mercado do álcool, não dar incentivos e ajuda na estiagem no Oeste Paulista e dar incentivos a reduzir o preço da gasolina por conta da política que não estava errada de combate a inflação. Só que o preço artificial da gasolina onerou demais a Petrobrás e defasou a indústria do etanol.

            A ideia de Marina Silva foi de conseguir apoio do agronegócio "sustentável" que nós sabemos não é tão sustentável assim. Isso mostra o programa bipolar da sustentabilidade ambiental da Rede, pois desenvolvimento sustentável até hoje se pautou por uma proposta econômica de economizar recursos naturais e ter maiores lucros com isso. É uma proposta de cabo a rabo capitalista. E no mais, movimenta um mercado milionário de "produtos verdes" e OnGs que incrivelmente explora o ativismo político dos verdadeiros militantes verdes do mundo. É um aproveitamento do pensamento ecologista para ganhar grandes fortunas;

            O maior perigo é que a Marina Silva com as contradições nos discursos faça um governo que esqueça que temos ao mesmo tempo crescer e manter as conquistas sociais existentes, e mais do que isso, ainda tem que desinchar o Leviatã tupininquim.

              Marina Silva resulta de um vazio ideológico muito claro, ela não tem ideias muito enraizadas de como desenvolver o Brasil e de como resolver o dilema econômico atual, ao contrário de Eduardo Campos que além de ser um economista, tinha apoiadores de primeira linha, e se traduziu como um bom gestor no Ministério da Ciência e Tecnologia. E para piorar, as ligações que Marina Silva mantém com grandes empresários de Sampa-Rio, de uma elite financeira e cosmética torna um tanto duvidosas as reais intenções do que será feito. A classe trabalhadora será negligenciada nessas reformas?


             Marina Silva nasceu do povo, veio do Acre, estado longínquo e sem nenhuma projeção política no cenário nacional. Houveram apenas dois fatos de grande expressão em sua história: O conflito com a Bolívia , que resultou num fiasco do Exército Brasileiro que nem conseguiu chegar às veredas da Amazônia para resolver os conflitos entre seringueiros e soldados bolivianos, e o Itamaraty só pôde resolver com Rio Branco a questão mediante o pagamento de 22 milhões de libras que não chegou a ser nem um bom negócio frente à compra do Alasca. E a luta de Chico Mendes, que um dia desses foi classificado como "elitista", mas era um homem simples que defendia bem os direitos dos seringueiros.

            Marina Silva se esqueceu que ela nasceu na sombra de Chico Mendes nas questões ambientais e de demarcação de terras, e a política no Ministério do Meio Ambiente. Os avanços na área ambiental no primeiro governo Lula foram pífios. E sua saída na época do Mensalão por "discordâncias ideológicas" levou à sua mudança pro Partido Verde do Gabeira (que hoje é um partido de expressão infelizmente secundária, mas que tinha muita possibilidade de expansão na época).

          O que há de semelhante em Collor e Marina? Nada, a mídia está errada em compará-la ao experimento errado de eleger um aventureiro. Collor era filho de Lindolfo Collor, um homem de temperamento bastante enérgico que trabalhou com Getúlio Vargas e ficou eternizado por ter sacado uma pistola contra um colega de Senado e matado um outro companheiro de tribuna (e não ter sido julgado).

         Collor nasceu de uma elite política de Sampa-Rio que acabou emigrando para o longíquo estado do Alagoas, mas que passava boas temporadas em Brasília. Foi eleito por ser carismático, simpático e ter um toque de novo ao falar ser contra "os marajás" e os privilégios dos ricos. Mas ele próprio era um marajá de Rolex e cabelo carregado de Gel, terno Armani, numa época em que a pobreza era latente devido à hiperinflação. Seus planos econômicos foram desastrosos e sua corrupção foi revelado pelo próprio irmão (e volta e meia a ex-mulher conta umas baixarias da vida conjugal com Collor).

            Marina Silva é diferente, ela não é da elite, ela veio do cinturão de pobreza de Rio Branco. Até a mocidade ela mal sabia escrever e com muito custo conseguiu ter uma graduação em História, militou junto ao grupo de José Genoíno (hoje preso) e fez parte do Partido dos Trabalhadores. Ela não é carismática, não tem uma simpatia natural, e sua oratória é algo que é astronomicamente difícil, mas ela cativou o coração dos mais pobres e de alguns intelectuais por ser de origem humilde (tal como Lula). Na verdade, Marina Silva e Lula têm trajetórias semelhantes, embora o Lula cative milhões só dizendo um "companheiros e companheiras".

           Marina Silva ganhará essas eleições provavelmente mas questiono a capacidade com que isso vai se dar, as opções eleitorais ficaram horríveis com a morte de Campos. E incrivelmente o último discurso eleitoral do Aêcio Neves (embora eu não seja tucano) me deixou balançado, ele falou com uma estranha sinceridade, de que ele não odiava a Marina, mas não sabia se ela faria um bom governo mesmo bem intencionada. Eu também duvido se ele teria essa capacidade, pois nenhum dos três candidatos tem.

          E nem falo da Dilma porque sabemos que o modelo que ela construiu nesses quatro anos desestabilizou boa parte das medidas econômicas que vinham sendo construídas há um bom tempo; Pobre do Brasil se algum dos três for eleito.


           A política atual acabou sua conexão com o plano da realidade, ela não representa mais o cidadão comum brasileiro, e pior não representa e faz com que o brasileiro tenha ódio da política. A democracia brasileira caminha para um período de completas contradições e para um florescimento de uma oligarquia decidida de forma eleitoral (sem contar o fator partidário, que é uma coisa ridícula em qualquer sentido estrito do termo). A fé na democracia se esvai, e cada vez é mais convincentes as alegações dos partidos da esquerda radical (PCB, PSTU e em menor grau PSOL, que como sabemos, tem muito trotskista no meio) de que o sistema eleitoral está falido.

           A fé deles na Revolução passa a ser plausível, mas eles se esquecem que o povo brasileiro é conservador e bastante temeroso com revoluções, a despeito da atual violência institucionalizada de cima a baixo todos os dias. Dos problemas diários com relação ao transporte, de um trabalhador demorar de duas a três horas todos os dias para ir trabalhar, gastar sua energia em jornadas desgastantes, ver seu salário corroído pela inflação e não ter acesso a serviços públicos de qualidade. Nenhum desses governantes hipócritas se dedicou a ter a displicência em realmente ouvir a voz das ruas de quem marchou nas Jornadas de Julho, e as propostas são puramente vazias.

           Pelo contrário, criminalizaram o protesto. O ato cívico mais importante de uma democracia e instituíram um Marco Regulatório da Internet para controlar o acesso de pessoas dissidentes que se manifestam pela internet. Estamos caindo num período bem negro da ordem democrática justamente por uma inércia de anos do engajamento político da nossa cidadania, e vamos pagar bem caro por isso. O mito verde, o mito democrático, o mito de ser brasileiro. Vivemos sobre mitos e mitologias republicanas, e agora? Cegos estamos nós em não "desistir do futuro do Brasil", parafraseando meu finado candidato.

           Não votarei na Marina, ela tem tudo para acabar com a memória do Eduardo Campos. Não votarei no Aécio porque ele não tem expressividade nenhuma com o povo, representa uma política já carcomida e tem questões bem graves que não podem ser ditas na internet (Marco Regulatório e mais do que isso, meu desejo de não levar um processo). Não votarei na Dilma porque ela teve a oportunidade de fazer uma gestão boa e falhou redondamente, se traduziu apenas como uma típica burocrata sem qualquer noção ou empatia por um povo que ela passou a governar, pelo contrário, ela serviu mais aos interesses de um pão e circo da Fédération Internacionale de Football Association, do que realmente incluir o pobre dentro do futebol (essa Copa foi da elite, e o povo inteiro pagou por ela um dinheiro que não tinha).

         Então quem votar? Pois é não tem ninguém;


domingo, 24 de agosto de 2014

A gérmen do trigo (considerações a partir de uma revolução técnico-científica)

         A construção de uma sociologia política associada à economia só é possível devido ao fenômeno do século XVIII e todo o período que escorre sobre a tinta da pena na primeira metade do século XIX.
A tentativa de construir uma sociedade nova a partir de padrões técnico-científicos apresenta uma virada quando o método científico a partir de desdobramentos do empirismo inglês torna a observação da natureza objeto claro da análise humana.

A sociedade europeia olha com estranhamento para um mundo em evidente transformação, seja as mudanças dos hábitos de corte, seja mas linhas de circulação de riquezas ou mesmo os velhos dogmas teológicos/ científicos. A filosofia se desvencilha da religião com a interpretação de Spinoza, embora o racionalismo cartesiano tenha inicialmente tido maior impacto ao levar o homem a cogitar que sua humanidade só pode existir em sua racionalidade e senso crítico.

O esfacelamento do cógnito religioso do homem científico é relacionado ao sintagma da destruição das  guerras religiosas que abateram o Sacro Império Romano nas lutas da Guerra dos Trinta Anos.  E nesse paradigma a filosofia política de uma arte diplomática se formula a partir das elucubrações de um príncipe maquiavélico (no sentido positivo do termo) que conduziram esquemas arrojados de lidar com a política sem muitos escrúpulos e honra, principalmente na arte da teoria política.

As teorias são a grande arma contra o tempo passado, a teoria newtoniana, os estudos de Nikolas Copernicus e Johannes Kepler sobre as órbitas elípticas dos planetas levaram ao questionamento se a natureza não poderia ser estudada como fenômeno de criação divina. Como contemplação da obra celestial e por fim, o estudo do próprio Deus. “Conhece-te a si mesmo”, diria um filósofo barbudo do século XIX chamado Friedrich Nietzsche.

O questionamento da forma como enxergamos o mundo levou ao desenvolvimento de estudos a partir de cadáveres e animais para observar o funcionamento dos órgãos e assim observar a “máquina mais perfeita da criação divina”, o Homem. E em sentido estreitos, os estudos de medicina quebraram tabus paradigmáticos de uma sociedade baseada numa moral cristã. A cientificização da alquimia levou a uma quebra der supertições e levou ao nascimento da Química tão importante nos dias atuais; A criação divina tornou-se cada vez mais racional;

A criação de mecanismos e aparelhos de medição tornaram o estudo da realidade da realidade concreta da natureza possível, conduzindo que a ideia de perfeição não estava na Humanidade, mas sim no estudo da natureza. A Ciência. Deus veio da máquina; “Deus ex machina”.

Não a toa que a religião e a teologia deixaram de ser o foco dessa sociedade em tentar alcançar Deus a partir dos seus estudos da filosofia da natureza em contraponto à filosofia religiosa; A física correspondia maiores chances de  compreender o sentido do funcionamento do Universo e de Deus, do que a própria filosofia como vinha sendo feita antes. Tanto que física quântica é o máximo que a humanidade conseguiu chegar no campo da filosofia.

A ciência nasceu da fé cristã, mas terminou na fé da matemática. O questionamento cartesiano e de Spinoza levou ao florescimento de uma sociedade técnico-científica. A medicina e a física romperam com o aspecto diletante dos cursos universitários e o conhecimento passou a ser imediatamente para uso prático. O racionalismo de Descartes resultou na revolução com que a sociedade europeia ao criar a Lógica racional e cientifica
A organização de uma metodologia e mais do que isso, uma lei geral e segura como a Lei da Gravidade conduziu numa fé geral nas leis gerais dos estudos acadêmicos. Nisso estão as leis da Química, nas teorias sobre a Arte da Guerra de Clausewitz, na diplomacia, no Direito, nos estudos sobre a Medicina e do homem e mais do que isso na Antropologia. As tribos do Pacífico passaram a ser estudadas de uma forma etnocêntrica e supostamente científica por professores das mais diferentes universidades europeias

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As consequências dessa revolução estão na arte da Economia, o sistema monopolista é primeiramente questionado na Riqueza das Nações, de Adam Smith, que concluíra que a causa da pobreza das nações europeias é a má gestão dos seus recursos e na sua capacidade de explorar os recursos de maneira reduzida, além da intervenção maciça do Estado régio. O nascimento de um liberalismo inglês ainda pautado pela ideia de uma gestão sem intervenção direta da monarquia, mas de milhares de “Josés do Egito” levou a um florescimento do ideário de que o Leviatã é grande demais para saber controlar o dia-a-dia das atividades cosmopolitas e a ciência complicada da arte do dinheiro; A lei da oferta e da procura ou a mão divina conduziriam a autorregulação do mercado em prol do bem comum, e mais do que isso para o bem individual.
A livre iniciativa dos mercadores levou a um completo paradigma para alterações chave doo sistema financeiro, com a tabelação de regras fiscais e o fim da intervenção régia em determinadas atividades econômicas. Quando o governo não se apercebe dessas mudanças, há revoluções. Tanto na América quanto na França.

A Revolução Francesa é talvez marcante, tanto quanto a Americana, por quebrar a velha ordem. A segunda quebrou com o Pacto Colonial enquanto a primeira quebrou a aliança dos Três Estados numa sociedade estamental que se viu questionada pela sua incapacidade em suprir o rombo das contas públicas e a carestia que se abatia sobre o trigo francês; É o início da submissão da política à economia e não o contrário, a política nunca mais terá forças para controlar a economia de maneira convincente (tirando nos regimes de economia planificada).


O nascimento da representatividade do Terceiro Estado surgiu com os ingleses da América, mas se tornou marcado pelo modelo representativo francês, e nos dez anos de Revolução Francesa se ensaiou vários modelos  representativos, seja a Assembleia Geral, seja a democracia direta, seja a tirania de um Partido hegemônico. A Revolução Francesa nasceu a partir do experimentalismo empírico de uma sociedade científica na tentativa de gerir uma sociedade na melhor forma possível, mas se deformou pelo descontrole com que os eventos revolucionários acabaram sendo conduzidos com o passar dos meses.


O controle de uma nova época levou ao nascimento de uma ideologia cientificista de culto ao Estado como garantidor das liberdades individuais que destruiu a “bagunça do Antigo Regime”. A Assembleia Nacional impôs novas normatizações e um conjunto jurídico que se alterava conforme as atividades políticas do período.


A Antropologia do Homem desenvolvida em épocas anteriores sacramentalizou um evolucionismo histórico que propiciou uma amoralidade do homem europeu no trato com seus semelhantes, levando à cientificização do extermínio a possíveis opositores ao Progresso. Seja no fio da guilhotina do Terror jacobino, seja no neocolonialismo, seja os campos de extermínio nazistas; O nascimento da banalidade do Mal.


O conservadorismo ressurgiu após a Revolução da França, mas a roda da História já tinha girado. O nascimento do mundo ideológico está na dialética entre a querela entre os girondinos e jacobinos. Mas o que observamos é que o materialismo francês nascido no circulo intelectual de cortes do dito “iluminismo” levou a um enraizamento do pensamento racional, concreto e científico sobre todas as atividades humanas existentes de 1789 até agora.




E o materialismo francês não só foi base de desenvolvimento no pensamento de Karl Marx na sua interpretação filosófica a partir da filosofia de Hegel, como também fez germinar o desenvolvimento do Positivismo de Auguste Comte, do liberalismo renovado do século XIX, como a gérmen da tecnocracia atual de nossos tempos, o mundo é diferente do de 1789 porque os indivíduos (agora posso usar esse termo) não temem mais a tirania, agora é o medo à liberdade; Pois nesse mundo, milhares de pessoas não sabem o que querem da vida senão pela fé irracional de um progresso material desumanizado da filosofia empírico do estudo do próprio homem.

sábado, 23 de agosto de 2014

E a água?

         Como pensariam nossos avós nos anos 70 se soubessem que viria a faltar a água no país com as maiores reservas d'agua no mundo? Eles falariam que só foi uma seca no Nordeste, como sempre teve. Afinal o agreste é quente e isso é normal. Mas qual reação seria a deles ao saber que foi  justamente no Planalto Paulista de Borba Gato e Anhanguera?


         Ridículo? Ridículo era pensar isso naquela época; Ninguém se importava com ecologia. Se gastava água de maneira irresponsável, porque a água era "ad eternum". Hoje não é. E pior pela primeira vez se pensava em racionar petróleo, até aquele momento todo mundo fazia questão de poluir.

        A crise do petróleo tem impacto semelhante ao que a crise da água tem em São Paulo. Ter dinheiro mas não poder consumir, pois é para fins estratégicos. Só que naquele caso faltou petróleo por uma guerra e se podia encher o tanque com outra coisa, agora a água faltou pela seca.

        O governo do PSDB não tem culpa por não chover, tem culpa por não pensar na eventualidade de faltar água. E pior esquecer de racionar a água quando era crítica a situação. Isso foi visivelmente olhando para as eleições. Agora não adianta, a água vai faltar mesmo (já tá faltando). E o mais engraçado disso é que era mais fácil de acreditar que faltaria água em Brasília do que em São Paulo. São Paulo chove o ano inteiro.

        Mas o tempo criou troças aos desavisados;


        E São Paulo aprendeu da maneira mais amarga o que vem a ser uma lição de ecologia. O Tietê poderia ser usado pra beber água se não fosse poluído. Assim como poderia se usar menos água por exemplo para lavar a casa, ou nem se deveria usar piscinas. Lavar a casa com mangueira nem pensar. Coisas simples que hoje são aprendidas a dedos.

         Faltar água. Aquecimento Global? O aquecimento não é global, pelo menos acredito nisso. Há regiões no mundo que houve um resfriamento da média de temperatura, outras um aumento, mas é uma consequência de desarranjos climáticos? Com certeza. O mundo mudou sua antiga forma climática e se modificou de tal forma que não é possível mais pensar como antes.

       São Paulo falta água. Os gritos do Ipiranga são por lampejos de água. Desafio político, logístico e humano. E agora São Paulo? Nem Manuel da Nobrega e o seu pátio do Colégio passaram por isso, e eles lutaram contra os índios no início. O recreio dos Bandeirantes estará seco ou as aguardente de Anhanguera pegará fogo novamente sem que os nativos tenham água para apagar? Paulicéia de muitas faces, e você Masc? Viverá sem sua garoa fina?

       Claro que não. Ano que vem voltará a chover, mas a que preço? E pior, e se faltar água de novo? Todo mundo sabia que podia acontecer, mas ninguém levou a sério. E se levou, achava que era para daqui quarenta anos. O futuro chegou e o país do futuro tem que lidar com ele. Como será viver faltando água? Não sei, mas será uma merda.

A tragédia da pólis


           Sofócles poderia escrever muito bem uma tragédia bastante conturbada de um povo com a sua própria democracia. De como os valores morais se corrompem de maneira tão incestuosa com a corrupção numa relação tão cega quanto o próprio complexo de Jocasta.

          Sim, é claro que muito do discurso pode ser levado como complexo de vira-lata. Mas vira-lata somos nós mesmos que não  conseguimos sequer sermos matutos para saber o que está em jogo. O que está em jogo é muito mais que mera política, é o nosso próprio futuro.

          O Brasil está passando por um período de inflexão de sua ordem político-institucional. E mais do que isso há uma crescente dúvida do eleitor com relação aos partidos políticos. Também, deveras, nós somos a Itália da América em muitas ocasiões no que se trata de política (ou a Itália é o Brasil europeu?)

          Nossa política é organizada de forma meramente institucional de fato a partir de acordos generalizados com vários setores da sociedade civil, nisso ficou clara a promulgação da Constituição de 1988. O problema é que a crescente articulação de blocos em torno do apoderamento da máquina estatal para promover uma dominação da sociedade é algo que acompanhou os períodos democráticos brasileiros nesses anos conturbados de República.

         Os coroneis estão interessados em se manter coronéis, assim como os tolos estão interessados em serem tolos. O sistema político atual é uma franca caricatura do que deveria ser uma democracia, não só porque há a profunda cara de pau de alguns políticos em se apresentar como salvadores da pátria, mesmo sendo reconhecidamente ineptos ou corruptos, como também a falta de sagacidade de eleitores em avaliar o cenário próximo.

        Iremos entrar em estagnação logo, digo logo mesmo, em questão de menos de um ano. A economia vem apresentando ritmo lento já tem dois anos, por opções erradas do governo e apostas equivocadas com relação à segurança e estabilidade de nossa economia. É fato que a inflação somada a estagnação pode levar uma estagflação que é o pior dos mundos. Mas nenhum governo agora vai estar em condições de resolver sem gerar arrocho na população, ninguém admite isso, mas é verdade.

        As grandes obras públicas prometidas geraram isso, seja o canal do Panamá que há pelo menos dez anos ninguém fala mais nada, ou a ferrovia Norte-Sul que nunca foi concluída, tampouco os estádios construídos do nada para uma World Cup Fifa Soccer. A economia brasileira assistiu seu melhor momento de expansão de 2002 a 2008, os seis anos de ouro do século XXI, isso qualquer economista tem que reconhecer, foi sapiência econômica do governo na época com movimento positivo do mercado para nós. Mas o declínio não demorou a acontecer a partir que o modelo se mostrou fraco a certas preocupações nacionais e internacionais.

          A Bolha estourou nos EUA e levou meia Europa pro chão. O Brasil resistiu por ser um gerador de commodites que não são dispensáveis pela regra da inelasticidade que todos os recém ingressados a economia aprendem. Mas não sustentamos a benguela por tanto tempo, em 2012 a fraqueza se traduziu pela desindustralização do Brasil e por pressões sólidas do lobby industrial de São Paulo por maiores incentivos, seja a manutenção do IPI ou redução dos impostos. A questão que o custo-brasil é algo que se formos ver ao pé da letra é uma balela, as montadoras estão certas em dizer que produzir é caro aqui, mas não quer dizer que não tenham lucros altos. Por que elas têm.

          As políticas sociais não são um advento tão recente, elas nasceram no seio do reformismo pesedebista no governo FHC. Sim, no início era algo muito restrito e particular, o que houve foi um alargamento dessas medidas. Não sou favorável a longo prazo ao assistencialismo social existente, mas em curto prazo ele fez injetar a roda econômica que andava frouxa. O problema que dez anos não é curto prazo em termos econômicos e os gastos do governo aumentam a uma proporção geométrica. 

         O Estado Brasileiro é um alcoólatra dentro de uma destilaria. E não se pode retirar o papel dele de interventor das regras sociais do trabalho, ou mesmo regulamentador das riquezas, mas os gastos excessivos e o mal uso das verbas acabam sendo as maiores causas de nosso momento delicado na Economia. 

       Deviamos pensar em abrir o mercado, sim, para enfrentar a inflação. Não podemos cair também no mito aristocrático de uma indústria nacional, sim, em parte ela existe, mas não toda ela. E o histórico inflacionário do Brasil nos diz muito: Nós não conseguiremos fugir da inflação se ela perdurar por mais algum tempo. Nossa economia é naturalmente inflacionária;

         O que é trágico é que não se percebe o seguinte problema. Nenhum dos partidos políticos que almeja chegar ao poder deseja construir algo novo. Nenhum. A esperança morreu com o Campos. O homem que realmente poderia fazer um país decolar morreu de formas duvidosas no voo de seu avião;

        A repetição é notável. Dilma quer manter o legado do PT, mesmo que seja inevitável sua queda de popularidade (afinal a economia anda em lençóis mal-vestidos e ela nunca foi realmente carismática). O PSDB é um bloco carcomido, o Aécio pode querer se parecer um espírito novo, mas todo mundo sabe que não é. E o PSB acabou no discurso vazio de Marina Silva, porque realmente é difícil ter esperanças de mudanças da sua plataforma política de 2010 para cá.

       Na verdade, tirando o Aécio, todos os candidatos de 2010 para cá se mantém. Ah, sim, tivemos uma perda grande nesse processo também. Plínio de Arruda Sampaio, que era incisivo em seus comentários carregados de sarcasmo e ironia. Os debates vão ser mais do mesmo.

       O Campos será apropriado por alguns, seja pelos pessedebistas, que o chamarão de "amigo" (sendo que ele não era), e os petistas que o usarão como manobra política também.  Essa é uma guerra de tronos onde dificilmente terão vencedores imediatos.

       Primeira coisa dispare é a construção do imaginário do "time do bem", como se o adversário fosse o "mal a ser vencido". Como se outros projetos não fossem relevantes, principalmente agora. Tá certo, eu não votaria no PSDB, não só pela motivação ideológica, mas porque não há tanta representatividade assim depois de tanto tempo nas cinzas, o PSDB não é uma fênix e tampouco santo-milagreiro.

      Mas não podemos esquecer que o "time do bem" não anda tão bem assim. Ele é questionado por seus paradoxos ideológicos (por construir uma ideia de defesa dos pobres, mas auxiliar o acumulo estratosférico das grandes fortunas. Seja os bancos de São Paulo, seja as montadoras, sejam os empreendimentos agroexportadores como a Friboi, ou as grandes empreiteiras como Oderbrecht. Sem falar no fiasco do Eike. Tudo isso com auxílio do BNDES que empresta dinheiro abaixo da inflação com verba do tesouro nacional). O governo trabalhista é acusado de ser corrupto, que se revelou verdade em alguma escala no esquema do mensalão, mas eis que se descobre que não  só houve um Mensalão, mas três e todos conjugados entre si.

         A tragédia disso tudo é que ninguém está realmente sendo representado de verdade nesse misto de caudilhismo com neopopulismo, esse esquema oligárquico que deforma as bases de uma democracia. O eleitor está preocupado com o imediatismo autoritário dos números, seja os números dos empregos, o valor da inflação, o valor do salário mínimo. O preço da gasolina. O número de bolsas pro Exterior, o número de financiados pelo FIES, PROUNI, e cotas. O número é mais importante que a qualidade do serviço.

         O número dos gastos não importa. Uma nota de cem perdida é uma tragédia, cem milhões é estatística (ou melhor, licitação). É como o dinheiro não importasse, mas o pessoal sim. O governo tem que me dar isso e aquilo, não importa o coletivo. E sim, é corrupto, mas se me dá uma bolsa, eu aceito, se dá uma casa, eu voto. Por que reclamar? É errado tirar a lógica disso, é a lógica do particularismo. Eu se passasse fome e não tivesse emprego votaria no cara que me oferecesse isso, por mais que fosse um advogado do Diabo.

         O problema que numa escala macro isso se gera um nicho eleitoral. O maior inimigo do nosso sistema democrático é nossa latente desigualdade social. E a desigualdade social é a base de apoio de todos os partidos políticos atuais, pois dela se beneficiam os votos. O clientelismo e a nova política dos governadores leva aos escalões de Brasília procurar apoio nas favelas e nos rincões do Brasil de corruptos, caudilhos, traficantes, milicianos e contrabandistas. Os políticos locais correm pra Brasília solicitando verbas ao governo eleitoral em troca de apoio político, que por sua vez correm desvios de verba para financiar os partidos... e assim cria-se uma roda da fortuna da corrupção.

          Caixa-dois é regra nesse jogo de cabeças. 

          A tragédia da pólis é que o povo não é ouvido, é massacrado. Massacrado pela política irresponsável de políticos que esqueceram que um dia foram gente comum, que andava de ônibus ou cuidava dos filhos. Que eles não eram diferentes de nós, nem nós eramos diferentes deles. E um fosso criou-se nesse caminho.

          E o pior que não posso dizer que só eles são corruptos, nós também somos. Ao nos vender por promessas fracassadas , ou por simples questões pessoais; Ao perdoar corruptos pela lenda do "rouba mas faz". Ou mesmo desconhecer a eventualidade com que a política pode moldar nosso dia-a-dia.

         Segurança pública, saúde, educação? Isso importa e importa muito, mas não só isso. Importa conhecer os candidatos, escolher ser representado e ter direito de protesto. O que ultimamente vem sendo meio suprimido (na Copa das Confederações isso foi claro). Lei de segurança Nacional, cavalaria metendo o cacete em manifestante, campanha midiática contra black blocks e pseudo-black-blocks. Brasil Grande, maior espetáculo da Terra. Nunca antes na história desse país... 


            Dá para escrever um caderninho de aforismos que marcaram 2014, e o pior é o vocábulo da desilusão. Porque nem eu, nem você caro eleitor, acreditamos no fundo do coração que apenas essa eleição vá salvar o Brasil. Por quê? Porque o sistema atual está tão deformado que há um fosso entre o cidadão e a política. E esse fosso é difícil de ser rompido. O fosso nasceu do nosso descaso e da profunda falta de respeito com que os políticos encaram seus eleitores.

          Dizer que só eles são culpados é fácil, mas o que observo na sociedade coxinha é também uma hipocrisia corrupta. Seja o suborno ao guarda para fugir do bafômetro, seja o uso de vaga de deficiente, a sonegação de impostos, esconder o Ipod da Alfandega. A vexatória tentativa de ganhar dinheiro no troco, ou mesmo furar a fila de banco. Se nós somos corruptos, o que esperaremos dos nossos políticos? Eles são uma reprodução da sociedade brasileira.

        Eles criaram um fosso entre eles e nós, porque nós temos um fosso entre nós mesmos. Entre pobres e ricos, brancos e negros. Cristãos e não-cristãos. Nossa sociedade é pautada por rótulos lugares-sociais e elitismo. Não só por parte da sociedade rica, branca, ultramontana do high society, mas também dos movimentos sociais que não fogem de lugares comuns e só enxergam branco e preto quando tudo são tons de cinza. 

        A maior tragédia da pólis brasileira é que o povo mesmo estando nas causas de sua não-representatividade (por não estar afiliado à política de gabinete) é que ele reproduz suas mazelas sociais, sua segregação e sua corrupção no modo como vota. E as vezes sua fraqueza de condição social é usada como soerguedor de políticos sujos que estraçalham as bases da República.

       A tragédia brasileira é sua desigualdade social que deforma sua democracia num sistema oligárquico e mais do que isso isola a sociedade da política. Apenas a construção de um modelo representativo direto e uma construção de sociedade sem classes pode por fim a esses problemas, pena que nem eu esteja preparado para ver isso acontecer, nem meus futuros netos no longínquo ano de 2064.

        Não há democracia sem sociedade. Não há democracia sem um pouco de socialismo.

A fumaça de um cachimbo





São várias coisas que mostram cada dia mais o quanto é complicado ser um escritor. A primeira delas é não ser lembrado, não ter apelo algum pelo público e sequer ser reconhecido. A maioria dos escritores passa por isso porque a escrita e a pena são profissões ingratas. Mas talvez pior do que isso sejam duas coisas, ter um lapso criativo e envelhecer.

Sim, o papel branco que nos martiriza quando tentamos preenchê-los com ideias que depois de meros minutos de escrita parecem absurdas e meras bizarrices de um ilusionista fracassado em um circo de segunda linha. Nunca conseguimos escrever o que realmente pensamos e não conseguimos dormir sabendo que se escreve até na hora do banho.

Mas a pior parte é envelhecer. Pior que envelhecer é envelhecer e lembrar do seu próprio passado. Essa é a origem das frustrações de Manoel, uma pessoa ainda desconhecida de muitos, até mesmo de seus próprios colegas. Autor de romances tipo B, e incrivelmente cosmopolita tinha a imagem de um semblante jovem, barbeado e com um temperamento de trinta e cinco anos.

Bem-educado, bem de vida. Ao contrário da maioria, ele vivia bem, tranquilamente num casarão sozinho, sem nenhuma espécie de companhia ou amigos que pudessem se destacar no dia a dia. Ele era uma ilha dentro de uma própria ilha. Ele talvez fosse o mais solitário dos escritores.

Também deveras, sua rotina era bastante rigorosa. Acordava às oito e meia, tomava um banho quente, se vestia e ia trabalhar na repartição. Após horas de procrastinação, voltava e quando estava afim, lia um livro diferente a cada dois ou três dias, jantava fora, bebia sozinho, e voltava para casa. Sua rotina era enfadonha.

Às vezes caminhava sozinho nos finais de semana, analisando as pessoas nos parques, shoppings ou mesmo no museu e tentava estudar cada vez mais seus personagens. Absorvendo-se da “artificialidade do cotidiano”, como ele gostava de chamar, a felicidade geral com que as pessoas exibiam que não eram sequer verossímeis a si mesmo;

Ele não se julgava melhor ou pior do que as “caricaturas em forma de pessoa”, muito pelo contrário, às vezes até se divertia com isso. Mas algo lhe fazia julgar a si mesmo incapaz de ser como os outros, talvez por ser apenas um escritor. Ou um fantasma social.

Ele tentava solucionar esses problemas bebendo de forma absurda goles inteiros de álcool, seja o mais refinado whisky escocês até a mais barata das cachaças. E não desgrudava de seu cachimbo de madeira. Afinal o cachimbo tinha sido um presente bastante antigo com que se afeiçoara emocionalmente, sabia que fumar fazia mal, mas a despeito disso achava-se dono de si.

Sozinho, às vezes pensava que a solidão era sua companheira de longa data. Mesmo quando andava com vários amigos pelos bares e restaurantes à fora. Num ímpeto em sua juventude concluiu que eles  estavam se perdendo em essência e que ele também se perdera, e se isolou por um bom tempo. Abandonado, ou pelo menos pensou que estivesse, passou a ficar cada vez mais solitário e vazio por dentro.

Sim, ele era inteligente, bastante até, Manoel era um dos homens mais inteligentes que essa terra criou. Falava oito línguas diferentes, conseguia discutir filosofia, história e até física dependendo da ocasião. E além disso era bom conhecedor de vinhos, música e moda. Era um bon-vivant por excelência. Mas vazio.

O Céu Magenta, seu último romance encalhado. Não por escolha própria, mas por falta de ideias, que vocês hão de convir são um passatempo bastante pernicioso para a vida de um escritor.

Enfurnado em seu escritório, olhando para a tela branca do computador piscar com violência para a sua retina, ele se retirou por um momento e andou em círculos a matutar. Os quadros na parede era arte ilustrativa, um neoimpressionismo de autoria do próprio Manoel em um momento de diletância pura. Os livros o acompanhavam impacientes, assim como o relógio de pêndulo e a máquina de escrever quebrada. Pensou:

            “Diabos, se a máquina tivesse funcionando eu já teria algo em mente”...
            Pensou em desistir da obra no meio do caminho, mas algo lhe fez desistir. Seja as oitenta páginas escritas, seja a ideia do romance ainda lhe parecer emocionante. Tentou matutar, até que sua cabeça doeu, e  ligou o rádio para ouvir algo de novo.

            Colocou no empoeirado microsystem um CD, um jazz de Louis Armstrong para tentar relaxar, não era por exemplo as suítes noturnas de Shostakovich ou as operetas de Giuzeppe Verdi. Ele tinha um estilo eclético às vezes, ouvia Carlos Gardel num dia e noutro estava ouvindo música tradicional irlandesa. Isso quando num deleite de ufanismo, não se dedicava a bandas militares. Algo lhe dizia que seu sangue tinha algo de cigano.

            Tomou um copo e serviu trago de whisky 12 anos. Que por sinal avaliou estar forte naquele dia, mas coberto de sombras, achou conveniente. Ele passou um tempo avaliando a escuridão e o teto, até que por fim decidiu que tudo aquilo era inútil.

            Ficou sozinho em meio aos seus pensamentos, percebeu que estava se sentido solitário e saiu para a noite suburbana e bucólica na Capital. A “cosmopolitana cidade de interior” como ele adorava chamar, ou mesmo o quadradinho do Planalto Central, às vezes lhe era acolhedor, às vezes era sufocante; Nesse dia era ambos.
            Tentou correr atrás de um ônibus tal como criança correra atrás de borboletas. Mas logo julgou isso inútil, e como um fantasma, de capa e calça jeans, vagou pelos bairros a procura de algo para fazer. Era um Hemingway sem fama, ou pior do que isso, um mero Paulo Coelho sem fé. E profundamente decadente de sentimentos procurou um pouco de descarrego.

            Tentou se mesclar nos bares, restaurantes, mas ele não conseguia ser mais um. Ele só admitia ser o único. E sempre foi assim.
            “Cidade ignóbil”, pensou.
            Andou pelas calçadas e com um tom bastante boêmio pensou:

            “E o jovem Souza Campos ainda cansado de mais um dia de trabalho, com o paletó nos ombros e um paiol apagado dentre os dentes sorria enquanto acompanhava com os olhos esbulhados o bonde passar da esquina de Santa Maria. O jovem mulato, que não era bobo nem nada, sabia que correr não iria adiantar, e exausto de suas forças começou a cantar.
            O malandro senta na mesa do café...
            Mas ele não era um malandro qualquer, era um sindicalista que gostava de brincar de sambista de vez em quando”

            Campos? De onde tirara esse nome? Ah, sim. Daquele seu antigo candidato que morrera num acidente aéreo. Por mais que os laudos da aeronáutica atestassem, ele ainda acreditava que ao avião tinha sido sabotado. E por quê? Porque ele não confiava em ninguém, nem na própria sombra.
            Puxou o cachimbo do bolso, mas não fumou. Ele não tinha mais o hábito de fumar. Não mais. Ele só gostava de morder o cabo daquele objeto, sentir a madeira desviar-se com o movimento da mandíbula e se sentir importante. Ele parecia o comissário Maigret, de capa e cachimbo na boca. Queria ele próprio ser descrito pela narração deliciosa de Simenon na Noite da Encruzilhada, ou Pietr, o Letão. Quase ninguém sabe o que ele devia estar pensando, e ele se sentiu confortável com isso.
            Sentou-se num bar e bebeu uma cerveja. Queria ler alguma coisa, seja um caderno econômico para ver os juros do Banco Central, seja álbum de figurinhas que tencionava completar. Mas nada disso, só tinha uma televisão velha que estava passando futebol, e pra piorar, nem era jogo do Corinthians!
            Pagou e saiu.

            “A lua está bonita hoje. Nunca vi céu mais belo do que hoje”.

            — “E olhou para a lua no céu da Guanabara. O céu exibia um clarão tão intenso que sequer o nosso querido personagem apercebeu-se que estava sendo vigiado de tocaia pelos delegados do estado da Guanabara. A reunião clandestina ocorreria de forma secreta nos porões da Fábrica de Motores Nacionais, e a tocaia dos guardas da Secretaria de Ordem Pública levaria a prisão de vários militantes naquele dia. Os dias eram difíceis, e ninguém sabia o que iria acontecer. Tantas greves! Será que Jango era comunista?”


            “Jango”. Sorriu. Era assim que chamava o seu melhor amigo, Jango. Isso foi há pelo menos quinze anos atrás, quando ele ainda era jovem e brincava de ser militante estudantil. Parece que foi em outra vida. E que bom amigo o “Jangoulart” era, nunca tinha visto uma pessoa tão honesta e capaz atuar na direção de uma entidade estudantil como ele. Quando o sucedeu, logo depois, não pode repetir o mesmo feito. Manoel reconheceu, ele era jovem, e bastante imaturo.

            Por onde ele andaria, de certo deveria ter se casado com aquela menina, ele gostava muito dela, ou talvez não. Mas o que importava é que talvez ele fosse o mais próximo do que viria a ser um irmão; Na época pensava assim, mas o tempo sempre foi um carrasco infeliz de amizades.

            Mordia o cachimbo com mais nervosismo enquanto subia a ladeira entre as quadras 400 e o Eixo rodoviário. Brasília era uma cidade estranha, com pessoas estranhas. E ele sorria com isso, não era como Rio de Janeiro ou mesmo a Sampa (ou “a pátria paulista”, como chamava em tom de brincadeira). Ela era uma cidade projetada para robôs, não para seres humanos.

            E ainda assim era bucólica e tão provinciana que chegava a ser mais uma porteira do Brasil Central.


            — “Povo Brasileiro, trabalhadores e nobres camaradas. Hoje estamos prestes a construir um dia histórico. Nunca antes na história desse país...” Não, não posso usar isso, isso cheira muito lula-petismo. “ ‘Nunca antes, tivemos tamanha força como agora.’ Souza Campos suava em forma de tufos em meio a holofotes, não esperava que tanta gente apareceria àquela reunião que devia ser clandestina, na verdade, até reclamou.”

            E anotou em seu caderninho. Uma caneta de pena saiu de seu bolso.

            Engraçado como ele começou a usar canetas-tinteiro, foi por intermédio de seu orientador. Ele se recusava firmemente à ostentação de ter uma caneta mais cara que uma BIC, mas com o tempo se seduziu pelo toque retrô e pela escrita deliciosa de uma ponta de irídio.
            Ele sorriu ao se lembrar disso, e a despeito de não ter correspondido às expectativas, lembrou-se com carinho do semblante bonachão e engraçado do seu antigo orientador.

            Subiu às 200 e tentou atravessar o Eixo que naquela altura estava bem movimentado. Uma música subiu-lhe à cabeça.


            — “Nossa senhora do Cerrado/ Protetora dos pedestres/ Que atravessam o Eixão/ Às seis horas da tarde”... — E sorriu.

            Não lembrava bem dessa música do Legião Urbana, mas a sensação foi exatamente essa. Brasília era uma cidade musical, cidade do Cazuza, Cássia Eller, Legião Urbana, Capital Inicial e tantas outras bandas. Não era uma cidade de escritores, como Port’alegre ou Curitiba.

            “Um fio de suor correu-lhe à espinha quando de repente viu vultos luminosos adentrarem na reunião... Souza Campos pensou em correr...”, matutou.

            Subiu a 109 Norte e a 309 com o cachimbo entre os dentes. E encontrou um sinaleiro fechado na Avenida W3. Cheio de sim, aspirou o cheiro de sua infância quando ele corria com sua mãe atrás das zebrinhas (que hoje não mais existem) para ir para casa.


            Ficou feliz com seu toque regionalista, lembrar de Brasília assim é para poucos; O metrô inacabado que parava na Praça do Relógio, o Teatro Nacional que vivia fechado em reformas, os blocos de pilotis dos prédios de apartamentos nas quadras 400. Onde às vezes ele ia namorar, ou fugia da chuva quando estava saindo da UnB.

            O Pastel de Cana carregado de óleo da Rodoviária, a cúpula de cimento pintado do Museu Nacional. Algo lhe lembrava a infância. E ainda assim lhe trazia más lembranças. Seu regionalismo era ainda limitado a tomar chimarrão e comer pão de queijo ouvindo samba em meio ao Carnaval de Olinda. Era algo estranho e amorfo.

            Ele tinha algo de estrangeiro, não só em seu rosto ou em sua pele pálida que o assemelhava a um eslavo. Mas ele era um estranho no seu próprio país, passara quinze anos fora. E se lembrou de recitar Carlos Gardel na hora:

“Yo adivino el parpadeo
De las luces que a lo lejos
Van marcando mi retorno...
Son las mismas que alumbraron
Con sus palidos reflejos
Hondas horas de dolor..

Y aunque no quise el regreso,
Siempre se vuelve al primer amor..
La vieja calle donde el eco dijo
Tuya es su vida, tuyo es su querer,
Bajo el burlon mirar de las estrellas
Que con indiferencia hoy me ven volver..”

                E lembrou-se de seu pai, quando ainda era vivo, quando esse tentava lhe dar conselhos de como lidar com o mundo. Hoje ele entendia o porquê. Ele estava só de verdade. E quando voltou para Brasília é como se tivesse voltado a seu velho amor, a cidade estava velha e ele também.


            Lembrava de sua primeira namorada, de quem fizera por muito tempo esforço para esquecer, para não sofrer mais ainda. Ou mesmo dos amores perdidos, da menina que retirou a sua virgindade que depois nunca mais desejou vê-lo, ou mesmo a outra que partiu para bem longe depois de uma situação indigesta.

            E pensou na última. Tinha ido para longe, foi para o recanto mais sujo da Europa e esquecido. Portugal. E ele não gostava muito de Portugal (sorriu). Portugal lhe deu muitas coisas, mas ele gostava de menosprezar aquele país que visitara apenas uma vez, e por vezes fazia troça do espírito português.
            Ele era anti-lusitano e ainda assim era luso-brasileiro. Engraçado.

            Acendeu o tabaco do cachimbo. A fumaça se fez. Será que ela estaria bem? Com certeza sim, casada talvez ou seria uma mulher de sucesso. Quinze anos, Gardel, Hondas horas de dolor. E ele viajara muito nesse meio tempo.


            O cachimbo lhe dera ideias. “Se escondeu na batida numa das sombras da noite, mas ele não pode esconder o seu espanto ao ver a polícia nocautear seus companheiros com saraivadas intensas de balas. Por vezes alguns se rendiam e era mortos ali mesmo com uma bala na nunca”.

            Andou pelo canteiro central da W3 com o concreto rachado pelas raízes das árvores maiores que a terra do Cerrado. Olhou para o alto e viu o reboco das marquizes descascar e aquela parte central que antes era viva nos seus olhos juvenis se desfazer na decadência dos anos fazem ao coração de uma cidade.

            Ali se multiplicavam os pontos de droga, os prostíbulos e a falta de paciência com a cidade por parte de Manoel. Andou recolhido em sua capa, como se fosse um inglês. Ou uma “águia das montanhas”, como gostava de se alto denominar no alto de sua arrogância e andou sozinho.

            Foi então que viu as prostitutas, uma delas o chamou:
            “Ei, gostoso. Vamos fazer um programa?”

            Ele ficou chocado no primeiro momento. Mas logo depois aceitou de sobressalto, ele era um Hemingway sem fama. E nem preciso descrever esse momento de intimidade seu.

            Perdido e velho. Estava com trinta e tantos anos na cara e ainda não sabia o que era si. Ele vagava como se fosse um fantasma e pior do que isso, não conseguia fugir do alto de sua autopiedade. Sozinho e amargurado, sentiu-se sujo, até que por fim voltou para casa e olhou seu bloco de anotações.

            Manoel se lembrava muito de sua juventude, de como viajara como mochileiro pelo Cone Sul com um amigo ou mesmo como fora sozinho de Lisboa até a Sibéria apenas de trem durante dois meses bastante felizes na companhia de uma namorada provisória. Mas lembrou-se que escritores não tendem a ser felizes, felicidade foge muito do que vem a ser a arte.



            Velho, bêbado e meio sozinho, ele avaliou a sua vida e julgou: “Minha vida é uma merda”. E no fim, apenas fumou um trago de seu cachimbo quando chegou em casa.

"Volver... con la frente marchita,
Las nieves del tiempo platearon mi sien...
Sentir... que es un soplo la vida,
Que veinte años no es nada,
Que febril la mirada, errante en las sombras,
Te busca y te nombra.
Vivir... con el alma aferrada
A un dulce recuerdo
Que lloro otra vez"

E se sentiu mais vazio do que o pó das cinzas do tabaco e a fumaça negra carregada de alcatrão.

Haber e o uso da ciência para o "bem" e para o "mal"

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