quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Crônicas de uma velhice prematura

       Meus dedos enrugam, meus olhos se cegam e a chuva caí sobre meu rosto. O rosto envelhecido e sem vontade, tomado de rugas e de falta de consolo. Espero no frio um pouco de acalanto um pouco menos de tristeza, mas quando volto à casa de meu pai tudo que sinto é um misto de saudade envelhecida numa mente bolorenta de ideias. O casarão envelheceu tanto quanto eu e as janelas de ferro enferrujaram como as memórias da minha juventude.


       Nunca trocamos muitas palavras, eu e meu pai passamos anos brigando, mas no fim o que mais conseguíamos era nos respeita. Naquela época eu tinha sonhos, meu pai, a realidade. Um dia apertamos as mãos e começamos a conversar. Antes tarde do que nunca, hoje eu percebo. Na época era tão imaturo que me julgava poderoso em meu pedestal de livros fracos.

     

         Queria ter mais momentos de reflexão como esse, sem que precisasse fumar um tanto de tabaco na madeira de meu cachimbo trincado nos dentes. Meu pai não sabia que fumava escondido e me bateria se soubesse. Ele era uma pessoa risonha que raramente chorava... só o vi chorar uma vez, quando viu que iria me perder. Meu velho pai já de cabeça branca não tinha mais esperanças em suas mãos, não tinha olhos senão para o passado e o coração amargurado de tamanha tristeza.

        Quando arrumei minhas malas, vesti minha jaqueta e calcei os meus sapatos. Ele veio e me abraçou, não disse nada. Não me perguntou como costumava fazer em todo início de mês se eu tinha dinheiro suficiente, ou se andava almoçando. Não, ele sabia que era o nosso último dia. Nossos futuros eram diferentes, o lugar dele era ali, com o seu emprego e ao lado de minha mãe. E meu lugar era justamente o contrário, o mundo e ninguém ao meu lado.

         Ele nunca compreendeu o lado anárquico de minha pessoa e eu nunca quis me justificar tentando explicar. Eu descobri a verdade no mundo sem descobrir a mim mesmo e tomado pelo espírito nômade de meus pés, eu vaguei por onde nunca imaginei até o sangue se transformar em vinho que a terra bebericou com a chuva.

         Foi ao mesmo tempo belo e doloroso saber como tudo acabou. A tristeza com que meu pai esperou os seus últimos dias afundado numa cama esperando pelo filho que não retornava, desejando vê-lo mesmo sabendo que estava no outro lado do mundo. Ele me esperou sem saber que eu tinha desaparecido com a minha força de vontade.

        Vaguei sozinho por anos, levei nas costas os grilhões de vidas passadas e aprendi o que era a humildade. Meu pai que esperou tanto percebeu que seu filho só chegava atrasado e quando descansou, eu estava olhando o céu sozinho sob as montanhas de um lugar desconhecido. Um vento gelado cortou o meu coração e gelei com tudo isso, desci as montanhas corri para onde os meus pés me levavam até que o cansaço tomasse o meu corpo por completo e ainda assim não cheguei em casa.

          Quando cheguei a memória de meu pai tinha partido, ele que nunca usava gravata, estava vestido com uma bastante extravagante em seu paletó de madeira no púlpito em que poucas pessoas pronunciavam o seu nome. Minha mãe e eu não dirigimos uma só palavra, como previsto, nenhum de nós dois se perdoava, enquanto meu pai, cansado por toda uma vida, finalmente descansou. Eu beijei suas mãos e me inclinei para que visse meus olhos.

          O corpo dele estava gelado, suas mãos morenas engasgavam a rosa depositada no caixão. Eu me perguntei se tinha sido ele ou eu que tinha partido. Até hoje não sei qual era a resposta. A minha juventude se foi, o cabelo sempre tão rebelde passou a ser penteado e passei a vestir terno. Com a pasta nas mãos, abandonei meus sonhos e batalhei por dias e dias lembrando da tristeza de meu pai.

           Eu não lembro de ter chorado desde o dia que ele partiu, mas quando encontrei o velho sobrado ainda preservado, desabei. Não tive coragem de vendê-lo, aquele casarão era o maior sonho de meu finado pai e era a mostra de amor que ele tinha conosco. Eu ainda lembro do dia que ele apareceu sorridente com as plantas do escritório de arquitetura e me pediu para escolher um dos desenhos. O desenho que eu escolhi nem era o mais bonito, mas foi o que construíram.

      Todo o suor gasto para lembrar das lágrimas que nunca tive. Meu pai viveu nessa casa, eu nunca. Minha velhice enrugada esperava um sinal de conforto que nunca tive, porque nunca tive nada para ser reconfortado. Nunca me faltou nada, nem amor, nem tristeza. O relógio de meu pulso tomava meus ouvidos enquanto a chuva caía sobre o meu casaco, os velhos fantasmas sorriam para mim sem que me lembrasse dos dias felizes de minha vil juventude.


      Enteado de meu pai, depois de anos de profundo silêncio tudo que consigo dizer é que eu o amava, do meu jeito, frio e calculista. Sem que isso me cortasse a lembrança de tê-lo detestado quando criança. Apenas a velhice nos revela a maldade das coisas mundanas.

domingo, 7 de dezembro de 2014

Garis

       Há muito tempo que meus dedos não massacram as letras com sua fugacidade, Crisálida envelhece a cada dia, escondida atrás de sua pequena pasta verde de plástico escovado. A velha Olivetti Lettera 82, 1963 está cada dia mais empoeirada sem que seu dono negligente tome nota de sua preciosidade embutida no escritório recém bagunçado. Os livros se acumulam ao seu redor e a poeira também.

        O rádio não toca mais há algum tempo e não há mais whisky debaixo do esconderijo. As ideias fugiram com o passar dos dias e a preguiça associada à inércia levaram o desaparecimento das palavras. O academismo sufocou a livre iniciativa, mas vamos há um conto negligente de dezembro.


        Como podem ver no céu, e no recanto de sua janela, Brasília chove quase a todos os dias. Chove de forma não programada, pegando a todos desprevenidos. Dessa vez fui eu. Atrasado, corria atrás de um ônibus que se tornou um fantasma em meio à mais uma greve de coletivos. Estava vestido como um inglês, mas de inglês não tinha nada, porque tinha esquecido o meu guarda-chuva.

        Fui à banca de jornal, coisa corriqueira e banal. Como comprar chicletes e colocar crédito no celular. Gotejava um pouco lá fora, minha capa me protegia, mas minha mochila me preocupava. Era a segunda vez que enfrentávamos a chuva e a primeira não foi muito animadora. Meu livro do Georges Simenon ficou todo empapado, junto com meu caderno de rascunhos e minha caixa de canetas.

        De fato, mesmo as nuvens estando carregadas. Cinzentas, mais cinzentas do que o concreto e o asfalto. Não dei muita confiança à tempestade; Devia ter me precavido porque "O inferno está deserto e os diabos estão aqui".

       Os ipés vermelhos coloriam os jardins de minha quadra, enquanto os carros corriam de farol alto diante a neblina. Não vi pedestres ou ciclistas e as poucas almas penadas que vi eram feitas de açúcar pois fugiam correndo de algumas gotas de chuva. A garoa estava ligeiramente fria e refrescante, fazia dias de calor, mas começava a engrossar.

       Encontrei um cachorro, meio asno, que correu em minha direção achando que eu era seu dono. Ele reconsiderou quando um trovão caiu bem perto de nós num descampado. A chuva estava cada vez mais forte e meus cabelos, antes desgrenhados, se pentearam pela a água que ensopara toda a minha cabeça e o meu casaco. Apressei o passo e a chuva tratou de se apressar também.

      Na rua as goteiras se somavam e pintavam o asfalto com tons cada vez mais enegrecidos e aquáticos. O reflexo das poças d'água criava pequeno espelhos de ângulos desconhecidos do meu semblante apressado. A mochila, como eu imaginei, já estava ensopada e meu humor também. Encontrei com segurança a parada de ônibus, toda revestida de vidro fumê e plástico que para a desgraça do arquiteto, era profundamente ineficiente e tinha goteiras.

        Duas pessoas se escondiam ali, encolhidas no frio com que o vento violento ceifava as almas mais esperançosas. Um, era um velho que apenas caminhava e foi surpreendido pelo aguaceiro e a outra pessoa era uma doméstica, essa sim estava empenhada em chegar em casa. Eu só queria esperar a chuva passar e ir trabalhar. Eram 15:00 da tarde.

       Numa sexta feira, encontrar um ônibus à tarde é um sacríficio. Imagine quando há greve. Fitei os carros que corriam no vazio do asfalto, enquanto os filetes graúdos de chuva engrosssavam. Ao acompanhá-los com os olhos, encontrei um carrinho de mão com ferramentas de jardinagem. Um aparador de grama, uma foice e uma tesoura de ponta. Um caminhão do Sistema de Limpeza Urbano estava estacionado bem próximo da parada, inaudido à percepção de todos. A chuva era a maior preocupação na hora.


      Um trovão desabou num gramado bem em frente de nós, prenunciando um mal presságio. A chuva violenta vinha do Norte e sua violência correu de uma só vez para os pobres indefesos que estavam na parada de ônibus. Como eu previa, o  vidro daquela instalação vagabunda não foi pensado para uma tempestade e o vento ameaçava retirar o vidro fora. A água começou a entrar no abrigo, e a molhar nossas cabeças debaixo do teto.

      Nós três ficamos reféns da boa vontade celestial. Os ventos me forçaram a sair da parada e me esconder atrás dela, visto que a chuva estava partindo de frente àquela estrutura. Gotejava e a fragilidade daquela estrutura não parecia inspirar conforto. Quem andasse naquele vendaval poderia ser perfeitamente arrastado. Um tufão ou algo parecido.

         Um dos garis gritou de dentro do caminhão-baú, olhando todo nosso sofrimento. Gritou e acenou:

     "EI! VENHAM PARA CÁ!"


      Desconfiados, as duas companhias que tinha entreolharam entre si. Mas num impulso sai correndo tentando me proteger. A chuva estava cada vez mais forte e daqui a pouco era a parada que sairia voando, junto com vacas e casas por aí. Apenas eu tomei coragem e subi no parachoque e depois na caçamba do caminhão.


        Lá dentro, com os cabelos pingando e a capa toda ensopada agradeci ao gari que retrucou olhando em direção à chuva:

       "Eles não quiseram vir, bom, o problema deles. Pode ficar até a chuva passar."

        "Obrigado"

         Eram 3: 23 segundo o meu relógio, que estava igualmente ensopado. Ali dentro percebi que não havia só um , mas vários garis. Sentados em torno de uma roda, eles esperavam a chuva passar. Alguns jogavam dominó, outros apenas jogavam conversa fora. Muitos nem sequer dignaram a me cumprimentar, eu não reclamei, eu era um intruso em seu ninho.

         Aqueles semblantes cansados e simples denotavam a dureza de seu serviço, que era capinar a grama todos os dias e garantir que as arvores e as folhas continuassem impecáveis. Funcionários da NovaCap, provavelmente receberiam tão pouco para operar um trator ou cortar um quilômetro de gramado. Eles discutiam o atraso do serviço:

         "Todo dia chove. A gente começa de manhã, e aí começa a chover. Aí a gente para, quando a chuva dá um tempo. A terra tá tão molhada que chega atrapalha. Quando dá pra cortar a grama, chove de novo"

         E a chuva batia cada vez mais forte na lataria do caminhão. A atmosfera era quente e acolhedora, bem melhor que o frio que fazia lá fora. Úmido e deprimente. Aquele ambiente não chegava a ser confortável. Havia poucas cadeiras e o chão estava sujo de terra que sentia-se o odor campestre dentro do caminhão. Fosse fertilizante ou a terra mesmo. O suor também figurava ali, das roupas e dos rostos. As ferramentas estavam dentro de um armário, junto à uma mesa onde tinha café.

        O gari que me convidou ao abrigo, me ofereceu o café. Eu aceitei. Senti o gosto amargo descer quente por minha garganta, mas era o máximo de cordialidade que poderia esperar. Aqueles semblantes me olhavam desconfiados e eu sabia o porquê. Eu estava bem vestido demais e parecia esnobe aos olhos de muitos. Fiquei olhando para o chão, calado enquanto a chuva corria lá fora. O trovão cortou meus ouvidos e o olhar de censura levou-me um pouco do meu orgulho.

        "Bucha de seis! Você morreu com uma bucha! Seu imbecil" Brandiu um jogador ao parceiro enquanto batia as pedras na mesa.

        Aquele grupo de garis de longe estava mais preocupado em voltar ao trabalho do que eu a sair daquela chuva. Discutiam quanto tempo levaria para fazer todo o serviço estipulado. Vez ou outra comentavam sobre a chuva, ou da família. Mas não demorou muito para que ficassem silenciosos sob minha presença.

        Fiquei ciente disso, e desconfortável, esperava aquela torrente de água passar. Mas não, ela só piorava. Na parada via as pessoas que tinham se recusado a ir no abrigo ficarem tão molhadas que poderia-se fazer uma sopa, era ridícula a ideia de tomarem um segundo banho vestidas, apenas por orgulho. De fato, o céu cinzento não me parecia promissor, mas a imagem de nenhum ônibus passar também não era muito reconfortante.

            Tentei me enxugar com um pano que tinha na mochila e conclui que estava ensopada de novo. Outro livro estragado!"Maldita cidade, passa seis meses sem chuva e quando chove parece que vai cair o dilúvio", disse um dos garis.

           O vento bateu mais forte, movendo a lataria do caminhão de forma preocupante, embora as chances de capotar pelo vento fossem pequenas, o veículo nem por isso deixou de balançar. Foi aí que passou o meu ônibus, não tive tempo de correr para pegá-lo, nem os outros passageiros que agora se acumulavam na parada. Tinha perdido e iria chegar atrasado, já era 3:56.


            O tempo demorou a melhorar. E mesmo olhando de longe a chuva se dissipar e os filetes de chuva se esfarelarem numa garoa fina, ainda demorei a tomar coragem para sair. O olhar curioso e desconfiado de um dos garis me deu forças para me despedir. Foi então que eu percebi, que era uma das raras vezes que não tinha nada a ver com as pessoas ao meu redor. E eu era um estranho na matilha.

           Agradeci com sinceridade o abrigo, e fui tratado com uma educação polida pelos demais. Saltei do caminhão e não ouvi os comentários maldosos que possam ter feito de mim. Na parada, os que ficaram me olharam com censura por estar seco enquanto eles estavam com as roupas completamente coladas no corpo. O tempo passou... A chuva continuava e mesmo assim nada do ônibus. Os desistentes se convenciam que todo aquele esforço fora inútil, e iam a pé para as suas casas.

        Fui o último a ficar na parada. Percebendo que só eu estava ali em pé, porque os bancos estavam molhados, também fui o último a desistir e a voltar para casa. A grama estava verde, as flores estavam vermelhas e o asfalto bem escovado e transparente. Contudo, não me esqueci o modo como aquele gari, na sua simplicidade me acolheu na chuva e me ofereceu um pouco de café, e também não esqueci o olhar desconfiado com que me olhavam os demais naquela cena tão estranha, tanto para eles quanto para mim.


        Esse fosso é bem mais fundo do que a gente imaginava. É bem mais fundo do que o Mar Vermelho.

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