quarta-feira, 31 de agosto de 2011

A caneta nanquim (texto do blogueiro)




Numa paisagem bucólica, um tanto silenciosa, numa das numerosas ruas da capital, caminhava um apressado jovem com um horário extremamente corroído.
Não notara com afeição alguma aquela paisagem;  não prestara atenção nas árvores retorcidas, os ipês amarelos, os eucaliptos transplantados e os cedros de pequeno porte, ao passar pela pequena pracinha dali.
Voltara de uma extenuante e entediante aula na universidade e totalmente exausto com a fala tediosa de sua professora cadavérica e rigorosamente irritante, só tencionava descansar como qualquer pessoa normal.
Trabalhara a noite anterior inteira num projeto para a universidade que até se esquecera que tinha dormir certa altura.
Sabia que não gostava de acordar tão cedo para seguir a uma aula tediosa. Sonolento, mas apressado, pegara duas conduções em direção ao pequeno sobrado em que morava naquele bairro bucolicamente tranquilo no centro da Capital.
Nem parecia estar na capital. Aquele era sem dúvida um dos lugares mais tranqüilos dali, em sua quadra, o ultimo crime que se tem notícia já passa mais de oito meses! Ali, não havia muitas algazarras durante a noite, uma ou outra festa no final de semana. Parecia uma cidade do campo de tão tranquila, mas nem por isso era isolada aquela localidade,  ficava a duas quadras do shopping e meia do centro comercial mais próximo; tinha uma padaria, dois mercados, dois bares, quatro barbeiros, uma pizzaria, uma casa de finanças, uma verduraria, uma academia, um curso de línguas e até uma funerária, não precisava nem sair dali.
Contudo, a vida daquele rapaz era totalmente voltada ao seu estudo na Universidade e no centro da Capital, não muito longe dali, mas mesmo assim, passava pouco tempo em casa.
Por sinal, tocando na conversa da casa, sua casa era um tanto exótica, no térreo, tinha uma grossa cobertura de cerâmicas brancas nas paredes exteriores, com as grades e janelas verdes, enquanto no pavimento do casarão, uma parede texturizada em um grafiato verde-paraiso coloria o repertório com telhas amarelo-pardo. Era sem dúvida uma prova de mau gosto de arquitetura.
Ele nem se importara com isso, passara só alguns minutos descansando em casa e logo correu em direção à barbearia local, onde cortaria seu cabelo e bateria papo com seu velho e tão bem conhecido barbeiro.
 Não foi o que aconteceu, tanto o barbeiro quanto o jovem ficaram calados. As conversas saudosas de política e futebol que os dois travavam com alegria, sequer passaram pela língua. Fora uma fria e curta sessão no barbeiro. O jovem sentiu-se estranho com isso.
Vestiu seu querido chapéu panamá amarelo e despediu-se secamente de seu barbeiro, após pagar-lhe uma quantia considerável pelo corte.
Cruzando a pequena praça, caminhou dentre as mesas de xadrez ali posta, onde os velhos desocupados daquele lugar se reuniam ao final de semana para bater papo e jogar dominó. Ele sequer tivera tempo de desfrutar da beleza que aquela praça proporcionava a todos os moradores; não prestava atenção na quadra poliesportiva dali, tampouco nas orquídeas e as margaridas exalantes nos numerosos jardins dali.
O jovem rapaz era pouco conhecido por ali (só mesmo de vista), mesmo morando ali há quase cinco anos, era ainda uma pessoa fechada, silenciosa, mas era um trabalhador dedicado, tão dedicado que raramente ficava em casa ou saía para festejar.
Ao cantar dos passarinhos, o jovem caminhou dentre o piso ladrilhado naquela tarde ensolarada da estiagem dos meses de agosto-setembro. Sua surdez parcial, em um ouvido, talvez um problema congênito, associada a sua pressa, o impediram de apreciar aquela beleza da situação.
O jovem rapaz, escritor nas horas vagas, e historiador nas horas corridas; tinha manias a si. Só conseguia escrever uma só palavra se fosse com sua amada e preferida caneta nanquim preta de 0.3 milímetros, caso o contrário não redigia sequer anotações importantes.
Caminhando na rua, sob o sol alaranjado do meio-dia, passou em frente às vendas locais, até encontrar-se de frente à última loja daquele conjunto comercial, lá era a papelaria.
Era um lugar vazio, isolado, ninguém sequer lembrava que ela existia, nem mesmo posso dizer que estava às moscas, pois nem mesmo moscas passavam ali.  Lugar tristonho aquele, sem nenhum cliente ávido por algo, com as prateleiras repletas de canetas e lápis, sob a ação da poeira corroídas, aquilo dera uma sensação de solidão ao exausto estudante.
Via ao fundo uma jovem moça arrumar uma papelada sobre a bancada, de costas para a entrada da papelaria e fracamente disse:
— Bom dia!
Ela não escutou, e ele não tencionava falar mais nada, apenas via a doçura laborante em sua frente. Verdade seja dita, o jovem sequer trabalhara uma única vez na vida, mesmo não tendo idade para tanto, não tencionava trabalhar tão cedo, mas não planejava ser sustentado pelo seu bem sucedido pai empresário.
Observava de longe o reluzente cabelo negro daquela inocente moça que estava apenas interessada em seguir o seu trabalho e com delicadeza a olhou sob uma ótica incomum. Ele não sabia quem ela era, mas sabia que algo nela o atraía.
O gritar vulgar de uma velha gorduchona, baixinha de nascença, que arrastava a mochila de sua filha para um apartamento  naquele edifício interrompeu por vez o silêncio estabelecido.
— Anda logo, menina! Você tem que fazer a lição de casa!
Virou-se o rapaz em direção a voz e após perceber que não era nada, retomou a olhar a moça, mas naquela altura, ela já percebera sua presença.
Ele era tímido, muito tímido, quando a viu caminhar para perto de si, quase não conseguiu pronunciar as palavras que viera a pensar. Sentia-se patético e então quando ela aproximou, disse com voz fraca:
— Você tem uma caneta nanquim?
— Nanquim?
A moça era baixa, não baixa para uma garota, mas baixa em relação ao estudante, tinha olhos penetrantes, de azul vivido intenso, cabelos lisos e negros como a noite, seu rosto era tremendamente lindo: sua boca era fina e sensual, seu nariz era fino e estreito.
Ela adentrou-se dentre as fileiras expostas defronte ao galpão e procurou com empenho a pequena caneta nanquim. Mas então ela entreolhou o solitário indivíduo com um olhar tristonho:
— Não, eu acho que não tenho essa caneta, moço. Eu tenho a tinta nanquim.
Aquele olhar deixou taciturno por um momento o estudante, que sentiu-se coagido a comprar a tinta nanquim, sem mesmo saber para quê servia.
— Pode ser.  Deixe-me ver a tinta.
A tinta era um tubinho pequeno, de plástico, de bico fino, uma coisa pequena e não muito cara. O valor era irrisório para o garoto.
“O que uma beleza como essa faz num lugar como esse? Eu realmente não entendo, ela poderia conseguir definitivamente uma coisa melhor. Mais que bela ela é. Que beleza a dela! Esse olhar, esse rosto, esse carisma... Meu Deus! Como eu queria... Como desejo... Eu... eu. Deus, tenho que controlar meus desejos!”
Já imaginava ele, com um emprego respeitável, assumindo os negócios de seu velho pai, e ela ao seu lado, ajudando nas finanças. Imaginava ele, passear à luz do luar, às margens do lago enquanto recitava sonetos românticos e acariciava-lhe o rosto. Se imaginava ele, deitado no colo daquela impressionante donzela, observando as nuvens, em cima de um gramado, ao tocar de violinos estridentes, num dos inúmeros parques da cidade.
Sabia ele que nada disso poderia ser possível, ela era visivelmente mais velha (tinha por volta de vinte a vinte e três anos) e ele só dezessete, mas não custava sonhar.
— Tenho esses modelos.
— Não, eu gostei desse aqui mesmo.
— Vai ser dessa cor?
— Você teria a cor preta?
Ela pegou a tinta de minhas mãos e retirou um mostruário daquela tinta na cor preta. A observava discretamente enquanto caminhava para o balcão.
— Um real e noventa centavos.
  Entregou-lhe uma nota de dois.
— É que eu estava era procurando uma caneta para desenho, você não teria essa mesmo? — Sentiu-se terrivelmente idiota ao falar isso.
— Como é essa caneta? É a primeira vez que ouço falar dela. Para quê serve?
— Ela é uma caneta de desenho, que eles usam para fazer mangás, no meu caso, uso para escrever.
— Ah! Tá. Aqui seu troco. Só isso?
— Sim. Obrigado.
— Obrigado a você.
O idiota sequer tivera a coragem de lançar um gracejo, uma cantada, ou mesmo um convite. Fazia quase um ano que não via sua querida e adorada donzela, a qual tanto amou, mas que o tanto rejeitou. Sentia uma tremenda dor no coração, ao sentir  que um dia acabaria sozinho, sem ter nada, nem ninguém. Baixou sua cabeça e percebeu de que nada valiam suas roupas da moda, a riqueza de sua família, seu “trabalho” na faculdade, sem ter a menos conquistado isso: um amor.
Observou o frasco de tinta e o enfiou de volta na sacola, caminhando pelo sol escaldante observou os outros nada fazerem, no seio do seu ócio do inicio de tarde. Caminhou pela rua, pensando no quão bom seria ser amado por aquela mulher, que trabalhava naquela pequena papelaria e que não sabia o que era uma caneta nanquim.
No fundo, ele sabia que nada disso aconteceria. Esbravejou algumas palavras em russo (sua língua preferida dentre as que sabia falar) e prometeu a si mesmo nunca mais se prender a uma única mulher. Nenhuma.
À noite, logo depois de voltar à universidade, deitou sua cabeça no travesseiro e cochichou para si: “ Ah, minha querida I. (inicial do nome), porque você não me amou? Por que, I.? Será que não sou bom o suficiente para você? Será que... " Levantou-se e correu em direção ao banheiro da suíte, onde se olhou no espelho.
Viu ali uma figura magricela, pálida, de cabelos cortados, olhos estreitos, nariz pequeno e largo (embora tivesse antepassados judeus), orelhas de abano e um queixo pontiagudo. Olhou para si, encarou-se com ódio e bateu levemente a cabeça no vidro do banheiro, sem quebrá-lo. “Meu Deus! Que coisa horrível eu sou! Essa coisa que tenta todo dia levantar-se da cama para seguir em frente, tentando por fim ser amado, mas no final é tão vazia e crua como o frio gélido do Espaço”
“Devo deixar de procurar outra pessoa, meu destino é ser só e só ficarei”
Voltou para cama e emergiu-se no sonho (sonhava sempre ser um bastião da liberdade, um líder das massas, mas nunca conseguia ser mais do que isso), no dia seguinte, logo de manhã, ele voltou para a papelaria de novo (sua mente fraca!).


PS: O jovem aqui representado, não é mais ninguém menos do que o próprio escritor, essa é uma história verídica e isso realmente aconteceu.

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