sábado, 17 de setembro de 2011

A Peruca (texto do blogueiro)



                Zizinho, um moleque sapeca, e Bolão, um garoto não muito esperto formaram um grupo de traquinagens que ficou conhecido como os Pestinhas.

Zizinho, sendo um moleque muito altivo,  era do tipo que coloca cola no leite do gato, enrola o cabelo trançado das meninas nos postes e mija nas flores, enquanto rouba mangas do mangueiral do vizinho; aquele tipo traquina que nos encontramos com certa facilidade nas cidades do Interior.  
Bolão, um garoto meio gorducho, que pensava mais em sanduíche de presunto com geléia de morango (gosto não se discute) do que em realmente pensar em fazer algo inteligente; era com certeza do tipo que todos naquele bairro não o considerassem muito esperto, afinal de contas, ele ainda achava que três vezes três era 333!
Esse grupo tão diverso que se formou, compunha-se de quatro garotos desocupados que não viam o que fazer a não ser travessuras dia a após dia, por falar em travessuras, a primeira foi...
...
— Tem certeza que quer fazer isso? — Disse Gerson.
— Claro que sim, se nós roubarmos pêra da Dona Neide, será nosso início — Disse Zizinho.
— Isso é pura loucura! — Exclamou Beto.
— Loucura é não tentar — Advertiu Bolão enquanto degustava-se de seu mais novo experimento, o sanduíche de pasta de amendoim e geléia com presunto, geléia de framboesa, queijo gorgonzola e pimenta malagueta.
À sombra daquela copa daquela imponente cerejeira, no meio do sol de setembro, os dois, observantes para os riscos dísticos feitos no chão por um graveto que Zizinho encontrara largado por ali perto. Era o plano para roubar a peruca da Dona Neide.
— E o que faremos depois? — Disse Gerson.
— Esta parte ainda está em estudo — Disse Zizinho.
— Como ainda está em estudos!? Vamos nós meter a roubar, com todo o perigo e ah, ah, ah — Sacou o seu respirador portátil de asma — Afinal vamos roubar por nada?
— Contanto que roubemos a peruca, o resto pensaremos nós depois. Não se preocupem — Falou Bolão.
— Você!? Isso não é animador, afinal o que fará com a peruca? Irá comê-la?
— Ora, seu.
Zizinho apartou a briga e esbravejou:
— Diabos! Vai dar tudo certo, confiem em mim.
Assim o grupo se dispersou conforme o plano de ação enumerado por Zizinho, e todos seguiram para providenciar os elementos necessários para a execução do plano.
Para o bom leitor, meia palavra basta. A Dona Neide era na realidade professora de francês da turma de Bolão, que por um acaso do destino (ou não) havia reprovado Zizinho.
Caminhavam os dois lado a lado, Zizinho e Bolão, enquanto se aproximavam a rua onde morava a professora.
— O que me dá mais raiva, Bolão, é o fato daquela velha raquítica ficar se vangloriando por ter cursado doutorado em Princeton e mestrado na Royal University of Oxford — Disse Zizinho.
— Royal o quê?
— É um nome bonito para fã clube de CDFs.
— Ah!
— E além disso, o francês dela é tão podre que mais parece que ela cursou a universidade de Piracicaba.
— HA! HA! HA!
— Vamos, Bolão, acabe com esse sanduíche de atum com chocolate ao leite e molho tártaro.
— Mas está tão bom!
— Engula logo de uma vez!
— Certo.
— Temos que chegar antes dos outros na casa de Dona Neide para roubar essa tal peruca.
A casa de Dona Neide era um velho sobrado que estava caindo aos pedaços, com taipa corroída de cupins, com janelas que já não fechavam direito, e uma fachada que mais parecia um esquife de cemitério. Ficava no centro daquela bucólica cidade de interior, que tanto idealizamos nós,  os escritores, entre a avenida Tancredo Neves e a rua Lúcio Costa próximo à represa Marquês de Pombal.
Era uma rua tranquila aparentemente, embora fosse abandonada, mas de certo, era até bonita, já ficava na orla da represa. Outrora, aquilo fora uma vila de pescadores, onde o pequeno porto, de onde só restam as ruínas, fora próspero durante o Ciclo da Borracha. Agora, aquela parte, que um dia fora Pará e tornou-se parte do Estado de Tapajós, parecia talvez mais esquecida do que já fora um dia.
— Fez o que eu disse para fazer, Beto? — Inquiriu Zizinho.
— O que eu devia fazer?
— Ora, seu xibungo, vou cortá-lo em três!
— Ah!!! Está falando do laxante no café da professora! — Falou em voz alta.
— Calado, estrupício!
— Desculpe, Zizinho.
— Onde ela está? — Questionou Gerson.
— Está até agora no banheiro fazendo sabe-se lá Deus o que está fazendo.
— Excelente! — Falou Zizinho.
Virou-se então para Gerson e disse:
— Gerson, você trouxe o equipamento.
O pequeno garoto, “tampinha” como vezes era chamado, e com suas feições de roedor (dentes incisivos desproporcionais, olhos oblíquos e cabelo cortado à la major), rebuscou em sua bolsa de trapo, os instrumentos que afirmava ter colocado ali logo cedo.
— Sim, Zizinho.
— Ótimo! Pelo que sabemos, provavelmente a peruca da professora deve estar no quarto dela, próximo à mesa de cabeceira. Agora quem irá lá?
O silêncio paira no grupo com um aspecto quase funesto.
— Se ninguém se habilita, iremos todos. Beto, fica vigiando.
— Mas eu...
— Sem mas, nós vamos entrar lá.
A casa era um tanto espaçosa, tinha quase vinte metros quadrados apenas na sala, talvez mais. E seu aspecto, um tanto clássico por sinal, que combinava com certeza Art Noveau e estilos da virada do século passado, trazia um caráter meio draconiano ao local, por se tratar em específico de uma mobília aparente pesada e escura, que dava um tom de sobriedade ao local.
Subiram os três na garborante escada em caracol que com seus degraus rangia a cada passo pisado, considerando que o mínimo sussurro poderia matar o grupo de susto, não era prudente fazer tanto barulho.
O quarto da professora, a suíte de núpcias daquela viúva, ficava à terceira porta à direita, ao lado do lavabo coletivo e do ateliê que provavelmente ela usava para a treinar o seu coro.
No quarto, predominava a figura de um aposento simples, que ostentava em si, apenas dois armários de madeira de lei, uma cama de molas de metal, um mesinha de cabeceira, uma estante de maquiagem e uma vitrola com Lps da década de 1930. Havia ali também uma escultura e uma réplica de a Gioconda de Da Vinci.
— Bolão, ali! Pega a peruca!
A peruca repousava ali, próximo ao cabideiro de chapéus da velha senhora, era realmente nojento pensar que aquela peruca amarela em tom de gema de ovo, poderia esconder uma cabeça completamente calva.
Bolão caminhou até o cabideiro e apalpou a peruca com certa repulsa, ao perceberem que estava um tanto úmida, com uma substância gelatinosa de propriedades desconhecidas, gritou:
— Que nojo!
— Nojo você?  Deveria sentir nojo dos seus sanduíches, e não disso!
— Calem a boca, ela pode nos escutar.
Escutou-se do lavabo ao lado um gemido surdo de puro esforço, aquilo foi tremendamente risonho para os garotos.
Bolão pegara a peruca pela ponta dos dedos, mas desastrado, como sempre fora, acabou esbarrando num copo onde repousava sobre a água a dentadura da professora.
— Alguém está aí? — Ouviu-se do lavabo — Se tiver alguém aí, me traga papel higiênico.
Todos ficaram incrivelmente silenciosos, mas o momento de silêncio foi interrompido pela exclamação de Bolão:
— Ai!!! Tira isso da minha mão! Tira!
A dentadura cravejou em cheio a mão esquerda do estúpido garoto que agora não conseguia mais  se desvencilhar daquela estrutura repleta de dentes postiços.
— Silêncio! Quer que ela venha? — Cochichou Gerson
— Mas está me machucando!
Zizinho se aproximou do seu amigo um tanto lerdo e com extremo cuidado retirou a dentadura.
— Puxa! Você estava fazendo um escândalo desses por causa desses dentinhos! — Comentou Gerson.
— Mas eles são bem pontiagudos. Veja como são afiados!
No seio de sua inocência, Bolão prendeu a dentadura na mão de Gerson.
— Você viu?
— Filho da...
Após minutos de palavrões, exclamações e reclamações, Zizinho falou:
— Vamos logo que daqui a pouco ela deve estar saindo da “casinha”.
O grupo encontrou-se com Beto no quintal da propriedade.
— Dê-me a tinta azul, Bolão — Disse Zizinho.
— Aqui, Zizinho — Entregou-lhe o frasco daquela tonalidade anil acrílica.
Com um certo espírito de traquina, que por sinal havia tomado o jovem menino, Zizinho despejou a tinta anilada por todos os pequenos fios daquela peruca já um tanto desgastada.
Os garotos, traquinas, como eram, gargalhavam consigo como as hienas na hora da refeição.
— O que faremos agora?
— Dê-me a supercola, Gerson.
Enquanto Bolão chorava de tanto rir, ali, se debatendo no chão, Zizinho colocou a cola na peruca de Dona Neide e quando o idiota do amigo distraído do garoto, tomou de suas mãos, para brincar com ela, os meninos deram uma gargalhada.
— Tira isso da minha cabeça!
“HA!HA!HA!HA! Bolão é um idiota! Lalalala lá! Que burro! Que burro! Dá zero pra ele”
— Calma aí!
Zizinho fez tanta, tanta força, que até conseguiu retirar a peruca, mas também retirou o cabelo, da raiz, de Bolão.
— AHHHHHHH!!!!!
Percebendo a movimentação estranha que acompanhara o enorme gemido de dor, os três se afobaram e saíram correndo, com Zizinho na frente, gritando: “Para a minha casa, para a minha casa!”
Trancaram-se no quarto do Zizinho e levou algum tempo até conseguissem recuperar o fôlego. Apesar de ser o mais gordo dos quatro, o Bolão conseguiu ser o primeiro a falar e disse:
— E agora?
— Temos que ter uma história pronta — disse Gerson, ainda ofegante, com a peruca azulada em suas mãos — Eu pensei no seguinte...
— Que tal contarmos a verdade? — Sugeriu Beto.
— Tá doido? — Exclamou Zizinho — Como é que nós iremos explicar a peruca da dona Neide?
— Vamos dizer que o cachorro vinha com ela na boca.
— E isso por acaso é verdade?
— Não, mas é verossímil.
— O que é verossímil? — Questionou Bolão.
— E como foi que a peruca acabou na boca do cachorro? — Cortou Zizinho.
— É disso que estou falando — Disse Gerson — Temos que combinar uma história. Eu já tenho uma pronta.
Bateram à porta para acelerar ainda mais o coração dos rapazes, que de tão assombrados, já tremelicavam. Era a mãe de Zizinho.
— Nei, você está aí dentro?
— “O seu nome é Nei?” — Cochichou Bolão.
— Estou fazendo a lição de francês, mãe.
                — “O seu nome é Nei?” — Insistiu Bolão.
                — “É. Nei, Neizinho, Zinho, Zizinho...
                — “E a história? Temos que bolar uma história”.
                — Diremos que nós vínhamos pela rua quando apareceu um cachorro com o que parecia ser um bicho na boca, um bicho azul. Achamos que pudesse ser um gato, já que era peludo. Fomos investigar e eis que era uma peruca.
                — Acho melhor esquecer o cachorro.
                Bateram à porta uma segunda vez. Era a mãe de Zizinho outra vez.
                — Neizinho, a dona Neide está aqui e quer falar com você.
                — Deixem comigo... — Disse Gerson, dirigindo-se a porta.
                Muitos anos depois, após uma sessão de autógrafos, do meu renomado amigo, Gerson, a turma se reuniu e relembrou o episódio. Lembraram de como conseguira passar a perna na professora, que por sinal, ainda não revelou a sua face calva (ela tinha uma outra peruca vermelho-sangue). Eles lembravam de como haviam sido salvos pelo talento de Gerson em criar histórias — talento esse inato a todos os bons escritores que se prezem. Não mais admirava que ele fosse agora um grande ficcionista de sucesso, afinal de contas, até a Dona Neide acreditou em toda a grossa mentira.
                Assim é a infância de escritor.

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