quarta-feira, 7 de setembro de 2011

O neto "desnaturado" (texto do blogueiro)

Na aurora de um descansante dia nacional, levanta repousante o jovem, de sua cama de molas branca e caminha silenciosamente pelos corredores da casa.

Novamente tivera uma noite difícil, só conseguira dormir, como nos outros dias da semana, três horas, e tremendamente abatido pelo estresse da semana caminhou vagarosamente. Sentia dores nas costas, estava dolorido de tanto ter trabalhado no dia anterior, mas estava feliz por ter ajudado em alguma coisa no evento.

Avistou uma pequinês em forma de criança, uma coisa pequena e muito ativa, era sua irmã, que ainda usava fraldas e balbuciava trechos de palavras com dificuldades às vezes.

— Oi, bebê.
— Oi.

O garoto começou a conversar com aquela pequena criatura como se conversasse de igual para igual com um amigo seu, ou algo próximo a isso. Conversavam sobre trivialidades, sobre os medos que a jovem criança tinha (que ele se orgulhava em troçá-los) , os programas  de televisão a que sua irmã assistia (que ele adorava criticar) e outras coisas fraternas.

Seu pai, um velho um pouco gorducho, já marcado pela idade e pelo abatimento, observava tudo atentamente da cozinha, a poucos metros da porta do quarto.

— Você gosta do vovô? — Perguntou o jovem rapaz.
— Eu gosto do vovô, você gosta do vovô? — Respondeu com uma voz infantil a pequena criança.
— Eu gosto do vovô, ele é uma pessoa sofrida, mas ele é legal. Ele pode contar tudo, até a história de Brasília ele pode contar.

— Você gosta da vovó?
— Eu gosto, ela pode estar perto da sua idade mental, mas eu gosto dela.
— E da tia Lu...
Enquanto a conversa prosseguia, o pai observava e escutava atentamente a conversa, enquanto descasava uma manga avermelhada.
— Se arruma, nós vamos visitar o seu avô.
Ele, visivelmente abatido, cansado, e dolorido (embora fosse o suficiente para não admitir isso), afirmou categoricamente:
— Não, não estou muito a fim de sair.
— Vamos, lá é seu avô.
Fazia quase quatro meses, talvez mais, que o jovem rapaz não via seu velho avó, o velho Manoel, que  estava se deteriorando em razão de um câncer, a quem suas tias e sua mãe mentiam todo o dia sobre o real estado de seu avô.
Não era porque ele odiasse o seu avô, pelo contrário, ele era a pessoa que mais admirava e respeitava no mundo. O seu avô fora mais seu pai do que seu próprio pai. Ele era um homem simples, mas incrivelmente simpático de se conviver.

A questão que a viagem para o translado, para ver o seu avô, era demasiadamente cansativa, (30 km, por volta), e ele odiava passar esse tempo no carro, observando as imprudências que ocorrem no feriado.

Sua mãe, um tanto demagoga, chegou para perto do pai e disse:
— Eu já desisti desse aí, ele não tem jeito. Ele não gosta de pessoas humildes.
Justo ela fala isso, a dita soberba, que não consegue fazer um único amigo, pois sempre desconfia que seus amigos possam pedir-lhe favores e se aproveitar dela (às vezes, o filho a achava esquizofrênica), ela chegou a aconselhar o próprio filho a se distanciar dos amigos, por achar que eles poderiam se aproveitar dele.
Entra ela no quarto onde o rapaz e a pequena criança estão conversando, e de repente um silêncio paira no cômodo...
— Ele só visitará meu pai quando ele vencer a loteria — Isso era estupidez, pois nunca seu avô vencera um só jogo.
Aquilo foi uma afronta direta, aquilo enfureceu com certeza o jovem, que deixou de lado a conversa com sua irmã para atacar sua irmã.
— É um desnaturado.
— Pelo menos não sou eu que digo pelos cantos que não tenho avô!
Isso era verdade, o bisavô do jovem ainda estava vivo, quase morrendo de leucemia, já cego, e sua mãe se orgulhava em dizer que não tinha avô. Ela renegava o próprio avô, a avó, os tios e até sua irmã.

Ela oportunamente saiu do cômodo dizendo...
— É isso mesmo.
Aquilo enfureceu completamente o rapaz, aquilo era uma hipocrisia sem tamanho, ela, que agora ia a cada final de semana (Às vezes fazia até duas visitas por semana), há pouco tempo atrás tinha dito que não tinha mais pai e proibira completamente que seu filho pudesse visitar seu avô, usando-o como moeda de troca, na disputa em que ela e sua irmã demonstravam sua rixa, enquanto o seu avô tomara um partido.

Ela só passou a visitá-lo e a parar de atacá-lo unicamente em razão que precisava de alguém que cuidasse da pequena criança quando saísse e porque descobrira que o estado de saúde de seu pai se deteriorara. (mas também porque o seu pai largara o partido de sua irmã)

Quando sua mãe retornou, o jovem perguntou:
— Não te cansa ir toda a semana  para lá.
— Vá te catar! — Deu-lhe um dedo em frente a criança.
— O que foi isso? Eu só fiz uma única pergunta.
— Você foi irônico.
— Eu não fui irônico — Realmente ele não tinha essa intenção.
— O pai é meu e eu faço o que                quiser.
— É, mas por um ano ele não foi seu pai! — Esbravejou, usando como argumento  de que ela o abandonara por um ano inteiro.
— Vá te catar — Deu-lhe o dedo novamente.
— Foda-se você! — Deu-lhe dois dedos e quando a mãe percebeu que a pequena criança presenciava tudo, argumentou:
— A menina.
— Não use isso como argumento, você não pensou nela quando fez isso.
Saiu a mãe do quarto e logo depois o jovem seguiu em direção a seu quarto, onde ligou o computador e começou a redigir um texto e a pensar em seu velho avô.
Sentia pena dele, sabia que ele iria morrer, mas não queria pensar nisso, não queria vê-lo naquele estado, não queria vê-lo tão fraco daquele jeito, queria ter em mente o homem forte que o inspirava todo o dia, que o lembrava que devia ser uma pessoa melhor, que não poderia se render aos vícios do mundo.

Ninguém lembrava mais de seu avô, o seu avô que sempre foi um trabalhador exemplar, que nunca roubara, nunca matara, que sempre trouxera o que comer em casa (embora faltasse comida, quando fora extremamente pobre), que presenciara o vício de um filho e a morte deste. Ele era uma pessoa exemplar, quase não se encontrava maldade naquele já fraquejante ser.

O rapaz chorava enquanto seus pais saiam de casa, se sentia um imprestável, um desnaturado, porque crescera em meio àquela casa, agora um tanto desgastada, onde moravam seus avôs e seus tios. Fora ali que aprendera a andar, ali que passara os finais de semana quando criança, ali se divertira como criança.

Lembrava da vez em que se escondera dentro de uma caixa d’água que seria montada e lá o garotinho ficou, brincando e esconde-esconde, até que o seu avô o encontrou dentro daquela caixa de polietileno e em vez de brigar com ele, o abraçou.

Seu avô era mais pai que seu próprio pai, a quem quase nunca vira quando criança (só quando o pai voltava bêbado para casa, e batia nele e em sua mãe),  e quando já jovem, só encontrava de vez em quando tentando reparar os erros crassos que um dia fizera. Mas não, seu avô nunca fora uma pessoa assim com ele, o seu avô lhe inspirava respeito, seu avô era a figura paterna que precisava, ele sentia saudades de seu velho avô, mas tinha medo de vê-lo naquele estado.

Pensou em fazer algo contra si, ele realmente pensou, pensou em se atirar na escada, pensou em tomar os remédios mais do que o recomendado, queria acabar com aquela amargura no peito, mas pensou no seu velho avô e pensou na luta que a cada dia ele passava para continuar vivo, e na dor que sentiria em perder um neto. Sentiu vergonha de si mesmo e não teve coragem em fazê-lo.

A idéia de perder seu único pai verdadeiro o enchia as pálpebras de lágrimas, pensava em como seria ele sem seu avô.

Ele já era arrogante, sim, ele já era tomado pela arrogância. Deixara de ser religioso a muito tempo, já fazia muito tempo que não rezava, mas pensava no seus avôs, sentia um tédio crescente nas conversas de religião a que lhe empurravam (principalmente sua avô, que sabia ser chata quando queria, sem querer ofendê-la, longe disso). Mas pela primeira vez, ele pensara em rezar...

Com lágrimas nos olhos, terminou de digitar a seguinte frase: “Mas pela primeira vez, ele pensava em rezar....”

Saiu do computador e ajoelhou-se diante a sua Torá, vestindo seu kipá já demasiadamente corroído e rezou em hebraico por seus avôs. (embora seus avôs maternos sejam a parte cristã da família)


PS: Sinto um misto de saudades, de honra e de inspiração sempre que falo de meu avô, que embora esteja vivo, me entristece em muito o fato de sua doença.

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