Era o sino que indicava a hora de comer, a hora de trabalhar, a hora de dormir, a hora da missa, a hora da prossição,a hora do enterro de alguém...
É isso que essa história vai contar, o que um sino pode fazer.
Gigante objeto metálico, aquele feito de bronze fundido, com as inscrições INRIS, logo na lateral, cujo badalar só acontecia duas vezes ao ano (e que badalar ensurdecedor), mas aquele badalar era um aviso, um aviso fúnebre, alguém morreu.
O padre nada sabia, mas observava com atenção o jovem rapaz puxar a corda do sino e lapidar um som que despertara a população daquela pequena vila na Picardia (França).
— Saía daí, meu filho, está profanando o sino sagrado — Gritou o homem de batina.
— Não, padre, quero que todos ouçam!
Saíam os camponeses dos campos de trigo , com seus arados em mão, os artesãos com seus instrumentos no bolso, e até os senhores feudais saíram do Castelo, montados com seus estupendos baios brancos. Todos paravam em frente à capela para saber o que havia acontecido. Quem morreu?
— Diabos! Ciro de Lônia? O que faz aí, saía logo daí! — Esbravejou um dos líderes das oficinas locais, provavelmente o instrutor daquele jovem rapaz que badalava o sino.
— O que foi? Alguém morreu? Foi o velho Lukac?
— O velho Lukac? Até parece, esse velho talvez seja mais vivo que todos nós juntos.
— Conversa, ele era velho desde quando você nasceu.
— Ah, vai pastar, eu estou falando...
O velho Lukac era um velho que morava na floresta, sozinho, ao relento, que dava bons conselhos e remédios. Ele não era cristão, com certeza incomodava a Igreja, mas tinha a proteção dos senhores feudais. Era famoso por ser a pessoa mais intruída daquelas partes, diziam até que fora para a Universidade! Contavam sobre ele estórias boas, heróicas, de tempos passados de bravura, mas também contavam estórias de escárnio, de terror, para assustar as criancinhas, mas no final, ninguém sabia nada sobre ele.
— Não, ele não morreu. Onde já se viu Lukac morrer? Ele pode ser mais enrugado que a sua esposa, Jean Luc, mas ele nem de perto está da morte — Troçou Ciro de Lônia um camponês com cara de doninha.
— Ora, seu... Desça logo daí para que lute comigo como um homem.
— Não na frente da casa de Deus! O Senhor não precisa ver suas baixarias se misturarem ao Pecado na frente de sua casa. O senhor diz que “amai o próximo como a ti mesmo.” — Interviu o padre.
— Ande, garoto, diga logo o que tem a me dizer — Falou o conde de La Fountaine, vestido com seu elmo e sua armadura, com seu piquete em mãos e a espada na bainha, de certo estava indo para uma peleja no povoado mais próximo.
— Mês ami, estou aqui a tocar o sino, para lembrar a morte de alguém que nos é bastante querido...
— Meu Deus! Não me diga que foi a condessa de La Fountaine! — Comentou um camponês.
— Não, minha esposa está bem!
— Bom para você, Remi, agora que o marido está indo lutar, com ela, nos lençóis pode brincar... — Disse o trovador que logo foi surpreendido com o conde furioso em espada em punho.
— O que foi que disse?
— Nada, monsieur. Eu sou apenas um cego de aldeia que fica contando histórias para divertir os outros... — Mas ele não era tão cego assim, mais cego era o conde.
— Très bien!
O locutor,no alto da torre da capela, retomara então seu discurso:
— Eu estou aqui para prestar minha homenagem, não a uma pessoa, de nome e de destaque, mas a um indivíduo que nos inspira todo o dia. Estou aqui para mostrar-vos a morte da senhora Verdade.
— Do que está, Ciro, enlouqueceu de vez? Mês ami, vamos tirá-lo da torre, ele está alucinando, deve ter ficado conversando demais com Lukac, ou bebeu vinho demais — Advertiu o seu instrutor, o monsieur da forjaria Pardièu.
— Não, não estou louco, estou falando em nome da Verdade. Mês ami, vejam bem... O frade todo o dia diz que devemos ser bons, que devemos fazer algo bom aos olhos de Deus, mas ele mesmo não o faz. Não é raro nós o encontrarmos bebendo nosso vinho na taberna, enquanto relincha feito um porco e se diz o propagador da fé e que todos morreremos se não pagarmos o nosso dízimo em dia. Ele garante ainda, a pessoas como a Julliete (a prostituta da aldeia) que sob o pagamento de doze moedas de prata, ela poderá ir ao Reino dos Céus. Todos nós sabemos o que a Julliete deixa ou não de fazer.
— Hey, isso não é modo de tratar uma donzela, eu sou uma virgem pura e casta, não tenho nada a dever com ninguém — Exclamou a voluptuosa Julliete com o decote sobressalente, dentre a multidão.
—HA! HA!HA! Essa aí não era virgem nem quando nasceu! — Gritou-se dentre os artesãos.
— HA!HA!HA!
O riso coletivo fez com aquela jovem, de maquiagem pesada, cabelos encaracolados negros, olhos de cigana e traços sedutores saísse totalmente frustrada, sendo acompanhada pelo assistente do conde, a quem todos sabiam era um mulherengo inveterado.
— Vá ao ponto, garoto! — Gritou o conde que incrivelmente estava atento à conversa do jovem Ciro.
— Meus amigos, o Padre mesmo diz que Deus é três: O pai, o Filho e o Espírito Santo. Mas eu pergunto, como alguém pode ser seu próprio pai ou o seu próprio filho? E ainda ser Espírito!
— Isso é sacrilégio! Isso é blasfêmia na Casa de Deus! — Gritou o padre com uma voz de alce.
— Meus amigos, nos dizem que o amor entre parentes é pecado. Mas considerando que Adão e Eva eram os únicos seres humanos no início. E Noé e sua família eram os únicos do recomeço após o Dilúvio. Com certeza posso dizer que houve alguma coisa por aí...
— Calado! Voz do Demônio, Diabo! Você vendeu sua alma ao Satanás...
— Além disso, nos dizem que os judeus nos trazem doenças, pragas e maldições, que nos traem logo quando podem e que devemos exterminá-los. Mas não seria Jesus um judeu? Não seriam os judeus o povo do Antigo Testamento?
— Ele tem razão — Falou um camponês em meio aos outros.
— Que razão o quê? Você não ouviu o padre? Ele foi enfeitiçado pelo Diabo!
— Por favor, não partamo-nos para a violência — Falou o conde.
— Diga isso para Remi, que agora mesmo está a dormir com sua mulher — Falou o padeiro da aldeia.
— O que foi que disse? Exijo que peça-me desculpas.
— Não mesmo, todo mundo sabe que é verdade — Disse o padeiro.
— O que é verdade, meu amigo?
— Verdade é aquilo que vemos pelos olhos.
— E se você for míope? — Contra-argumentou.
— Isso aí é com o senhor.
O conde esbofeteou com sua luva de couro o padeiro infeliz e exigiu um duelo, ali, na praça pública.
— Não, verdade não é isso. Verdade é o que fala a Igreja — Discutiu um camponês com um artesão.
— Mas você não ouviu? Como pode ser verdade que alguém tenha andado sobre as águas, ter multiplicado os peixes, e ainda sim foi crucificado por simplórios como nós e ainda assim não fez nada!
— Ora, seu...
Os camponeses, os artesãos, os simplórios, os sacerdotes, os nobres, todos tinham uma concepção do que seria verdade, todos tinham o seu ponto, mas nenhum conseguia convencer o outro. E os debates começavam a se acirrar.
— Ora, o que podemos esperar do nosso Renan? Ele vive metade do tempo bebendo na taberna e a outra metade, na cama com aquela bruxa enrugada que chama de esposa — Disse um dos camponeses.
— Como foi que disse? — Inquiriu o ferreiro da aldeia.
— Ora, vai me dizer que a vadia da sua mãe, aquela chocadeira desgarrada, não levava todo o dia um homem diferente para te dar de comer, enquanto ela e ele se... — Disse o barbeiro.
— Ora, seu! Vá se foder, todos nós sabemos o que fazes nas horas vagas! Seu judeu vira-casaca!
Todos, cristãos ou não, possuintes de razão ou não se entreolhavam com um ódio desmedido. Os camponeses, armavam-se com suas foices, arados e ancinhos; Os artesãos pegavam seus martelos, bigornas e outras coisas. Os bêbados, suas garrafas e as cadeiras. Os nobres, seus escudos e suas espadas. Os sacerdotes ajeitavam suas batinas e retiravam crucifixos e Bíblias de sei lá onde. Aquilo não ia dar certo.
— Foda-se, filho da puta!
Aquilo virou uma batalha campal. Só seria superada pela Chacina do Dia de São Bartolomeu. Padres, com seus crucifixos e livros de oração, batendo em artesãos munidos de bigornas e martelos, enquanto os nobres batiam-se com camponeses simplórios e as mulheres, antes tão observantes, acabaram entrando num arranca rabo tão feio que até os bêbados não acreditavam no que viam e jogavam garrafas de vinho vazias na cabeça de qualquer desavisado que brigasse por ali. Saquearam-se as casa, a taberna, as oficinas. Violentaram as mulheres, mataram-se uns aos outros, depredaram a Igreja e quebraram o sinaleiro em três partes diferentes, enquanto os covardes, corriam em direção às muralhas da fortalezas para armassem-se junto aos soldados. Mas os camponeses, enraivecidos, emergiram com suas foices e tochas contra a fortaleza enquanto os arqueiros traçavam suas fechas contra a população enraivecida.
Um historiador marxista qualificaria, no seio de sua inocência, de um ensaio geral à luta de classes, mas aquilo era pura e simplesmente uma batalha campal para descobrir o que era verdade. Mas afinal, o que é verdade? Será tudo isso verdade ou tudo não passará de uma deturpação grosseira?
Verdade, verdade o que tu és? “ Sou a esfinge, decifra-me ou se não te devoro”.
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