sábado, 18 de fevereiro de 2012

Semana de Música Russa (Dia 4)

       Hoje é dia de Sergey Rachmaninov... Um dos maiores músicos russos da virada do século XIX para o XX, que emigrou para os Estados Unidos com a Revolução Russa, contudo sempre sentira saudades de sua velha Rússia, a qual tanto amava, e em certas ocasiões ele retornara a União Soviética para tocar algumas vezes suas Sinfônias no Bolschoi. Mas ele sempre residia nos Estados Unidos, país o qual adotara como segundo lar.

      Rachmaninoff era um dos personagens mais impressionantes da música, além do fato de ter escrito composições de piano impossíveis de tocar (uma das razões disso talvez tenha sido o fato dele ter tido a Sindrome de Marfan que estendia-lhe os dedos das mãos), e ter sido um dos financiadores do inovador projeto de Igor Sikorsky, o helicoptero.

Rachmaninoff, em foto, em seu desembarque nos EUA




O piano solitário (Dia 4)

     Ali, no canto da sala, uma peça da mobília se destacava dentre as demais, talvez por seu formato sinuoso, talvez por não ser fácil de se esconder algo tão grande.

      Envolto num lençol branco, junto às outras peças de mobília daquela casa, quem diria que aquele piano, um dos mais raros pianos daquela série, um Strungberg, estava ali, sozinho, pegando poeira.

     Era um piano bonito, preto, com um verniz que brilhava sob o reflexo da luz, com certeza era o móvel daquela casa mais adorado pelo antigo dono.

    Não mais, o velho dono, o velho Boris Fiodorvich morrera há cinco anos de um enfarte fuminante, sem chances de defesa, e agora, seus filhos, insensíveis brigavam na Justiça por sua herança.

    Boris Fiodorvich não era rico, era um dos muitos emigrados russos que desembarcaram nos Estados Unidos sem um único tostão furado; Tinha perdido tudo com a Revolução e achou por melhor sair da Rússia por Vladivostok.

    Aquele piano, aquele piano foi conseguido após muito esforço, Boris Fiodorvich tivera que trabalhar por muito tempo como estivador no Porto de New York e açogueiro num local de quinta categoria para conseguir comprar aquele piano, um piano de segunda mão, numa casa de penhores.

    E pensar que aquela maravilha, na época custou 250 doláres! Uma fortuna.

    Toda a noite o dono daquele instrumento musical tocava um concerto de piano o qual conseguia lembrar de cabeça... "Concerto em C Menor para Piano e Orquestra Op. 18, Moderato.


     Ele morava num daqueles desconfortáveis apartamentos do Brooklin na época, e não tinha muito para ser roubado, mas quando tocava aquela música tudo aquilo lhe era esquecido, porque aquela música lhe entrava pelo coração e enraisava pela alma.

    Fora com aquele piano que ele escreve seus primeiros concertos para piano, fora com aquele piano que ele conquistara a sua primeira e única esposa, uma italiana, Giovanna Razzini; Fora com aquele piano que ele mudara de vida.

   Com o tempo,  o próprio Boris Fiodorvich foi tornando-se mais e mais conhecido, convidado para tocar nas rádios e nos concertos América afora... Alguns diziam que ele seria provavelmente o herdeiro de Rachmaninoff.

    Mas Boris Fiodorvich não queria ostentar tamanha honraria, Rachmaninoff para ele era um dos maiores russos que já conheceu, e um dos seus maiores amigos, afinal, fora Rachmaninoff que o incentivou a abandonar a carreira de açogueiro para seguir na musical. E isso, Boris Fiodorvich era extremamente grato.

   Naquele piano, que agora acumula em demasia a poeira de outros tempos, que Fiodorvich ensinou a seus filhos a arte de tocar... Já renomado compositor, o músico dedicava tardes inteiras a ensinar a seus filhos, Aleksandr (Sacha), Sergey (homenagem a Rachmaninoff), Pyotr (Pietro, para a mãe) e Svetlana (Lana)  como tocar piano.

    Quando morreu, seus filhos sequer se recordavam de como seu pai amava àquele piano e entraram em uma batalha judicial pelos direitos autorais de seu pai.

     — Tudo o que pertenceu a seu pai está no devido lugar, senhor Tzvetaev, eu garanto isso —  Abriu com força a porta o advogado responsável pela disputa, senhor Campbell.
    
     — Pode me chamar de Sacha, senhor Campbell, é meu apelido de família.

     — Certamente, senhor.

     O advogado tinha dificuldades em abrir o ferrolho da porta, que há tempos apresentava problemas, mas que agora, com o passar dos anos, ficara um problema até demasiadamente incomôdo. Campbell, uma figura gorduchona de 50 anos, meio calva na cabeça, e gorduchona, sempre usava um colete azul-marinho e uma gravata vermelha que o deixava como um Leão Marinho (afinal, esse era o apelido dele), e a barba loira também não ajudava.

     Forçou com o braço a maçaneta até romper por fim o empencilho que a fechadura tanto causara-lhe.

     Adentram os dois na pequena casa, um sobrado pequenino, daqueles missionários de madeira, do Oeste dos Estados Unidos. Tinha dois pavimentos aquela casa, aquela pequena residência em Beverly Hills, bairro nobre de Los Angeles. Aquela casa, mesmo sendo em estilo modesto (o falecido adorava esse estilo sóbrio em sua casa, a qual carinhosamente chamava de "datcha"), já ostentava uma cifra considerável dada a valorização que a especulação imobiliária dava as caras na Califórnia nessa época (estamos falando já dos anos 60).

     Não era muito longe da casa de Rachmaninoff,  que ficava talvez a meia milha dali, e o senhor Tzvetaev, Boris Fiodorvich gostava disso, assim podia ficar próximo de seu grande amigo, Sergey Vasilevich.

     — Nossa! Como isso está mudado! —Constatou Sacha ao verificar a situação da residência.

     A casa agora conservava um cheiro de mofo com poeira, e os interruptores começavam a falhar por falta de uso, os lençóis brancos nos móveis davam um toque mórbido aquela residência que não via a luz do sol há muito tempo; As janelas pareciam ter emperrado há tempos, mas nada como um pouquinho de óleo para consertar isso.

      Sacha era o filho mais novo do casal, Aleksandr (Alexander, como gostava de grafar) Razzini-Tzvetaev, tinha trinta e poucos anos; era artista agora de televisão, participava de alguns seriados como Get Smart e de vez em quando fazia pontas em Star Trek, mas o seu negócio mesmo era o cinema, o qual esperava retornar com o mais novo filme de Ricardo Montaban, no qual faria o papel de vilão.

     Alexander Harris (seu nome artístico), era alto, tinha olhos verdes rasgados, e um topete meio para o lado, tinha pinta de galã, que herdara talvez do pai, sempre vestia o que havia de último no mundo da moda, embora não apreciasse muito as extravagâncias dos anos 60.

     Tinha uma voz doce que raramente elevava além do tom de conversa, fato que o fizera ficar famoso em musicais da Broadway e mesmo, em filmes musicais. 

    Sacha andou pelo piso de madeira, até que pisou em falso numa tábua e tropeçou sem querer com o pé, mas conseguira se manter em pé. Sacha entreolhou o advogado que segurou os dentes para não rir daquilo, e em seguida, foi em direção ao objeto de formas sinuosas, próximo à escada.

      Acariciou com as mãos aquele instrumento, retirando-lhe de maneira delicada o lençol que lhe cobria por inteira, parecia tatear aquele piano como se fosse seu amigo, seu confidente, e quando chegou ao teclado olhou a inscrição no alto, Strungberg, escrita em cursiva em estilo neoclássico.

      Abriu a  proteção do teclado, tateou o teclado e logo constatou: Estava sujo, cheio de poeira.

      Com a boca, soprou toda a poeira do teclado do piano, fazendo com que uma nuvem de areia subisse à altura dos olhos e o fizesse lacrimejar um pouco. Sentou-se na bancada, defronte o piano,  e observou no suporte uma última folha se pendurar ali... Era uma velha partitura. Lia-se ali, escrito em letras cursivas: 
 "Concerto em C Menor para Piano e Orquestra Op. 18, Moderato.  A meu querido amigo, Boris Fiodorvich, de seu eterno amigo, Sergey Rachmaninoff"
    
       E Sacha pôs-se a tocar a música.


       
 

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