sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Cartas de Leningrado (V)

14 de janeiro de 1942
Leningrado, CCCP


         Tenho más notícias, Volódia, meu filho, a sua irmã, Anastacia Vassilievna, morreu ontem de manhã, enquanto cruzávamos o Lagoda... Morreu afogada quando o gelo se partiu, tentei de tudo salvá-la, mas não consegui.

         Sua mãe está em choque, mas vai ficar bem, ela está indo junto com as filhas de Godunov para Kuibichev, se juntar com a irmã dela, que está lá.

         Acho que estou ficando deprimido, as coisas em Leningrado chegaram ao ponto máximo de um show de horrores... Não bastasse os casos de canibalismo, agora na Avenida Nevsky, do lago do Hermitage, estão vendendo partes dos corpos dos parentes. A que ponto chegamos?

       Quando voltava a Leningrado, hoje de tarde, encontrei a polícia interditando o cemitério para impedir que os túmulos fossem assaltados pela multidão de esfomeados... Até o túmulo de Aleksandr Nevsky teve que ser guardado por guardas armados!

      As coisas estão feias, vejo a morte a cada esquina... Combinamos, eu e nossos vizinhos, de ficarmos agora em um só quarto, amontoados, para economizar a pouca lenha que temos e nos proteger da multidão  de mortos-vivos que se abate em Leningrado.

      A inanição começa a trazer alucinações, hoje mesmo eu sonhei que era um tártaro da criméia prestes a sair dançando num espetáculo de maluquices... Saí pela Prospekt (Avenida) dançando feito um doido a gopak enquanto Godunov tentava me levar de volta para casa.

     Encontramos um guarda, mais doido do que eu, se achando governante de Novgorod, e nos ameaçou cortar as nossas cabeças se continuássemos a obstruir o seu caminho... Imagina um guarda bolachão, de meio metro de altura, ordenando nas pessoas famintas como um déspota enlouquecido.

     O Inverno pode ter nos salvado em Moscou, mas em Leningrado, ele está nos matando... Nunca pensei nisso, mas agora eu prefiro morrer a comer mais uma vez carne de cavalo. Nada mais me sobra senão dizer que talvez eu não resista mais a esse frio.

      Fique calmo, Volódia, eu já estou preparado, de tanto ver a morte em cada esquina, eu já estou preparado. A vida é uma ópera, linda e trágica, cada ato traz mais ações na narrativa, mas o fim, o fim é certo; O fim  é a morte!

       Lembra-se de quando fui violinista no (Teatro) Kirov há quatro anos atrás? Bons tempos aqueles, a gente só precisava se preocupar com  o NKVD e nada mais, mas agora, além de temos que nos preocupar com os alemães, temos que nos precoupar com o frio, a fome, o desespero e as multidões de canibais.

        A vida era mais simples naqueles tempos... Me despeço de você, Volódia, meu filho, com um aperto no coração, pois sei que não sobreviverei mais a esse cerco, meu filho. Hoje não só desejo-lhe saúde e muita felicidade, desejo que não se esqueça de quem sempre muito te amou, o seu pai, a sua mãe, os seus irmãos e os seus queridos vizinhos... Godunov manda lembranças, assim como todos aqui. Cuide-se e seja feliz!

  Cordialmente seu pai,  Vassili Efremenvich


 ...


         Essa foi a última carta de Vassili Efremenvich Korsakov que se tem notícia; Vladimir Vassilevich, seu filho,  foi ferido na Batalha de Kursk em 1943, mas sobreviveu, e depois da guerra, acabou se casando com uma das filhas de Godunov, a mais velha, que não foi narrada nas cartas, mas que tinha 15 anos na época. 
         Godunov sobreviveu ao cerco e contou tudo o que aconteceu com Vassili Efremenvich, que acabou morrendo na travessia do Lagoda, de fome. 
          Vassili Efremenvich ganhou em 1981, em associação a outros heróis do Cerco a Leningrado, a medalha da Ordem de Nevsky e do Trabalho Socialista, pelos seus feitos durante o Cerco de Leningrado)
  
         Слава героям Ленинграда! (Glória aos heróis de Leningrado!)

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