sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Um balcânico


"Liubliana, Iugoslávia.
            4 de maio de 1980

            Após torturosos dias para toda a nação, hoje, nesse infeliz dia que se abateu na capital eslovena, recebemos o informe do Centro Médico de Liubliana...
           Segundo o boletim médico anunciado ao final dessa tarde, o camarada Josip Broz, mais conhecido como Tito, líder de nossa querida nação, a grande Iugoslávia, morreu em decorrência de uma gangrena ocasionada por uma má circulação sanguínea em suas pernas.
           Não era novidade, para nós, que acompanhávamos aflitos desde o dia 11 de janeiro o estado do presidente Tito, segundo informes médicos divulgados anteriormente, o marechal Jozip Broz teve que amputar uma perna para salvaguardar  a sua vida; mas a Nação não se abalou e esperou de braços abertos o retorno do nosso querido líder aos braços do povo iugoslavo; Contudo, hoje, às 3h05 da tarde, a agonia de nosso líder cessou, o marechal Tito morreu;

           A população civil aqui em Belgrado parece estar em choque com o anúncio da morte do nosso querido líder, Broju Tito, carinhosamente chamado, foi  o líder amado de nossa querida nação, desde a grande libertação do julgo fascista, durante a última Grande Guerra; Líder do movimento partisan, Tito ecoou a voz de nossa querida pátria aos ouvidos de seus concidadãos, dessa maneira, libertarmo-nos por nossas próprias mãos do jugo hitlerista.

           O governo em Belgrado, lamentou a morte de nosso querido líder, mas anunciando também que esse fardo trará maiores responsabilidades ao povo e ao governo no desenvolvimento do socialismo na Iugoslávia; Já em Moscou, o premiê soviético Leonid Brejnev declarou que sua morte foi "uma enorme perda para o marxismo-leninismo". Já em Washington, o presidente norte-americano Jimmy Carter declarou seu pesar por aquele "que tão arduamente trabalhou para o desenvolvimento da paz em vida".

           Em Belgrado... Em Podgorica... Em Zagreb... Milhares e milhares de irmãos realizam o seu último adeus ao camarada Tito num momento de tristeza e comoção em torno da memória do marechal Tito.

           Lembremos a memória de nosso querido líder, o camarada Tito..."
           (Começa a tocar o hino iugoslavo ao fundo, na transmissão da TV estatal iugoslava)


Hey, eslavos,  ainda vive
a palavra dos nossos avós
Enquanto o coração de seus filhos
batem por nossa nação!

Ele vive, ele vive, o espírito eslavo,
Ele vai viver por séculos!
Ameaçam-lhe em vão o abismo do inferno,
o fogo eo trovão!

Deixai tudo acima de nós agora
seja quebrado por uma Bura.¹
As rachaduras do penhasco, as quebras do carvalho,
Deixem a terra tremer!

Nós estamos firmes
como montanhas,
Maldito seja o traidor
de sua terra natal!    

¹Tempestade violenta comum aos Bálcãs"

           Salek então observou que em torno da mesa de bar, todos ali estavam calados, inclusive os seus amigos, a morte de Tito era realmente uma notícia muito forte... Muito forte até para ele.

          Tito, por mais que tenha seu nome difamado por ditos "comunistólogos de botija", foi um dos líderes comunistas mais inovadores do século XX... Além dele ter mobilizado inúmeros grupos em prol da causa de libertação da Iugoslávia, do jugo fascista, ele não se submeteu ao poder de Stálin na Cortina de Ferro, e iniciou um novo movimento, o movimento dos Não-Alinhados, um movimento de países que nem era submisso a URSS e nem aos EUA, uma coisa desafiadora no contexto da guerra fria, para um país de médio porte como a Iugoslávia, empreender.

            A Iugoslávia instaurou um sistema que combinava elementos de propriedade privada com socialismo, antes de a China inventar o "socialismo de mercado", considerando que nem toda a propriedade era produto de exploração, pequenas propriedades rurais e mesmo padarias, e outros empreendimentos pequenos poderiam pertencer a terceiros, enquanto as grande empresas e grandes fazendas pertenciam ao Estado.

            Nos regulamentos da cartilha iugoslava, a autogestão, os trabalhadores das fábricas elegiam alguém, entre eles que "governaria" a administração da fábrica por um certo tempo, sendo que o lucro dos produtos era dividido igualmente entre os trabalhadores, com uma parcela ao Estado.

           Não que a Iugoslávia fosse um paraíso, Salek sabia muito bem disso, mas ele apreciava a idéia de não haver grandes restrições quanto ao pensamento (desde que não se desvirtue do marxismo) e à religião, tampouco havia valorização de nacionalidades em detrimento a outra... era-se iugoslavo e pronto.

           — E agora, o que será de nossa querida pátria? — Afirmou Viktor Grosjnak, seu companheiro e amigo da fábrica de automóveis Yugo.
           — Eu não sei, meu caro, eu realmente não sei — Bebericou um pouco sua aguardente Salek  enquanto observa com atenção o movimento da rua...

        Eis que vinha a sua querida namorada, Natalia Javersek, eslovena, tão bela quanto todas as eslovenas que conhecia; tinha cabelos negros, olhos azuis, pele bronzeada, parecia uma modelo proletária, pois afinal recusava-se a usar maquiagem, em verdade, não precisava.

         — Olá, minha querida, como vai você? — Levantou-se Salek antes que Natalia circunscrevesse um movimento para trás e lhe tapasse a visão, como sempre fazia.
         — Vou bem, o que faz aqui, pensei que nós tínhamos combinado alguma coisa lá em casa.
        Aquilo  surtiu sonoro na mesa de bar, Grosjnak se sentiu enciumado com aquele comentário, afinal, ele tinha mesmo uma paixão reprimida pela jovem Natalia e competia com Salek por sua atenção, afinal, ele a havia visto primeiro...
Em todo caso, Grosjnak escondeu seus sentimentos com astúcia, escondendo-os em meio aos copos de vinho (trazidos da costa do Adriático) e em comentários infelizes sobre os “pães-duros” dos tchecos... Os tchecos obviamente ficariam ofendidos com os comentários depreciativos de Grosjnak sobre seus costumes.
Grosjnak, apesar do nome, era sérvio, nascido, numa aldeia nos arredores de Belgrado, era um rapaz capaz, decidido... Tinha olhos castanho-claro, rasgados, meio italianados, meio turcos, era bronzeado, como boa parte dos balcânicos, o seu cabelo meio volumoso começava a se enrolar devido ao trabalho,  em suma, parecia um pescador grego, incluindo por seu nariz meio torto.
Já Salek era um croata de um metro e oitenta de altura, meio lento, se formos comparar com Grosjnak, mas isso era uma característica pessoal, e não de seu povo, vinha de uma família decidida e capaz da Dalmácia, pescadores e mercadores por tradição, dizia-se que o seu próprio pai dera estadia certa vez a Tito e seus homens em sua cabana de pescador no litoral... Tinha olhos azuis, cabelos louro-acastanhados, meio voltados para trás, seu nariz era um tanto pontiagudo e de traços firmes, singular para si, pois com o bigode lhe trazia traços marcantes.
       Os dois se tornaram  amigos no primeiro dia de fábrica de Salek, quando ele saiu da paradisíaca ilha de Brač para tentar a carreira de metalúrgico na siderurgia Zastava, produtora de automóveis na cidade sérvia de Kragujevac, e agora produzia em associação com seus camaradas os famosos automóveis Yugo na fábrica como um operário qualquer.
        O sistema de trabalho iugoslavo era uma coisa que refletia muito no seu trabalhador, afinal onde mais se conseguia empreender algo tão ambicioso como o sistema de trabalho associado, em que cada empresa era dividida em grupos os quais tinham que empreender metas para si em modo de associação coletiva e apreender o maior número de apoio possível de seus camaradas para a produção, o sistema iugoslavo forçava que as pessoas virassem inevitavelmente amigas.
        Isso é loucura de um ponto de vista, um lugar em que a empresa deixava ao encargo de seus funcionários a realização de metas, ao dividi-los em grupos para realizar um trabalho local, desvencilhado do trabalho coletivo de uma linha de maquinofatura, mas que no final dava certo.
        Foi assim que Salek e Grosjnak viraram amigos através do trabalho, afinal os dois em um contexto de grupo deviam se tornar amigos para produzir as metas para a fábrica, mas no subconsciente de Grosjnak, isso pouco importava, ele sentia inveja de Salek.

       “Como esse croata, como esse rapazola de nem vinte e pouco anos, pode entender mais de amor do que eu? Como Natalia pode se ver mais apaixonada por esse garoto que por mim, que sou um homem formado, que sempre lhe dei mostras de amor e carinho?”

        A Iugoslávia podia não ser perfeita, mas levava muito em conta o bem estar coletivo, tanto que as crises de desabastecimento que vieram a seguir, foram resultado de uma má administração pública.

“ORDEM GERAL, CAMARADAS

GREVE!GREVE! GREVE!
Estamos a tempos sem receber o nosso merecido salário, falta-nos o que há de comer e não podemos conceber o que o governo de Belgrado quer fazer... QUEREMOS PÃO! QUEREMOS TERRA! QUEREMOS TRABALHO!
    Mobilizemo-nos camaradas! PRECISAMOS NOS UNIR! GREVE!GREVE! GREVE!”

       O ponto na fábrica encerrou-se, após o tocar de um apito, os trabalhadores se reuniram à porta da fábrica aguardando o diretor da fábrica dar seu pronunciamento... O diretor nomeado por Belgrado.
        Era o ano de 1989, um ano emblemático para alguns, um ano problemático para outros, era um ano que seria marcado por quedas de muro, lutas encarniçadas, quedas de ditadores e crises de soberania.

         Tal como a grande irmã do nordeste, a Iugoslávia estava agora vivenciando uma crise de abastecimento sem precedentes... Talvez fosse o tempo, que nos últimos anos não estava facilitando as coisas, os Invernos estavam mais rigorosos e a produção mais difícil, mas isso não mudava o fato de que o povo estivesse com fome.
      Talvez fosse porque o dinheiro não comprasse mais como antes, afinal, aquela inflação era a mais dura desde o fim da Era Tito... Em todo caso o povo estava revoltado.
      — Camaradas, Belgrado nos impõe cotas todos os meses, cotas absurdas, enquanto nos paga ninharia por nosso serviço. Trabalhamos, trabalhamos e eis que temos uma ninharia, antigamente dava para pagar tudo, mas hoje, hoje temos que racionar a nossa comida. E o que o governo faz? Nada, isso mesmo nada — Discursava no palanque o jovem Milovian Bartinik.
     — É, é isso mesmo!
     — Trabalhamos e trabalhamos, mas cadê o nosso inspetor? Sempre está no bar torrando o nosso dinheiro! Eu digo, GREVE!GREVE! GREVE! — Gritou Salek, tomando agora voz no discurso.
      — Antigamente dava-se para viver com duzentos dinares, hoje, hoje isso não dá nem para uma semana! Vejam! Vejam! Enquanto montamos esses carros todo dia, todo dia, dêem uma passada na sala do diretor, você pode vê-lo fumando charutos cubanos a pleno deleite! Eu digo GREVE! GREVE! GREVE! — Esbravejou outro operário.
       Os trabalhadores se reuniram em torno dos piquetes na entrada da fábrica quando o assessor do chefe da fábrica tentou abrir a entrada à força.
        — Saiam! Saiam daí!
        Havia algo de muito errado naquela Iugoslávia agora, antes um dos maiores modelos socialistas da história, um dos poucos lugares em que o povo podia se orgulhar de ter liberdade, de pode viajar quando quiser, de ter um emprego garantido, de ter saúde e educação de graça, tendo a autonomia cada um de seu país, cada um de sua fábrica, agora se viam daquela maneira, como gado brigando contra o fazendeiro, tinha algo de errado.
       Talvez fosse porque Belgrado não estivesse mais cumprindo a autogestão e sim nomeando a plenos desígnios e favores membros fieis ao seu governo, ou mesmo porque Belgrado também não estivesse mais querendo cumprir a rotatividade de gestão da Nação que se estabeleceu depois da morte de Tito, em que cada líder de cada etnia diferente iria liderar por dois anos até ser substituído por outro de outra etnia... Belgrado, não estava cumprindo.
       O governo não pagava mais como antes, parecia agora jactar-se de uma bandeira não mais socialista, mas agora mais nacionalista, uma bandeira agora de irmandade, irmandade em torno da Sérvia.
Isso não era bem visto pelas outras nações, afinal, todos queriam continuar a ser livres, mas quem disse que isso agora era opção?
        — O governo nos instruiu para a reabertura da fábrica e o retorno da produção imediatamente sob a pena de prisão a quem recusar! — Gritou o gerente da fábrica ao sair de seus Zis soviético com extrema pompa.

        O gerente não era um operário que se transformou em diretor, mas um burocrata que se tornou magnata, usava um extenso casaco de pele que parecia ser pele de foca ou algo próximo, um chapéu fino, parecido com os que o presidente soviético Mikhail Gorbachev usava; na verdade, ele se parecia mesmo com o Gorbachev, ambos era carecas, tinham traços meio cansados, eram um pouco gorduchos e beiravam aos cinquenta anos, tirando o fato do diretor não ter manchinha na testa e usar monóculo.

     — Mas o que significa isso? — Caminhou em direção aos operários que tinham formado um bolsão em torno dele.
     — Isso significa, senhor, significa que estamos em greve! GREVE! GREVE! GREVE! — Declarou um certo Ivanović, encarregado da montagem das carrocerias e dos motores dos Yugos.
      — Mas que besteira é essa? Contra que reivindicam? Por maiores salário? Escutem, não há como ganhar se não trabalhar, se querem  mais trabalhem mais, não devem trair o nosso governo com tais movimentos! Agora andem, andem, vão trabalhar, seus vagabundos, não há aumento para vocês!
     — Então não há quem trabalhe para você — Declarou Salek impetuoso.
     — Ora, seu — Defrontou-se o diretor ao simples operário de barba espessa e camisa regata repleta de suor e óleo de motor — Como ousa defrontar um servidor do governo? Nomeado pelo próprio Milosevic.
      — Eu nem conheço esse homem para ser sincero, o que afinal ele é? Um espantalho?
      — Ele é o presidente da Sérvia, seu tolo!

       Slobodan Milošević era o típico burocrata que ascendeu logo após a morte de Tito, ele  parecia como um homem introvertido, orador medíocre e sem carisma, mas incrivelmente  em 1983 é eleito para o Presidium do Comitê Central do Partido Comunista da Sérvia e no ano seguinte fez-se Presidente do Comite Municipal do partido, em Belgrado até acusar os outros líderes de inépcia e tomar o cargo de Presidente da Sérvia; Era um centralista de principio e ninguém duvidava que talvez fosse no fundo um stalinista escondido.
      — Então fale para o seu amigo, fale para ele, que enquanto não tivermos salários, não faremos porra nenhuma para ninguém!
       O diretor se sentiu enfurecido e ofendido com tal comentário, e saiu acompanhado de seu assessor em direção a sua limosine Zis importada, o assessor virou-se a Salek e disse:
      — Pagará por isso, Salek.
      — Você pagará por isso, Grosjnak, seu traidor, fura-greve! FURA-GREVE! FURA-GREVE!

      A limosine saiu em arrancada da entrada da fábrica, a greve continuou, até o governo ameaçar demitir todos os funcionários e a greve se alastrar para os outros setores e as outras fábricas... A Iugoslávia agora vivia convulsionada por greves e mais greves.

“Hoje, nessa tarde, na cidade de Kosovo Polje, o presidente da república sérvia e da União Iugoslávia, o senhor Milosevic, fez um pronunciamento na ocasião da vitória do exército sérvio contra as forças turcas há 600 anos atrás. Ele declarou que em torno da Grande Sérvia as nações balcânicas se viram felizes e contentes pois sempre puderam contar com o poder sérvio para ajudar, e que se guerras são precisas para estabelecer esses laços, guerras poderão ser feitas, e declarou glória a Grande Sérvia e glória a Iugoslávia”.

  — Isso não me parece boa coisa, Salek, realmente não parece ser bom, falar assim, com tanto prestígio da Sérvia, é de se duvidar — Bebericava ao lado um dos agitadores grevistas, Ivanović.
   — Eu não sei, Ivanović.
   — Correm boatos, boatos até mesmo de Belgrado, que agora o governo está pagando mais para quem é sérvio que para um croata ou um esloveno... Eu digo, se isso for verdade, teremos grave problema.
    — Você está exagerando as coisas, Ivanović.
    — Eu posso estar, mas isso não muda o fato de que com que ganhamos não dá mais para sobreviver, e a nossa liberdade? Para onde foi a nossa liberdade? Para um bando de burocratas em Belgrado, assim não dá para se viver!
     — Não exagere tudo.

“Hoje, o presidente da Alemanha Oriental, Erich Honecker anunciou sua renúncia ao cargo de governante da nação, após disputas internas no Partido Comunista Alemão; Honecker deixa o seu cargo com um índice de popularidade relativamente baixo, logo após treze anos de mandato, Honecker declarou que fará de tudo para trabalhar pelo progresso do socialismo na Alemanha”

     — Mais essa, parece que as coisas estão mudando, Ivanović, não só aqui, como em Berlim e em Moscou, o povo parece estar se revoltando, eu não sei mais o que esperar.
     — O povo é instável — Ouve-se uma voz aproximar-se logo atrás de Salek, uma voz masculina e conhecida, mas logo a visão de Salek é tampada.
     — Olá, querido — Ouve-se agora a voz da doce Natalia, com o seu toque delicado sob as vistas de Salek;  
       Salek calmamente afastou os braços de Natalia dos seus olhos e quando teve a oportunidade se levantou. Encontrou Ivanović com olhos de poucos amigos ao perceber que Natalia estava abraçada a Grosjnak, quando Salek percebeu isso, também não ficou muito feliz:
       — O que faz com esse, esse, fura-greve?
       — Bem, eu estava passando pela rua, quando ele me ofereceu pagar um sorvete, ora, mas porque essa cara? É só um sorvete.
       — Ora, Salek, é só um sorvete — Disse maldosamente Grosjnak.
       Salek sabia que não era só um sorvete, Grosjnak estava querendo alguma coisa mais, sempre quisera, mas só agora Salek percebia, os olhares, as conversas, Grosjnak não era um amigo, era um pretendente de Natalia.
       — Natalia, não quero que veja mais esse homem — Declarou Salek.
       — Ora, seu, como ousa? —Disse em tom já demagogo Grosjnak, os presentes no bar também se aperceberam da discussão, incluindo os operários da fábrica.
       — Como ousa você? Cortejando a minha namorada, pagando-lhe sorvetes, o que quer mais, com certeza daqui a pouco vai querer dormir com ela. Você não me engana, seu traidor.
       — Salek, está sendo grosseiro — Disse Natalia no meio dos dois.
       Grosjnak afastou Natalia com um braço de modo a ficar de cara a cara com Salek, Salek havia descoberto tudo, os operários, ao perceberem um casanova a vista começaram a se juntar ao lado de Salek.
       — É, é isso mesmo, eu amo Natalia e quero me casar com ela, coisa que você nunca teve coragem de propor.
       Natalia agora mudara sua atenção para Grosjnak, ela nunca pensava que ele pudesse ser capaz de falar uma coisa delas, mas agora entendia o porquê dele ser tão bondoso com ela, ele a desejava.
       — Não, você quer se aproveitar dela, isso sim, seu traidor. Venha, Natalia.
Salek levou Natalia pelo braço de modo não muito hostil, e rapidamente ela aceitou, Grosjnak tentou conversar com Natalia, mas a própria moça sentia agora repulsa daquele casanova, sequer conseguia conceber a ideia de ficar com ele.
      — Isso está errado, isso está errado, Grosjnak, e você sabe disso. Ela é mulher do seu amigo, isso está muito errado — Declarou Ivanović acompanhado dos outros operários da fábrica, os operários levantaram-se agora contra Grosjnak.
      — O que afinal vocês têm a ver com isso? — Grosjnak então dirigiu sua voz para o casal — Pode ir, Natalia, mas saiba que homem de verdade é só aqui.
       Salek ouviu isso como o  som estridente de um  unha percorrendo num quadro negro, o operário soltou o braço da namorada e virou-se para trás com cara de poucos amigos, era a gota d’água.
      
      — Salek, Salek... — Tentou retirar Salek dali, mas os esforços de Natalia foram em vão.
      — Como foi que disse, seu infeliz?
       — Isso que você  ouviu, homem, homem de verdade, só eu, eu pelo menos sei fazer satisfazer uma mulher na cama.
      Salek soltou de vez a namorada e seguiu em direção ao bar, e rapidamente os dois começaram uma briga, com garrafas quebradas, mesas estilhaçadas e olhos roxos, tudo nessa ordem, ou quase, os operários tentaram apartar a briga com muita dificuldade, e quando conseguiram, Salek já estava no pescoço de Grosjnak.
       — Você me paga, seu infeliz, você me paga — Disse Salek com as mãos no pescoço de Grosjnak.
       — Seu fraco, nem me matar consegue... Vai indo, vai indo, você vai ver o quanto eu posso ser vingativo.
       Três colegas apartaram a briga, e Salek foi levado pelos amigos para fora do bar, o dono do bar devia ter tido um prejuízo astronômico, mas quem mandou ele construir um bar nos Bálcãs?
      — Isso não vai ficar assim, isso não vai ficar assim! Você me paga! Você me paga!
       E assim terminou o dia, de amigos, Salek e Grosjnak se tornaram inimigos mortais, devem ser assim que as coisas acontecem na Sicília, não, até os sicilianos são menos vingativos que os dois.

“Hoje nessa noite que abateu sobre Berlim, milhares de cidadãos foram as ruas para protestar contra o governo num momento de grave crise no governo da República Democrática Alemã, e afoitos por aberturas no sistema alemão, milhares de berlinense dão graças a agora a unificação das duas alemanhas, evento esse marcado pela destruição do Muro de Berlim. O povo alemão agora não mais segue preceitos de outros povos, mas apenas a sua livre vontade, uma vontade que sequer considera o socialismo mais como bandeira. O presidente soviético Mikhail Gorbatchov felicitou o povo alemão por sua livre vontade e iniciativa na construção de uma nova sociedade unificada, e espera que o futuro desenvolvimento alemão se dê com paz e solidariedade. O presidente da Sérvia declarou que...”

      — Primeiro foi a Polônia, depois a Alemanha, agora a Romênia,  o socialismo está se desfacelando rapidamente, Ivanović, não sei que caminho tomaremos agora.
      — Eu espero que seja um caminho bom e pacífico.
      — Eu também espero, meu caro, eu também espero.
      Mas não foi assim, dois anos depois, a União Soviética desmoronou com o seu último governante, Mikhail Gorbatchov, e como aparente decorrência de tal ruína, mas não como consequência, nos Bálcãs eclodiu uma nova guerra, a Guerra da Iugoslávia.
       A Eslovênia foi o primeiro país a solicitar a separação da República Federal Iugoslava, por discordar do modelo adotado por Belgrado em torno de uma Grande Sérvia, e saiu sem grandes problemas da Iugoslávia, em parte pelo apoio italiano que recebeu.
       Mas aí foi a vez da Croácia e aí se iniciou uma Guerra Civil, tendo em vista que os sérvios não queriam ceder territórios com populações sérvias na Croácia, guerra essa que Salek e Grosjnak se envolveram cada um do seu lado.
       Acho que não preciso dizer o que veio a seguir, um verdadeiro banho de sangue, uma carnificina sem precedentes naquela década, mas Grosjnak e Salek enfim se encontraram.
        — Então, seu infeliz, enfim nos encontramos.
        — Já estava ficando tarde, seu bastardo, vamos acabar com isso logo, saque de sua arma, isso é um duelo!
         — Deixa de ser tão italiano, eu só queria ficar com a sua namorada.
         — Mas agora namorará a terra que você comerá na raiz!
         — Que seja!
          Os dois viraram-se de costas um para o outro, com suas pistolas em mãos, em meio a multidão de corpos que se amontoara ao logo da estrada... Corpos de mulheres e até de crianças desfigurados, e logo, no rio ao lado boiavam cadáveres daquele genocídio terrível que se abatera naquela parte da Europa.
Salek e Grosjnak, contaram passos retilíneos com os pés, até que findos dez passos os dois se viraram e cada um deu um tiro.
           Dois tiros, dois mortos, esse foi o saldo da vingança, e quanto a Natalia, quanto a Natalia, ela vive confortavelmente em Liubliana até hoje sendo agora “artista de rua”, ou algo próximo a isso.

            Essa é uma história de dois amigos, dois amigos, que por uma disputa amorosa acabaram se envolvendo numa rixa, numa rixa que terminou numa guerra a qual os dois acabaram morrendo... Vendetta! Esse foi o fim da Iugoslávia de Tito, um fim triste para uma sociedade a qual já fora no passado.

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