sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A Obra de Arte



      Carregando sob o braço um objeto embrulhado no número 223 do Mensageiro da Bolsa, Sacha Smirnoff, filhinho de mamãe, assumiu uma expressão de tristeza e entrou no consultório do doutor Kochelkoff.

       — Ah! meu grande jovem! — exclamou o médico. — Como vamos? O que há de novo?

      Fechando as pálpebras, Sacha pôs a mão no coração e, comovido, falou:
     — Mamãe lhe manda seus cumprimentos, Ivan Nicolaìevitch, e me encarregou de lhe agradecer… Mamãe  só tem a mim no mundo, e o senhor me salvou a vida… curando-me de grave enfermidade e… não sabemos como lhe agradecer.

     — Ora! O que é isso, meu jovem! — atalhou o médico, realizado. — Não fiz mais do que qualquer um no meu lugar teria feito…

      Depois de observar o presente, o médico coçou lentamente a orelha, bufou e suspirou, confuso.

      — Sim — murmurou —, é algo realmente magnífico… como diria?… um tanto ou quanto ousado… Não é apenas decotada; é… sei lá, que diabos!

      — Mas… por que diz isso?

       — Nem a serpente em pessoa poderia inventar alguma coisa de mais indecente. Se eu colocasse esta fantasiazinha na mesa, iria contaminar a casa toda.

       — Que modo mais excêntrico tem o senhor de interpretar a arte! — disse Sacha, ofendido. — É um objeto artístico!… Olhe! Que beleza! Que elegância! É de se ficar com a alma inundada de piedade, e com lágrimas a subir aos olhos! Contemplando-se tamanha beleza, nos esquecemos de tudo o que seja da Terra… Veja bem… Que movimentos! Que harmonia! Que expressão!…

       — Compreendo muito bem tudo isso, meu caro — interrompeu o médico —, mas acontece que eu sou pai de família. Meus filhos costumam vir aqui. Recebo senhoras…

       — É evidente — disse Sacha — que se a gente adotar o ponto de vista do povo, este objeto, altamente artístico, causará uma impressão diferente… Sou o filho único de mamãe… somos pobres, e por isso não podemos lhe recompensar os seus cuidados; e não sabemos o que fazer; embora, apesar de tudo, mamãe e eu… seu filho único… lhe suplicamos de todo o coração que aceite, como penhor de gratidão… esta ninharia que… É um bronze antigo… uma obra rara… de arte.

       — Mas não havia necessidade — disse o médico, franzindo as sobrancelhas. — Por que razão?

       — Não, eu imploro ao senhor, não recuse! — continuou a murmurar Sacha, desembrulhando de todo o pacote. — Seria uma ofensa, a mamãe e a mim… Trata-se um objeto belíssimo… em bronze antigo. Foi herança de papai, guardada como uma querida lembrança.. Papai comprava bronzes antigos e revendia-os aos colecionadores… Já mamãe e eu não nos ocupamos disso…

        Sacha acabou de desembrulhar o objeto e colocou-o solenemente em cima mesa. Era um pequeno candelabro de bronze antigo, de fina feitura. Representava duas figuras femininas em trajes de Eva e em atitudes que não ousaria — nem tenho temperamento para isso — descrever.

        As figuras sorriam ostensivamente, dando a impressão de que, não fossem retidas pela obrigação de suster o castiçal, teriam imediatamente fugido do pedestal dançado tal cancã que, amigo leitor, nem é bom imaginar.

        — O doutor, claro, está acima destas coisas todas e portanto sua recusa nos daria, a mamãe e a mim, uma enorme frustração. Sou o filho único de mamãe; o senhor me salvou a vida… Damos-lhe de presente o que de mais precioso possuímos, e… só tenho a tristeza de não nos pertencer o par do candelabro!

         — Muito agradecido, meu jovem amigo. Fico-lhe muito grato… Minhas recomendações à sua mãe, mas rogo-lhe, o senhor mesmo considere a questão! Meus garotos costumam vir aqui… Aparecem muitas senhoras… Mas deixo-o aqui, já que me parece impossível convencê-lo!

        — Ora, não há de que me convencer! — disse Sacha com habilidade. – Coloque o candelabro do lado desta jarra. Que infelicidade não possuir o par!… Bem, vou indo, adeus, doutor.

         Depois da saída de Sacha, o doutor observou bastante o candelabro, coço orelha e concluiu:

        “Não se pode negar que é magnífico. É uma pena abrir mão dele. Ao mesmo tempo é impossível deixá-lo aqui… Hum… Está criado o problema… Poderia dá-lo de presente a quem?” ·

         Depois desta reflexão, lembrou-se do advogado Ukhoff, seu amigo íntimo, que gostaria de ter o objeto.

        “Às mil maravilhas!”, decidiu. “Ukof Ukhoff não aceita receber dinheiro de mim , mas ficará contente com esta lembrança… E assim me livrarei deste incômodo. Além do mais, ele é solteiro e maroto…” ·
Rápido, o médico se vestiu, pegou o candelabro e foi até a casa do advogado.

          — Bom dia, amigo — disse, ao encontrar Ukhoff em sua morada… — Venho lhe trazer uma recompensa pela amolação… Já que não quer aceitar dinheiro meu, aceitará um pequeno presente… Ei-lo, meu amigo! É um objeto magnífico!

          Ao ver o candelabro, o advogado viu-se tomado de inefável encantamento.

           — Isso sim é que é obra de arte — disse, rindo às gargalhadas. — Que o diabo carregue os meliantes capazes de sequer imaginar alguma coisa de parecido… É maravilhoso! Onde foi que você encontrou tal preciosidade?

          Assim que o entusiasmo se esgotou, o advogado lançou temerosos olhares para o lado da porta e disse:
          — No entanto, meu velho amigo, é melhor levar de volta o seu presente. Não posso aceitá-lo…
          — Por quê? — quis saber, espantado, o médico.
          — Porque… Mamãe vem aqui, meus clientes… e além do mais é constrangedor em relação aos criados…
          — Ora, essa é boa!… Você não terá a ousadia de recusá-lo. (E o médico agitou as mãos.) Eu ficaria ofendido!… Trata-se de um objeto de arte… Que movimentos! Que expressão!… Não quero ouvir seus argumentos! Você me deixaria melindrado!
           — Se pelo menos tivesse alguma sutileza, ou se estivesse coberta…

           O médico, porém, ainda a agitar as mãos e contente por conseguir se desfazer do presente, voltou para o seu consultório.

           Sozinho em casa, o advogado pôs-se a examinar o candelabro, apalpou-lhe todas as partes e, da mesma forma que o médico, viu-se tentado a refletir sobre o que deveria fazer com ele.

          “É um objeto belíssimo”, pensou. “Seria uma pena se desfazer dele; ao mesmo tempo, é inconveniente tê-lo em casa… Melhor seria oferecê-lo a alguém… Já sei, vou levá-lo hoje à noite ao cômico Chachkine. O sacana adora as coisas desse gênero, e hoje é justamente o dia de sua estréia…”

           Foi o que fez, tão rápido quanto pensou. À noite o candelabro, lindamente embrulhado, era oferecido ao cômico Chachkine.

           A noite toda o camarim do artista foi invadido pelos homens que queriam admirar o presente; a noite toda foi de murmúrios de aprovação e de risadas que mais pareciam relinchos… Quando uma artista se aproximava do camarim e perguntava: “Pode-se entrar?”, logo a voz rouca do cômico retumbava:

         — Não, não, cara amiga! Estou sem roupa!
        Terminado o espetáculo, Chachkine dizia, dando de ombros e abrindo os braços:
         — Onde vou colocar tamanha indecência? Moro em casa de família e recebo muitos artistas! E isso não é como fotografia, que a gente pode esconder dentro da gaveta..
         — Ora, por que não o vende, senhor? — aconselhou o cabeleireiro, que o ajudava a trocar de roupa. — Tem uma velha aqui no bairro que compra bronze antigo. Vá lá e pergunte pela senhora Smirnoff… Todo mundo a conhece.

           O cômico resolveu seguir o conselho…

          Dois dias depois, o doutor Kochelkoff meditava sobre os ácidos biliosos, de dedo na testa. Subitamente a porta se abriu e Sacha Smirnoff jogou-se a seu encontro. Sorria exultante, e todo o seu ser transpirava felicidade… Trazia alguma coisa embrulhada em jornal.

         — Doutor — disse, ofegante —, imagine só nossa alegria!… Para nossa felicidade, encontramos o par do seu candelabro!… Mamãe está se sentindo tão feliz!… E o senhor me salvou a vida…

         E então, tremendo de gratidão, Sacha colocou o candelabro diante dos olhos de Ivan Nicolaievitch. 0 médico quis dizer alguma coisa mas não conseguiu. Perdera o uso da palavra.


                                                                                    Anton Pavlovich Tchekhov

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