sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Noites siberianas

         Na pequena cidadezinha de Irkutsk realizava-se um pomposo baile organizado pela elite local em homenagem a um viajante vindo da capital, Petrogrado.
    — Gostando da festa, senhor Kolichev? — Disse embriagado um senhor muito recatado de início, um nobre.
        O viajante se sentiu um pouco ofendido com o tom ruidoso com que o nobre lhe dirigira a pergunta, mas julgara que fosse efeito das quantidades absurdas de vodka que ele havia ingerido.
    — Está maravilhosa, senhor Dragunov.
    — Excelente, se lhe faltar algo, não hesite em pedir... — Dragunov foi puxado por dois amigos à roda de dança como um cão e rapidamente se pôs a dançar a gopak.

        “Meu Deus! O Czar não havia proibido a vodka? De certo as leis de Petrogrado não chegam com mesma força aqui” Pensou Kolichev.

        Kolichev seria o novo comissário de polícia de Novaya Ulan, cidade próxima a Irkutsk, nomeado em pessoa pelo próprio czar Nicolau II; tivera uma vida  obscura no início, mas realizando negócios duvidosos com pessoas as quais vale ter medo de mencionar, Kolichev entrou no serviço público em São Petersburgo, angariando rapidamente altos postos na Polícia Política do Czar, a Okrana, e também conseguiu apoio efetivo dos gerdames por suas ligações com o chefe da Gerdamia.
          Fora sem dúvida um dos melhores agentes da Okrana, realizara inúmeras batidas em lugares suspeitos, realizara prisões a “elementos subversivos à sociedade”, e já era persona non grata  por muitos membros dos partidos socialistas mais radicais da Rússia.
         De fato, fora desse jeito que fora parar ali, afinal, fora ele que liderara o fiasco em Petrogrado, anos atrás, quando mandou que atirassem na multidão de manifestantes do padre Gapon nas portas do Palácio de Inverno, num evento que foi intitulado Domingo Sangrento.
          Aquele ato não passara despercebido e rapidamente Kolichev começou a ser obscurecido na própria Okrana, mesmo assim continuou no seu cargo de diretor regional da instituição nos arredores da capital.
          E pensar que há alguns meses estava ele em Petrogrado, nos mais xistosos bailes da alta aristocracia russa... Ele mesmo chegara a uma vez a cumprimentar o czar em pessoa...

          “O czar, que pessoa boa e gentil, de certo ficou rodeado de elementos tolos e inaptos... Porque o czar me mandou para cá? Para esse fim de mundo! Eu que servi tão bem a seus desígnios!”

            Mas ele sabia o porquê, ele lembrava bem no corte no rosto que agora tocava com a mão esquerda!

             “Malditos infelizes! Vejam o que me fizeram!” Pensou Kolichev.

         “Chefe regional da Okrana sofre atentado em Petrogrado nessa manhã

          Enquanto prosseguia em direção à sede da Okrana na capital imperial, o diretor regional da Okrana, Nikolai Mikhailovich Kolichev, teve sua diligência atacada por um grupo de anarquistas autointitulados, Mão Negra, quando passava próximo ao Instituto para Moças Smolni, ontem à tarde.
          Segundo fontes do jornal, a atitude tomada por esse grupo resumiu-se a uma explosão de uma bomba numa das patas do cavalo, que acabou fazendo com que a diligência tombasse em plena avenida.
          Os anarquistas ainda lançaram um ataque tímido, mas capaz, com rifles e revolveres contra a diligência, acertando diversos disparos no diretor Kolichev.
           Aparentemente, os “bandidos” fugiram sem deixar pistas, em meio ao pânico que se instalou na avenida, mas os gerdames garantiram que realizaram o seu trabalho com a mais efetiva perícia que conseguirem.
            Hoje, nessa manhã, dia 12 de janeiro, o diretor recebeu a visita do chefe geral da Okrana que declarou:  “enhum desses atos insurgentes será por um único momento esquecido enquanto prosseguirmos nossas operações para a captura desses baderneiros inconsequentes” 
          O chefe geral também declarou que o diretor Kolichev passa bem, mesmo tendo levado três tiros contra si, e que também está muito abalado com o ocorrido, desse modo que ainda essa semana será transferido para a Sibéria” (Petrogradskaya Gazeta, 12 de janeiro de 1915)

        Mas Kolichev sabia que aquilo era mentira, ele não ficou abalado coisa alguma, ele queria pegar aqueles que fizeram aquilo consigo, mas sabia que o Chefe Geral queria se livrar dele, e aceitou, mesmo de mau grado, a transferência para a Sibéria.

        “Porcaria! Nem trem há nessa joça!”, isso porque a Transiberiana acabava em Krasnoyarsk, e mesmo Kolichev xingando Deus e todos naquela terra esquecida, isso não mudava que estivesse na Sibéria.

    — Como vai, senhor Kolchenov?
    — Kolichev — Corrigiu Kolichev elegantemente.
    — Mil perdões, senhor, não quis ofendê-lo — Disse-lhe um senhor de cabeça calva, olhos azuis, barba pontiaguda grisalha, pequenino como um elfo; parecia um monge, mas na verdade, o seu terno, mesmo surrado, aparentava que fosse mercador ou funcionário público.
    — Tudo bem, senhor... Desculpe, senhor, mas qual é o seu ar da graça?
    — Supakov, Dmitri Supakov.
    — Supakov, muito prazer, sou Nikolai Kolichev.
    — Sim, eu sei quem o senhor é, eu sou o proprietário da metalurgia Supakov.
    — Ah! Sim, eu ouvi muito sobre o senhor.
    — Pois bem, posso chamá-lo de Nikolai?
    — Só se eu puder chamá-lo de Dimitri .
    — Pois bem, assim seja... Bem, senhor, eu gostaria de felicitá-lo pelo senhor aparecer em nossa querida cidade.
    — Sou-lhe muito grato por isso.
    — Em todo caso, eu posso fazer-lhe uma pergunta?
    — Já fez — Troçou Kolichev amargamente, mas depois continuou — Vá lá, pode fazer...
    — O senhor, o que o senhor fez para cair aqui?
    — Como assim?
    — Bem, o senhor deve saber, que poucos aqui vieram de bom grado para a Sibéria, e os que vieram logo voltaram à capital por não aguentarem isso aqui. Nós, os habitantes mais velhos, sabemos o passado de cada um e porquê veio aqui... O governador, o qual lhe dá essa garbosa festa, foi mandado para cá por discordar dos desígnios do velho czar, Alexandre III, que descanse em paz.  Aquele ali, o farmacêutico, foi mandado aqui por vender ópio sem licença...

         Kolichev olhou em volta e encontrou o farmacêutico, de casaca branca, que parecia um jaleco, embora não fosse; o farmacêutico estava adicionando uma solução no copo de bebida que Kolichev julgou ser algum alucinógeno, e em seguida bebeu.

    — Entendo.
    — Mas o senhor? O que fez para cair aqui?
    — Me diga primeiro o senhor, o que fez para cair aqui?
    — Bem, eu me envolvi na faculdade com alguns movimentos estudantis e eis que caí aqui... Estou há trinta anos nessa pocilga, sem perspectiva de volta.
    — Mas o senhor pode voltar quando quiser.
    — A questão é que não quero mais, me acostumei... É estranho, mas com o tempo você se acostuma. Mas o senhor não respondeu minha pergunta.
    — Eu tinha uma ficha impecável em Petrogrado, uma das folhas de carreira mais notáveis que se tinha na agência, mas bastou um maldito atentado para me mandarem para cá... Mas eu sei o real motivo para me mandarem para cá.
    — Qual?
    — Queriam me afastar do meu posto  para que o primo do Czar assumisse, mas não queriam iniciar uma rixa na Okrana... Eu fui traído!
    — Todos nós aqui fomos... Não só fomos por nossas mulheres, a quem matamos com os seus amantes e caímos aqui, ou mesmo fomos traídos por nossos amigos que nos denunciaram para ficarem bem nas nossas aldeias... Ou mesmo fomos traídos pelo sistema corrupto da justiça. Todos nós fomos traídos e caímos aqui.

         Aqui marcou bem fundo o novo chefe de polícia de Novaya Ulan, aquilo gerou-lhe um mau estar, que lhe fez desarrochar o colarinho de sua camisa, e com um suspiro bebeu todo o seu copo de vodka... As pessoas em volta, acabaram prestando atenção na conversa, e o baile na casa do governo cessou, todos ali sabiam do passado de todo mundo, menos do chefe de polícia.

    — Eu tinha uma mulher... Uma mulher que fugiu com o primeiro artista que viu pela frente, eu tinha um filho, um filho que agora se tornou um alcoólatra inveterado, aí eu percebi que era melhor ficar aqui, do que remoer o passado e voltar para Moscou — Declarou Supakov.
    — E eu, eu tinha uma noiva! Uma das mais belas moças que vi na minha inteira, estava prestes a me casar com ela, quando vi por mim que meu melhor amigo me traiu e me denunciou como subversivo, só por eu ter escritos de Proudlon e Marx em casa... Fui mandado para esse fim de mundo enquanto a minha noiva foi obrigada a se casar com esse infeliz pelos pais em Novgorod! E agora? Agora estou dançando com essa nariguda bonachona a quem chamo de esposa! — Declarou um terceiro.
        Todos ali começaram a contar as suas histórias, sua amarguras, e mesmo, alguns sendo nobres, todos ali contavam histórias de como caíram ali, sem nada, na Sibéria; Os nobres ainda recebiam pensões do governo, mas  mesmo assim da noite para o dia perderam todo o luxo em que viveram.

        Alguns foram mandados para lá unicamente por terem se levantado em grupos contra o regime, outro, só por se reunirem foram presos, outros além, tiveram provas plantadas pelos chefes de polícia corruptos das vilas, e foram mandados para lá, outros vendiam vodka sem licença e acabaram presos, outros também cometeram crimes hediondos, assassinatos passionais, estelionatos e outras coisas mais, mas escaparam do destino atroz dos campos de trabalho.

         Numa certa altura, Kolichev viu-se tão cheio, mas tão cheio daquelas histórias, que saiu, dando uma desculpa falsa, e seguiu para a sacada do edifício para se afastar daquelas pessoas que não paravam de falar.
    — Oh! Deus do Céu! O que fiz para cair aqui?

          Kolichev baixou sua cabeça enquanto o baile se reiniciou com o tocar das balalaikas ao fundo, Kolichev apoiou-se na cerca e começou a chorar de desespero, e sozinho começou a pensar na vida que levava em Petrogrado... Os bailes, as cortesãs a quem cortejava, as mulheres com quem dançava, os affairs que tinha com as damas casadas.
          Sim, sim, ele já fora grande! Ia a bailes duas vezes por semana, às vezes três! Flertava, sorria, dançava... Usava de sua beleza para conquistar as damas, as amas de leite,  as empregadas... Claro, ele era bonito, tinha uma barba castanha bem aparada, um topete meio despenteado para o lado, como o de um poeta, olhos azuis; parecia ser mais maduro, mesmo só tendo  quarenta anos recém completos!
    — Champagne, senhor?
    — Não, obrigado — Kolichev tentou camuflar a voz, e em seguida puxou um lenço do bolso, a empregada aproximou-se dele devagar.
    — O que houve, senhor? O senhor parece-me triste.
    — Não, não é nada demais.

          A empregada usava um típico uniforme preto de empregada, uma saia branca, e uma camisa com um decote discreto e um lenço branco, tinha no cabelo uma espécie de touca, da mesma cor escura que o seu uniforme ostentava; Kolichev rapidamente se calou e ficou parado a olhando.

           Esquecera até o que iria dizer, seriam palavras grosseiras, mas não cabiam para aquela jovem moça que estava a sua frente; A moça era bonita, tinha olhos turquesa, dos quais o chefe de polícia logo fitou, e cabelos escuros, mesmo presos, aparentavam ser cuidados. Tinha uma boca sensual, embora um  pouco fina, nariz definido , mas pequeno, que denunciava que também fosse eslava, embora os seus olhos fossem um pouco rasgados, eram oblíquos e bonitos. Kolichev ficou admirado.

    — Volte para o seu serviço, sua serviçal imunda! — Esbravejou a dona da casa, Matriuska Feodoronovna, esposa do governador.

         A serviçal meneou e saiu com a bandeja de volta para a sala, Kolichev a acompanhou com os olhos, enquanto a anfitriã queria-lhe tomar sua atenção.

    — Senhora Romanenko, quem era ela?
    — Nossa empregada, Natasha Kalikova, ela é ortodoxa sim, mas ela tem hábitos bem estranhos, mesmo para uma jovem dos Urais.
    — Urais? O que ela faz aqui?
    — Quem sabe? Decerto não tem onde cair morta, foi uma felicidade para ela termos a empregado.
          Kolichev ficou calado, e a anfitriã puxou-lhe delicadamente para o braço e disse:
    — Venha, quero que conheça as minhas filhas.

          “Essa não, as filhas dessa megera devem ser tão feias quanto a mãe!” Pensou consigo Kolichev.

          Kolichev não errou, quando se aproximou das filhas do governador teve a impressão de estar cumprimentando um filhote de picapau e um mamute desmamado; A filha mais velha de Kolichev, Olga, era alta, magricela e nariguda, tinha um cabelo ruivo mal-pintado, penteado em forma de topete, parecia mesmo um picapau. A filha mais nova, Zoya, era gorduchona, e tinha uma mão suada, tinha um cabelo escuro e enrolado, e uma cara meio equina, não parecia tanto um mamute, parecia mais um rinoceronte!
    — Veja, meu caro senhor Kolichev, Olga, já está com vinte anos, já está na hora de se casar... Decerto procuramos um bom noivo para ela, mas ela não se quer casar, não quer ao menos pensar na ideia de entrar na Igreja de branco! Isso é horrível, não é mesmo?
    — Bem, a ideia de ficar sozinho é uma coisa muito séria, mas decerto, ela encontrará alguém que lhe seja de bom coração e se apaixonará.
    — Acho difícil, nesse fim de mundo há poucas pessoas de boa linhagem, como o senhor...
        Kolichev engoliu seco com isso, ela, com certeza, estava tentando empurrar a filha feia dela para ele, e isso para ele, que freqüentou as camas das mais belas damas da capital era inconcebível!
    — Um dia aparecerá um bom noivo que irá se felicitar em formar família com ela.
    — Receio que esse dia já tenha chegado, senhor Kolichev. A minha filha encontrou quem quisesse se casar, a questão que ela não sabe se ele está interessado.
    — De fato, resta a questão dela conhecer melhor o pretendente, para não se arrepender no futuro ao deparar-se com a possível infelicidade que possa se abater no futuro.
    — O senhor tem razão, talvez ela deva conhecer melhor o pretendente antes de pensar em tal atitude, estamos sendo muito premeditados.
    — Pois sim, é o que me parece.
    — O senhor é bem vindo a visitar a nossa casa quando quiser, senhor Kolichev.
    — Fico feliz por isso, cara senhora Romanenko — Kolichev curvou-se em reverência a filha mais velha da velha senhora, que estava sentada à sua frente, e beijou-lhe a mão e em seguida fez um sinal de reverência para a dama que respondeu com outra reverência educada.
    — Receio que deva partir, está ficando tarde e ainda não me registrei no hotel.
    — De nenhuma maneira permitiremos que um convidado nosso se registre naquela pocilga que se chama de hotel — Disse o anfitrião ruidoso — Pode ficar, senhor Kolichev, será nosso hospede até decidir a hora que partir.
    — Receio que não tardará, meu caro, mesmo assim agradeço sua hospitalidade e aceito de bom grado seu pedido.
    — Que assim seja, que o baile recomece!
          Kolichev não queria mais saber do baile, estava cansado daquela atmosfera provinciana  e rapidamente falou com a anfitriã quanto a isso:
    — Cara, senhora Romanenko, eu receio estar cansado de minha viagem de Krasnoyarsk até aqui, será que há um quarto vago para mim? Eu não quero trazer muitos problemas.
    — Ora, problema algum, chamarei Natasha para providenciar o seu quarto. Natasha — Bateu palmas.
         A serviçal prontamente apareceu  com o seu uniforme escuro, junto à entrada da cozinha para o salão.
    — Sim, senhora Romanenko?
    — Leve as malas do senhor Kolichev ao quarto de hóspedes e faça com que ele se sinta confortável.
    — Sim, senhora Romanenko.
         A serviçal adentrou no salão para pegar as malas de Kolichev, mas o próprio hóspede recusou tal ação.
    — Creio que não seja necessário, minha querida, deixe que eu as leve, pode me levar ao quarto?
    — Sim, senhor, é por aqui — Conduziu-o em direção ao quarto.
         Os convidados continuaram a bebericar doses absurdas de bebida enquanto os velhos contavam histórias e os jovens dançavam com as damas ao som da orquestra ruidosa.
    — Senhor Kolichev...
    — Sim, senhora Kalikova.
    — Pode-me chamar de Natasha, todos me chamam aqui de Natasha.
    — Então me chame de Nikolai.
    — Certo, Nikolai... Nikolai, você pode me dizer uma coisa?
    — Sim, pode falar.
    —Ouvi da boca da senhora Romanenko que o senhor, digo, você vem de Petrogrado, isso é verdade?
    — Sim é, por quê?
    — Por nada, senhor, digo, Nikolai, eu só queria saber como são as coisas na capital.
    — São maravilhosas, minha cara, maravilhosas. Um baile por semana, às vezes duas, outras três... Com artistas, nobres, príncipes, o próprio czar costuma ir também. Os generais vão com suas esposas, enquanto contam histórias de suas batalhas, nós dançamos com suas esposas, bebemos... É maravilhoso!
    — Nossa! Parece lindo mesmo, como eu queria ir à capital.
    — E por que não vai?
    — Está brincando, senhor? Ouviu a senhora Romanenko, eu não tenho onde cair morta, quase morri de fome em Ekaterimburgo, foi por pouco que não consigo esse emprego.
    — Mas isso não é um emprego para uma moça!
    — Mas como posso fazer? Nada mais tenho, meus pais estão mortos, meus irmãos também, tudo que tenho é isso.
    — Ora não é verdade, você tem o mundo inteiro pela frente.
    — Eu queria acreditar no senhor, esse é o seu quarto.

         Kolichev adentrou no cômodo com as malas em mão e rapidamente as colocou na cama, Natasha aproximou-se das malas e começou a desfazê-las para colocar as roupas na mobília.

         Kolichev aproximou-se dela e com as mãos conteve o seu trabalho, Natasha e Nikolai se entreolharam silenciosamente, até Nikolai interromper o silêncio:
    — Não, não é necessário, deixe que eu faço isso.
    — É o meu trabalho, senhor, se a madame souber que eu não fiz nada, ela brigará comigo.
    — Desde quando trabalha para os Romanenko?
    — Desde que tenho 12 anos!
    — Você era uma criança!
    — Eu precisava comer, senhor.
    — Tudo bem, eu não a julgo, eu também tive que fazer coisas para sobreviver... Pode ir, eu cuido de tudo.
    — Senhor...
    — Se a senhora Romanenko aparecer eu digo que foi porque eu quis.
    — Como quiser, senhor.
    Natasha saia do cômodo, quando Kolichev então disse:
    —E Natasha...
    — Sim, senhor Kolichev?
    — Pare de me chamar de senhor, não sou tão velho.
    — Como quiser, Nikolai.
         E então Natasha saiu do quarto enquanto Kolichev procurou desfazer as malas, nem achava que fosse preciso, partiria logo de manhã, mas ele sentiu pena de Natasha, do quanto que trabalhava, que não julgou errado estar  desfazendo as malas.
         Do quarto ainda se podia ouvir o barulho da festa, os bêbados gritando, as pessoas conversando, a orquestra tocando, Kolichev julgou aquilo muito provinciano, mas agradecia a hospitalidade dos donos da casa, afinal de contas, ele teria uma viagem muito longa a Novaya Ulan e o hotel daquela cidade não lhe fora muito bem recomendado.

           Kolichev continuava a pensar em Natasha, e pensava em como uma moça tão bonita foi cair num lugar tão afastado como aquele! Ele até entedia agora ela?  Ela era uma criança, uma criança que fugia da fome e caiu por necessidade ali! Só mesmo na Rússia isso acontecia!

            E como ela era linda! Era tão linda quanto às Grãs-Princesas,  as filhas  do Czar, Natasha era uma diva numa terra selvagem , sozinha, sem ninguém para salvá-la; ele também, ninguém o salvara daquele desterro em Petrogrado, de certo, queriam era afastá-lo, afinal, ascendera com rapidez no serviço público.

           Mas agora Kolichev pensava no seu passado, não menos infeliz do que fora o de Natasha, de como tentara escapar da fome em Rostov-no –Don, quando se abateu a grande fome quando tinha oito anos, e como tivera que cometer roubos para sobreviver... Não se orgulhava disso, afinal roubara dinheiro de velhinhas, de moças tão jovens quanto Natasha, mas precisava comer.

            Envolveu-se em crimes mais elaborados, dando golpes em velhos tolos e simples mujiques, para enfim dar o golpe maior, fingir se passar por outra pessoa para entrar no serviço público, esse era Nikolai Kolichev.
           Kolichev, quem diria, o diretor da Okrana, era um simples batedor de carteira em Rostov, que depois virou o maior agente da polícia política!

           Flocos brancos emergem do céu para assombro de Kolichev que os avista de longe pela janela:

    — Droga! Agora mesmo que não saio daqui!
          E Kolichev previu certo, o anfitrião, senhor Romanenko, retirou-lhe qualquer possibilidade de sair em pleno Inverno russo; tinha até um fundo de razão, enfrentar o inverno siberiano não era para ninguém, ainda mais indo-se para a divisa de seus territórios!

          Kolichev, mesmo compreendendo os argumentos do anfitrião, julgou isso ter sido uma estratégia para fazê-lo se aproximar da nariguda de sua filha, a “Picapau”; ele não estava errado.
         Toda a noite, Romanenko e sua esposa forçosamente, nos jantares  de família, obrigava que Kolichev e Olga a sentarem-se lado a lado, enquanto o anfitrião astutamente fazia com que as conversas se centrassem nos dois, até quanto à política!
    — O governo está sendo muito frouxo com esses infelizes! Veja, mais uma greve em Khakov! Não percebem que isso apenas atrasa o progresso de nossa terra que há tanto é ultrapassada pelos ocidentais! Não sabem eles que numa guerra, deve-se dar tudo de si! Estamos há muito atrasados quanto um país civilizado quanto a França — Debateu o senhor Romanenko — O que o senhor acha sobre tais assuntos?
    — Eu!? Confesso que ando um pouco desinteressado por política desde que fui transferido de Petrogrado, mas eu devo discorrer sobre o fato das greves; É verdade que as greves estão sendo plantadas por alguns grupos para desestabilizar o governo, mas no geral,  o povo vive mal, trabalha muito, e tem pouco para viver... Esses infelizes não tem muito a serem ouvidos pelo Czar senão for por meio da greve.
    — Muito me admira o senhor falando isso, afinal, não fora o senhor que liderara o que esse infelizes chamam de Domingo Sangrento?
    — Eu era jovem e inexperiente.
    — Faltar-me-á dizer-se agora socialista! Como esses infelizes que sequer sabem o que é socialismo e entram em qualquer coisa por um prato de comida! Temos 5 exilados aqui mesmo, trabalhando para o farmacêutico, por atividades subversivas.
    — Mas por que razão entraram em tais atividades? Pois não tem mais nada o que comer! — Declarou Kolichev.
         Kolichev não sabia o que estava falando, o vinho lhe deixara tonto, era um vinho de péssima qualidade por sinal, mas sabia que Natasha, a sua vida como todo, havia lhe influenciado àquilo. Ele não era nobre, mas também não era mais pobre, o que ele era?
    — O senhor fala como esses charlatões...
    — Esses “charlatões” que o senhor chama, são pais de família que tiveram suas famílias tomadas pelo frio, pela fome, pelo desespero; e desempregados, são levados à essa vida de obscuridade, tendo em vista que não possuem lugar em  nossa sociedade.
    — O lugar deles é cuidado do arado e dos moinhos! Assim era no tempo de meu pai, e do pai do meu pai, e assim por diante.
    — Os tempos mudaram, meu caro, os servos deixaram de servir, hoje trabalham em fábricas. Os tempos são outros, em Petrogrado mesmo pode-se perceber isso!

          Aquela discussão parecia não ter fim, mas eis que surge a formosa empregada dos Romanenko, com o seu delicado uniforme escuro, servindo de vinho (o mesmo vinho vagabundo de antes) a taça de Kolichev; tomando a atenção de todos com sua entrada.

    — Sabe, ouçamos a voz do povo sobre isso, Natasha  Kalikova, diga-nos, o que acha sobre isso?

        A empregada ficou encabulada com o pedido inusitado do seu patrão, afinal nunca pediam que falasse alguma coisa, em todo caso, logo compreendeu que esse era um joguinho de seu patrão.
    — Sobre que assunto, senhor?
    — Sobre as greves e esses movimentos todos.
    — Nada tenho a dizer se nada saber, em todo caso, é verdade que tive uma vida dura até aqui, uma vida grata por ter adquirido um lugar para morar.
         Kolichev apiedou-se da tristonha história de Natasha, mas Romanenko, Romanenko sentiu nojo:

    — Ah! Por favor, deixe de ser tão servil! Isso me dá nojo! Agora vá, vá, saia daqui!

         A empregada, incrivelmente assustada com o tom de voz do patrão, saiu de cabeça baixa da sala, parecia chorar, decerto, aquela atitude foi por demais de provinciana.
    — É assim que o povo fala! É desse jeito! Não tem opinião, sem ideias, apenas nos bajula por um prato de comida — Declarou Romanenko.
    — Creio que o senhor não devesse troçar tanto do povo assim, eles um dia podem se revoltar.
    — Se revoltar? Meu caro, está tentando ensinar padre a rezar missa? Esses amotinados nunca terão apoio do povo, e tenho dito.
          A atmosfera começou a ficar pesada naquela sala de jantar, o anfitrião, colérico, parecia um pimentão vermelho de tão nervoso, teve até que desarrochar o colarinho de sua camisa... Kolichev, sempre respeitoso, achou melhor não dar mais vida à discussão, afinal de contas era falta de elegância falar mal alguém que lhe dá estadia.
    — Minha cara Olga, o que acha sobre esse assunto? — Interviu a anfitriã para tornar mais calma tal situação.
    — Eu creio que o senhor Kolichev não se apercebe o perigo da situação a qual estamos expostos, esses amotinados são a escória da sociedade, pessoas que comem com as mãos, falam alto, troçam dos passantes e assobiam para as moças de classe. São uns verdadeiros trogloditas!
        Aquilo foi mal interpretado por Kolichev, a menina magricela, nariguda, sem vida alguma, agora estava tentando debater política de um jeito dúbio e acidentado; Kolichev julgou que era mais saudável para a conversa sair dali.
    — Temo que esse assunto tenha sido um pouco indigesto para o jantar, em todo caso, creio que não esteja passando bem, acho melhor me retirar.
    — Mas agora? — Declarou meio assustado o senhor Romanenko, não sei se foi porque ele quisesse que Kolichev e sua filha conversassem mais um pouco, ou se ele queria ver a reação de Kolichev para tal resposta.
    — Eu lamento muito, excelentíssimo governador, mas eu realmente tenho que me ausentar.
    — Pois que seja então, meu caro, de manhã retomamos a conversa, vou chamar Natasha para cuidar do senhor... Natasha!
    — Senhoras...—Kolichev aproximou –se das damas que estavam agora de pé, junto a quina da mesa, curvou-se e beijou a mão de cada uma delas, incluindo de Olga, que tristonhamente disse:
    — Eu estimo melhoras ao senhor.
    — Sou-lhe grato por isso.
        “Finalmente ela percebeu que o que ela falara fora fraco e tolo!” Julgou Kolichev.
    — Natasha!
    — Sim, senhor Romanenko? — Surge a empregada em meio à pressa junto à sala, ela ainda não conseguira enxugar suas lágrimas, e sua maquiagem estava toda borrada, mas ela tentou esconder o rosto encurvando a cabeça de modo servil.
    — Leve o senhor Kolichev para o quarto, ele não se sente bem, e cuide para que ele melhore.
    — Sim, senhor Kolichev.
         Natasha acompanhou Kolichev cautelosamente, cuidando para que não passasse mal no caminho... Romanenko julgou isso mal, realmente mal.

    — Do jeito que você anda com Kolichev é capaz dele acabar com empregada, menina! — Esbravejou Romanenko.
    Olga baixou a cabeça e segurou o seu choro, aquilo foi interpretado de maneira bruta por sua mãe.
    — Pare com isso, Vassili Klimentevich! Está fazendo-a chorar!
— Se essa barata tonta não agir, ela não vai ser a única a chorar! Mas que diabo, será que não consigo casar nenhuma filha minha!
...

    — O senhor está bem, senhor  Kolichev? — Disse de modo servil Natasha ao auxiliá-lo a subir na cama do quarto.
    — Natasha, pare com essa coisa de senhor, chame-me de Nikolai.

         Natasha encontrou um papel junto à mesa de cabeceira, era uma gravura, uma gravura bem bonita por sinal, feita de grafite.
    — O que é isso, senhor?
    — É o que parece, minha querida, um retrato seu limpando a casa.
    — Por que o senhor fez isso? Eu não sou ninguém importante para ser desenhada.
    — Você é importante sim, é importante para mim. E pare de me chamar de senhor!
    — Mas senhor, o meu patrão não gostará nada disso, se eu tratar os nossos hóspedes pelo primeiro nome.
    — Pois que se foda ele e seus costumes...
          Natasha sentiu um pouco de constrangimento quanto ao uso da palavra, mas achou risível que um nobre as usasse, ela baixou a cabeça e segurou o riso entre os dentes.
    — Desculpe-me pelo meu palavreado, isso não é adequado para uma dama como você.
    — Mas, senhor, eu não sou uma dama.
    — Aos meus olhos sim, eu sinto muito que ele tenha feito isso contigo hoje, Natasha, eu realmente sinto muito, ele não devia ter feito isso.
    — Eu já estou acostumada senhor.
           Kolichev levantou-se da cama, e calmamente andou em direção a  Natasha, fato esse que a fez erguer os olhos para o visitante... Kolichev agora entreolhava aqueles olhos turquesa pelos quais se apaixonara.
    — Eu sinto muito — Retirou um lenço do bolso de seu colete e o enrolou na mão direita.
          Kolichev começou a enxugar o rosto da jovem com o lenço de seda, ele nem se lembrava que fora um presente da imperatriz, tudo que lhe importava era secar o rosto daquela jovem moça que tanto chorara.
    — Uma senhorita tão linda não devia ser exposta a tais desaforos, minha cara, isso é inconcebível para a senhora.
          Natasha ficou sem reação por alguns minutos, até que em certo momento teve a ousadia de afastar o braço de Kolichev com a mão, ato esse que deixou um pouco assustado Kolichev.
    — Não, senhor Kolichev, isso está errado, eu só sou uma simples empregada, eu não posso abandonar a família que tão bem me acolheu quando estava com fome. E além disso, o senhor é um pretendente da filha de minha patroa, eu não posso fazer isso.
    — Fazer o quê?

         Kolichev aproximou-se mais  de Natasha, podia sentir a respiração da jovem pulsar ao seu rosto... Natasha permaneceu imóvel, seu olhar não era de repulsa, de nojo, tão pouco servil, era um olhar apaixonado.
    — Natasha...

         Kolichev aproximou os lábios do rosto da empregada, os dois se beijaram ali, em meio vento que entrava pela janela e trazia a neve para o cômodo, entre as cortinas que se esvoaçavam, mas mantinham presas à parede, de pé, defronte ao tapete vermelho, os dois se beijavam.
          A luz da chama da lareira trazia uma policromia envolvente ao tom  romântico daquela situação, Kolichev finalmente estava amando... finalmente, todas as outras vezes que se envolvera com mulheres, elas eram casadas, e delas só queria receber elogios e altos cargos, mas de Natasha, de Natasha, só queria receber amor.
          O tocar de lábio exalava uma doce cantiga de amor, Kolichev saboreava o doce interior da boca de Natasha, Natasha mesmo sendo uma empregada, era uma menina bem cuidada e por isso recatada; O julgamento de Kolichev não estava errado, ela era uma dama!
          Os dois amantes de olhos fechados admiravam-se com o calor de um ao outro, da sensação do tocar apaixonado dos dois, ouve-se ao fundo um gemido choroso de mulher.
          Natasha percebe tal pranto desesperado e rapidamente acorda para a realidade, e quando percebe que alguém mais está ali, ela delicadamente afasta os braços de Kolichev.
          Kolichev não entende, julga ter feito algo de errado, e afastas os lábios dos de Natasha, e quando ela aponta para trás ele rapidamente se vira.
     — Papai tinha razão... Papai tinha razão, ele tinha razão, era mais fácil você se apaixonar por Natasha do que por mim, era mais fácil! A empregada! Logo a empregada! O que fiz para merecer isso?

         Natasha dá dois passos para frente e tenta conversar com Olga:
    — Nós não queríamos machucá-la, nós realmente não queríamos, aconteceu.
    — Cale-se, sua infeliz! Cale-se, eu não quero ouvi-la de novo!

         Kolichev puxou Natasha pelo braço para trás, e quando essa voltou, Kolichev tomou a frente:
    — Olga, nenhum dos que estão aqui mentiu para você, nenhum de nós te enganou, nós não tomamos nenhuma iniciativa deliberada contra você. O que a senhora teve foi um erro de julgamento, apenas isso, eu realmente não estava interessado na senhorita, e creio que se a senhora não apercebeu-se disso foi porque houve um equivoco.
    — E as nossas conversas, os olhares, eu pensei que me amava.
    — Que olhares? Escute minha cara, todas as conversas que tivemos foram todas embasadas no espírito amistoso, guiado por normas de educação. A senhorita é uma pessoa boa , tem a vida inteira pela frente, escute minha cara, encontrará outra pessoa, uma pessoa boa e amorosa.
    — Não, não, não me engane, ninguém nunca quis saber de mim, e não vai ser agora, essa vida está sendo dura demais, com a pressão de meus pais, com o futuro incerto e tudo mais;
    “Menina mimada”, pensou Kolichev.
    — Escute, não há porque se alarmar, se a senhorita não sabe, há quatro dias atrás, no baile, encontrei um oficial lançando olhares atentos à senhora.
    — Um oficial!? Quem? — Alegrou-se repentinamente a jovem, enxugando as lágrimas do rosto.
    — Um tal de Nikolaiev, oficial de cavalaria, acho que era major, ou coronel, alguma coisa assim, ele está de passagem para Novaya Ulan, se quiser eu o encontro na cidade e falo com ele.
    — Eu não sei.
    — É um rapaz muito inteligente e capaz pelo que pude perceber, talvez ele seja uma boa pessoa para você.
    — O senhor acha?
    — Do jeito que ele a olhava, tenho certeza.
    — Isso será maravilhoso.
    — Pela manhã falarei com os seus pais, sobre ele, vão gostar de alguém do exército a família.
    — Obrigado, senhor, muito obrigado mesmo, e pode deixar, eu não falarei nada de vocês!
    Olga saiu de cabeça erguida do cômodo e com um andar calmo e delicado, percorreu o corredor ao seu quarto, no segundo andar.
    — Ela aceitou fácil demais — Declarou Natasha.
    — É porque ela não me amava, e eu sabia disso, eu a vi lançar os mesmos olhares para esse tal de Nikolaiev, será de grande ajuda para ela se eu falar com os pais dela amanhã.
    — Como o senhor sabia?
    — A corte está cheia de mulheres assim, mulheres que são impacientes e procuram todo o que é tipo de homem para se casarem... e acabam se casando com os piores maridos que existem, então elas começam a trair os seus maridos com os primeiros jovens oficiais que encontram pela frente.
    — O senhor parece estar bem informado.
    — Sente-se minha querida, deixe-me contar a verdade, não quero que aja mentiras entre nós. Meu nome é Nikolai, mas não Kolichev, meu nome é Nikolai Serpinsky, eu era um trapaceiro em Rostov-no-Don, mas o maior golpe foi me passar por nobre, fraudei os documentos necessários, copiei as assinaturas do serviço público, e entrei na nobreza por tempo de serviço. Eu não me orgulho disso, mas como você, também passei fome. Meu pai era um alcoólatra que me batia todo dia, todo dia, vivia bebendo, até que um dia saí de casa quando minha mãe morreu, e bem, estamos aqui.

         Natasha ficou calada, ela parecia muito séria com tudo aquilo, Serpinsky julgou que aquilo tinha sido terrível para os dois, mas então Natasha começa a falar.
    — Eu o aceito assim, eu o aceito do jeito que você é. Eu o amo e nada mudará isso, mas eu não posso abandonar tudo, eu tenho um dever para com os Romanenko, eu não posso abandoná-los assim.
    — E se eu falar com eles? Isso talvez mude as coisas.
    — O senhor faria isso?
    — Certamente faria isso, agora vá, Romanenko já deve estar te esperando.
    — Sim,  Nikolai. Eu volto daqui depois — Os dois se beijaram, e Natasha então arrumou o seu uniforme.
         “Olga terá uma surpresa quando souber que Nikolaiev está afim de sua irmã e não dela! HAHAHA!”, deitou-se Serpinsky na cama enquanto olhava para as malas a fazer, era hora de fazer as malas.
...


         Serpinsky adentra no cômodo principal da casa com um par de malas nas mãos, enquanto se dirige ao cocheiro que preparava as malas para a partida.
    — Senhor Kolichev, é só isso mesmo? Nossa viagem será longa.
    — Sim, será só isso mesmo de minha parte; Pode levar essas malas para a diligência por favor?

        O cocheiro pegou as malas das mãos de Kolichev e caminha vagarosamente à diligência, o camarada, de uns sessenta e poucos anos não tinha nenhuma pressa quanto a vida, quão menos em andar.
          O governador desce as escadas com os pijamas ainda vestidos, seguido pela senhora Romanenko e suas filhas.
    — Já vai partir, senhor Kolichev? Não é muito cedo? Afinal, a neve só deu a trégua hoje, e quem saberá quando dará de novo?
    — Receio que deva partir logo para Novaya Ulan, minha comitiva me espera por lá.
    — Se o senhor insiste — Romanenko aproximou-se de Kolichev e apertou-lhe as mãos amistosamente — Serás muito bem vindo em minha casa quando quiser visitá-la.
    — Sou-lhe grato, caro governador, mas tenho um assunto de suma importância a tratar com o senhor.
    — Pois diga, meu caro, sou de todo ouvidos.

          Os dois assentaram-se nos sofás da sala, Olga sentiu uma felicidade momentânea, naquele momento, e sua mãe julgou que talvez fosse porque Kolichev iria confessar o seu amor por Olga.

    — No último dia, eu e Olga tivemos uma conversa sobre algumas questões, dentre elas a de pretendentes... Pois bem, eu conheci um camarada chamado Nikolaiev, um senhor muito respeitável, oficial de cavalaria em Novaya Ulan, no baile oferecido em minha homenagem, ele manifestou certo interesse em sua filha, me pareceu ser um interesse sincero.
    — E quem é esse Nikolaiev, qual é a patente dele? — Interrogou friamente Romanenko, a senhora Romanenko não parecia também ter ficado feliz, queria que Kolichev ficasse com sua filha.
    — É coronel da cavalaria, ascendeu bem rápido por sinal, tem trinta e dois anos, mais ou menos minha idade, tem  suíças espessas, porte de cavalariano, e um sorriso bem cuidado, ele nobre, sobretudo, nobre de sangue, pelo que me pareceu, disse vir de Moscou para tomar cargo aqui e acabou ficando, é uma boa pessoa.
    — Coronel? Bem, de tudo, isso não é ruim, qual é o interesse dele? Ele deseja mesmo se casar com minha filha?
    — Transpareceu que sim, meu caro governador.
    — Pois muito bem, eu gostaria de conhecê-lo se possível.
    — Coincidentemente, ele me deu o seu endereço em Novaya Ulan, deixe-me ver... — Kolichev tateou os bolsos de sua casaca a fim de encontrar um papel, tentou um, dois, três, e em meio à afobação, acabou encontrando o papel no bolso do colete — Aqui, aqui está.
    — Pois bem, sinto-me agradecido por tal conselho, meu caro. Não esquecerei — Disse com tom de desapontamento.
    — Eu espero que Olga encontre o melhor noivo para com ela se casar, ela é uma moça muito respeitável e uma jovem maravilhosa — Mentiu.
    — Que assim o seja,  como posso-lhe pagar por tal favor, meu amigo?

    Kolichev engoliu seco naquele momento, estava tomando coragem para falar o que vinha a seguir:

    — Sabe, senhor, há algo que eu gostaria de pedir, se o senhor não se importa, e que ficaria eternamente grato.
    — Pois diga então, meu caro, não tenha vergonha em dizê-lo.
    — Eu gostaria que Natasha fosse comigo para Novaya Ulan.

         O governador sentiu-se um pouco desconcertado com o pedido e um tanto curioso pela razão com a qual o jovem chefe de polícia objetivara a sua resposta:
    — Natasha? Para quê a quer como empregada? Metade do serviço ela não faz direito e a outra metade ela sequer faz. Ela é preguiçosa e não sabe o seu lugar.
    — Senhor Romanenko, eu não a quero como minha empregada.
    — Pois em tão...
    — Eu a quero como a minha esposa.

         Aquilo foi respondido como uma bomba pelo próprio governador, que nervoso, desabotoou um pouco seu pijama, a sua esposa, ficaria parada ali, em pé, assustada com a notícia; Quando o governador  tomou de volta a sua voz, disse:
    — Meu caro senhor Kolichev, creio que não compreenda a situação: Natasha é uma serviçal, uma serviçal  que até como serviçal falha em seu serviço, imagina como esposa! Ela não tem bons costumes, não é refinada e tem as mãos calejadas de sabão.
    — Eu bem sei disso, mas tampouco me importo, eu a amo e isso é o que importa.
    — Meu caro, o senhor pensa com o coração e não com a cabeça, isso é perigoso, o senhor não se apercebe o quão perigoso é se guiar pelo coração.
    — Sem o coração para bombear as emoções, o cérebro falharia e o homem morreria, sem o coração os músculos atrofiariam e o homem seria refém de seu próprio corpo... Sem o coração, nada mais restaria senão uma máquina insensível e incapaz. Eu a amo, meu caro governador, e é isso que importa.
    — E o que as pessoas pensarão sobre isso? O senhor é um nobre, um nobre com direito hereditário, o senhor está se arriscando meu caro, a ser mal falado na alta sociedade em Petrogrado!
    — Eu não ligo para a sociedade em Petrogrado, eles que tirem suas próprias conclusões, isso não muda o fato de que a amo e isso não mudará!
    — Pois que seja, vejo que o amigo está verdadeiramente convicto, pois que seja. Natasha, venha aqui!

         Natasha Kalikova surgiu com roupas civis, seu mais aquele uniforme preto que de tão feio escondia sua beleza, o próprio senhor Romanenko ficou um pouco enciumado com sua beleza, ela já era uma mulher! Uma bela mulher!

    — Bem vejo que já fez suas malas... Vou perguntar uma e só uma vez: Você quer ir com o senhor Kolichev para Novaya Ulan para ser sua esposa, sim ou não?
    — Nada me traria mais prazer, senhor governador.
    — Pois que assim seja, minha filha, pode ir, tens a minha benção para partir.
    — Obrigado, senhor Romanenko, nunca esquecerei o que o senhor e a madame fizeram por mim.
    — Esperamos que sim, sua ingrata — Declarou colérica Matriuska Feodorovna.
    — Matriuska!
    — Fiodor! Essa menina que a tanto recebemos com carinho e atenção quando era só um pedaço de osso, agora quando adulta, deseja trocar toda a nossa família pelo primeiro chefe de polícia que vê pela frente! Ela tirou o noivo de Olga, ela tirou o pretendente de nossa filha!
    — Ela não tirou nada — Declarou Kolichev —Olga não me amava, assim como eu não a amava, ela deseja outro, esse mesmo cavalariano que eu falei.
    — Ora poupe-me!
    — Poupe-me a senhora! A sua filha deseja viver em felicidade com o homem que a ama e você a empurra para outro homem!
    — Ah! Por favor! — Matriuska puxou Olga e sua outra filha pelo braço para cima, e tentou levá-las ao quarto, mas eis que Olga se rebela.
    —Ele tem razão! Ele tem razão! Eu não o amo, eu amo o coronel Nikolaiev que me corteja há muito tempo. Sim ele me corteja, embora vocês não acreditem, mas ele me corteja. Deixem-me ser feliz! — Começou a chorar Olga.
    — Pois assim será minha filha, assim será — Declarou o governador e depois acenou para Kolichev e Natasha — Vão podem ir, minhas crianças, podem ir, isso não é para vocês.
    — Obrigado, senhor Romanenko, obrigado por tudo — Declarou Natasha e em seguida ela e Kolichev partiram para Novaya Ulan.
...


        E lembra com amargura aqueles tempos,  o velho Serpinsky, hoje não estava mais em Novaya Ulan, nem mesmo estava na Sibéria... O Império ruíra e ele e Natasha nada mais tinham que fazer na Rússia.

      Sim, Natasha e ele tiveram momentos felizes, muito felizes, venderam a sua fortuna quando passaram  na Manchúria, fugindo da Revolução, e Serpinsky lembrava com a dificuldade com que a barca inglesa os levou de Hong Kong  até os Estados Unidos...

       Era uma nova cultura, uma nova vida, uma vida separada da vida russa, agora não eram mais russos, eram americanos, tinham constituído uma família americana no Oregon, uma família grande e feliz... Mas agora, depois de velho, nada mais fazia a não ser chorar a morte de Natasha... Como ele queria ter voltado com ela para a Sibéria e viver ao longo do Baikal, não mais, não mais.

        Serpinsky estava velho, cego de um olho, em frente à lapide de sua querida esposa, a qual dizia:
      “RIP 
       Natasha Kolicheva,
        Nascida em 18 de março de 1895, morta em 12 de maio de  1957”
   
    — Minha querida, minha doce querida, que felicidade eram aqueles tempos, quão felizes eram aqueles momentos.

          Serpinsky, agora com oitenta e três anos recém completos, olhava com amargura a lápide da querida esposa enquanto chorava com a morte recente de sua esposa... Não fazia nem um ano que ela morrera, mas Serpinsky, ortodoxamente ia toda a semana para visitar sua esposa.

         Estava velho  e sem esperanças, sozinho, tendo em vista que os seus filhos sequer faziam o favor de visitá-lo.
    — Era para eu ter ido primeiro, minha Natasha, era para eu ter ido primeiro... Maldito câncer, maldito câncer!

         Uma lágrima caiu do rosto enrugado de Kolichev, ele não era o mesmo homem de quarenta anos atrás, não era mais forte, nem era mais bonito, era um velho, de barba branca e calvície parcial na testa, cego de um olho e quase surdo de um ouvido, Kolichev era agora apenas um velho, um velho que ganhou a vida como trapaceiro, uma trapaça tão grande o fez tornar-se nobre, fraudando os documentos necessários, mas o maior presente que pudera conseguir em toda a sua vida foi ter virado chefe de polícia em Novaya Ulan, ter se hospedado na casa do governador Romanenko e conhecido Natasha Kalikova.

          E pensar que ele esbravejara quando os seus superiores o mandaram para aquele fim de Mundo! Nada lhe dera maior prazer do que ter passado as tarde com a sua esposa ao longo do Baikal, o maior lago da Rússia, de águas lindas e cristalinas, que ao raiar alaranjado do sol trazia uma mistura cromática de encher os olhos!

        “Oh! Rússia, minha grande Rússia, que felicidades você me trouxe”, pensou o velho Serpinsky enquanto olhava a lápide de sua esposa.

         Numa dada hora, Serpinsky sentiu o seu peito eclodir, bater mais fraco; a hora chegara.
    — Minha querida, agora viveremos juntos eternamente, me espere, me espere no outro lado.

        Kolichev caiu, caiu naquela noite de natal, enquanto a neve, a doce neve que vinha do alto, pintava o chão com sua textura esbranquiçada... Sibéria, doce Sibéria.


         Essa não é uma história de alguém importante, de alguém heróico, ou mesmo valente, na verdade ele não fora nenhum dos três, essa é uma história de um homem, um trapaceiro, que se tornou nobre e quando foi mandado para os confins do Mundo encontrou seu grande amor... Essa é a História de Nikolai Serpinsky.

2 comentários:

  1. Gostei muito do conto, muito bem escrito e organizado; A História em si é interessante, um trapaceiro que se tornou nobre e caí na Sibéria, contudo, eu acho que você poderia ter enfatizado a vida de exilado de Kolichev (Serpinsky) nos Estados Unidos.

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    1. Fico grato por seu comentário e pela sugestão... Esse texto como disse ao final, não é sobre um grande homem, corajoso, ou heróico, mas de um trapaceiro que encontrou o seu amor na Sibéria.

      Sim, o texto não enfatiza a vida de exilado de Kolichev exatamente por não considerar que se enquadre muito na História, essa é uma história da Rússia sobre a Rússia, não sobre a Vida de Exilado nos Estados Unidos.

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