quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O eclipse senil (texto do blogueiro)


 
“Se o homem procura a solução para a morte, essa questão sempre estará na literatura”

             Com essa citação o orador  proclama seu discurso e inicia uma fábula:
            —  Outrora havia em minha querida cidade um velhinho que vivia numa choupana...
...

O rufar o cantarolar dos passarinhos trazia aquele canto esquecido no meio da floresta, em meio aos garbosos abetos, os colossais ciprestes e os magníficos pinheiros de dez metros;  Os congélidos ventos vindos dos Urais faziam tremelicar a copa daquelas árvores onde assentavam-se os esquilos  em sua tenaz procura por nozes...
Era o início o outono, as árvores já soltavam suas folhas, um largo tapete alaranjado surgia no gramado amarelado em decorrência da queda das folhas, algo predizia que aquele seria um inverno bastante rigoroso,  assim como o são os invernos no interior da Rússia.
Um senhor caminhava com certa dificuldade, mancando na perna esquerda, e carregando consigo um punhado de lenha; Aquele era Dimitri Yussopov, talvez o homem mais velho daquelas redondezas.
Ninguém sabia quando ele nascera, na verdade, quase ninguém sabia sobre sua vida, apenas o que sabiam era que ele era um dos homens mais pobres aquela região.
Alguns inventavam anedotas, histórias, quase nenhuma com fundamento... Diziam que ele fora padre na Sibéria, mas se desentendera tanto com a cristandade que decidiu tornar-se um emerita que vaga pela floresta apenas para apreciar a formosura de Gaia[1].
Outros diziam que ele era bruxo e que se alimentava do sangue dos veados que caçava, por isso se assentou na floresta, para fazer bruxarias...
Como eu disse, nenhuma das histórias tinha fundamento, Yussopov sequer fora ao sacerdócio e tampouco estivera na Sibéria, mas também ele não era um bruxo demoníaco que se alimentava do sangue de animais inocentes.
Yussopov era apenas um daqueles singelos lenhadores que nós encontramos nos mais distantes cantos da Rússia, alimentando-se precariamente, com um vidro de vodka,  com ensopado de repolho e um pouco de carne, vivendo em condições paupérrimas em cabanas apertadas e incômodas.
Ele já fora alto, mas hoje se limitava a ficar encurvado, tinha suíças espessas, embora grisalhas, olhos cansados, nariz torto, à la Itália, era pálido e sempre usava uma ushanka[2] já surrada, um capote mostarda igualmente surrado e galochas de feltro marrom.
Sempre nos ombros trazia muitos feixes de madeira, para quer fosse vender como lenha na cidade, quer para se aquecer, quer para fazer mobília (era carpinteiro nas horas vagas).
— “Eu sou mais miserável que a própria miséria; sou mais honrado que a própria honra; que bela combinação! Pobre e honrado! Afinal, porque tolerei tamanha desgraça? Tolerei e tolero, mas até quando tolerarei?”
A fama de Yussopov de velho rabugento  vinha de sua enorme capacidade de reclamar a própria vida, mas quanto a isso tinha razão: Ele perdera os pais quando ainda era criança numa daquelas perseguições que o NKVD fizera aos infelizes que eram vistos como Inimigos do Povo na Era Stálin (para vocês verem o quanto ele era velho!), perdera seu irmão no que um dia fora chamado de Grande Guerra Patriótica[3], e logo depois perdera a única mulher que o amara enquanto ela tentava dar-lhe a luz de uma criança, mas os três morreram, ela e a criança, e alma de Yussopov.
Agora depois de velho não se limitava em só reclamar.
Com as intensas reclamações de uma vida árdua e sofrida, o velho desatinado em espessas lágrimas observante ficou ao ver o grande feixe de madeira que trazia nos ombros.
— “De que modo suportarei o grande peso dessa miserável vida? Eu, que já passei dos oitenta, como ainda terei forças para tanto?”
Desejou erguer o feixe, mas desastradamente o ramo lígneo precipitou-se ao chão.
Isso foi a gota d’água. O velho começou a chora toda a acidez com que a vida lhe proporcionara e fortemente comovido, o velho clama a Morte:
— “Venha, ó infeliz, retira-me dessa vida de dor e amargura, pois já não creio mais ter forças para suportá-la.”
Um ceifeiro, de casaca escura e capuz, com semblante cadavérico, emerge das cinzas com um ar extremamente apavorante  e por trás o infeliz indaga:
— “Eis que estou aqui, Dimitri. O que quer que faça por você?”
O velho, assombrado com aquela voz assustadora, voltou-se e quando percebeu de quem se tratava, empalideceu ainda mais o seu semblante, como se isso fosse possível...
— Quem é você?
— Eu sou a Morte, a destruidora de Mundos[4].
O velho empalideceu, sua respiração ficou cada vez mais dificulta, e em certo momento viu passar por seus olhos toda a vida que tivera, e repentinamente sentiu uma intensa dor no seu peito, mas já sabia que não era mais amargura, e ali, desabou defronte ao supro ceifeiro; Morreu de susto.
— “Ora, eu nem cheguei e já vou ter que trabalhar!” — Reclamou a morte.
...
Com isso o orador encerrou o discurso para aquela palestra de alunos entusiasmados pela formatura naquela feliz noite  que marcava o final de sua graduação universitária.
— Sim, a vida é difícil, mas não a odeie como o velho a odiou. A vida é miserável, eu sou miserável... mas estamos vivos! Viver é difícil, mas é bom!”
Surge uma nuvem de intensos aplausos dos espectadores, que logo, não se demoraram a levantar-se e trazerem suspiros ao humilde orador, o tão amado professor do Grupo de Estudos Eslavos, que se prostrara diante a eles em sua opulência como graduados; Era sem dúvida o momento mais feliz da vida do professor Aleksandr Borodin.
Спасибо! — Disse em russo e com lágrimas nos olhos retirou-se defronte ao palanque montado, afrouxou a gravata borboleta de sua casaca, e foi receber os elogios dos seus colegas do Departamento de História da Universidade, e logo depois foi ter com os seus queridos alunos uma das mais belas despedidas que podem ser imaginadas.
Após as festividades, saiu cortesmente daquela cerimônia e saiu em direção ao Hospital, sua esposa, Sarina, estava a ter o seu filho.
 — Ah! A vida é bela — Suspirou.



[1] Gaia é a divindade grega que representa a Terra, como Terra onde os homens vivem, e por extensão Mãe-Natureza.
[2] Uma espécie de vestimenta semelhante a uma touca de pêlo de animal, antigamente era feita de pelo de urso, de lebre,  mas com o passar o tempo começou a ser feita de feltro, é uma vestimenta tradicional na Rússia por reter o calor na parte da cabeça (ela suporta até temperaturas glaciais de quarenta graus centigrados negativos.
[3] Termo soviético para designar Segunda Guerra Mundial.
[4] O cientista Oppenheimer, responsável pelo projeto Manhattan, que resultou no desenvolvimento da bomba atômica utilizou a mesma frase, baseando nas antigas inscrições hindus, quando percebeu o potencial com que a sua nova arma poderia destruir.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Haber e o uso da ciência para o "bem" e para o "mal"

A figura mais controversa pra mim na história da Ciência não é Oppenheimer (pai da bomba nuclear), nem Alfred Nobel (criador da di...