domingo, 16 de outubro de 2011

16 de outubro, Varsóvia

            Aquela rua dantes tão movimentada, hoje vazia se encontrava; Quem diria? A principal boulevard de Varsóvia estava vazia...
            Varsóvia, quem diria que um dia fostes uma das mais ricas e prosperas cidades de toda a Europa. Com seus edifícios garbosos, a rua de fina escultura ornada, de largos paços por onde passavam os descansantes a apreciar a estonteante beleza que se escondia no Coração da Polônia, sim, Warsawa...
            Saibam que Varsóvia já fora em tempos passados uma simples rota de entroncamento comercial, mas hoje, era a capital da Polônia.
             Polônia? Perdoem-me, nessa época a Polônia não mais existia; Isso porque as hordas de teutônicos tremelicavam o solo com seu passo de ganso, trazendo terror às largas estepes da Europa Oriental.

             A suástica agora tremelicava ao vento defronte ao Palácio de Governo, a Alemanha havia invadido a Polônia um ano antes...

             Por coincidência, entrou em guerra com a França e a Inglaterra... Mas quem disse que alguém sequer pensou em ajudar a Polônia?
            Mas um dia a Polônia ia ressurgir, forte e tenaz, e os “não entendidos”[1] iriam entender o quão é vergonhoso por uma nação aos seus pés. Uma nação tão grande que podia-se chamar de Polônia.
           
            Mas esse dia não chegara... Ao invés disso, a perfídia se solidificou nos arredores da grã capital do coração polaco...
            “Varsóvia, 16 de outubro de 1940
A Voz da Esperança
          Durante toda essa semana o Oberkomando der Wermarcht[2] em associação aos regimentos da Gestapo e da SS iniciou em larga medida uma perseguição aos judeus moradores de Varsóvia, essa medida segundo os alemães é para minimizar os “efeitos nefastos” com que os “porcos judeus contaminam o espírito de construção de uma raça pura”.
Em verdade, todos nós sabemos o que eles estão fazendo, estão separando de nós, nossos amigos, nossos irmãos, unicamente porque eles não têm outro fim se não destruir com os filhos de Israel.
Há muito tempo ouvíamos comentários, fofocas em todo caso, da criação de uma seção nos arredores da cidade para o isolamento dos judeus; Pois muito bem, hoje isso se concretizou, os judeus de Varsóvia estão sendo obrigados a se deslocarem para o gueto, e lá se assentarem nos locais mais sórdidos que vocês podem imaginar...
Além disso, além de os nazistas providenciarem a construção de um muro para isolar o gueto do resto da cidade, eles inescrupulosamente estão roubando as propriedades dos retirados, e aproveitando-se disso, estão saqueando em seu bel-prazer, assim como saqueiam todos os dias a nossa querida pátria com suas pegajosas e grudentas garras assassinas.
[....]
Polacos, levantemo-nos diante a essa injustiça! Levantemo-nos contra esse morticínio! Fostes os mais bravos dentre os povos, sedes agora o que fostes no passado.
Lembrem-se do rei Miesko, o entendido, que derrotou as nefastas hordas germânicas. Sigam seu exemplo.
Lembrem-se da princesa Wanda, lembrem-se daquela que sacrificou sua vida para deixar viva a memória da Polônia! Sacrifiquemo-nos se for preciso! Pela grã família, que és tu, ó grande Polônia”
— O que está lendo, Jakob? Hã?
— Temos que sair daqui... Os alemães estão pilhando as casas e estão mandando todos os judeus para o gueto.
— Mais essa agora...
— Vamos, Moshe, nós temos que sair daqui, eu vou levar minha família para passar o tempo na fronteira, e quando pudermos nós  cruzamos a fronteira e seguimos para a União Soviética.
— União Soviética!? Você está brincando, lá está tão ruim quanto aqui, se eles descobrirem que você era rabino, eles te mandam para a Sibéria.
— Tão longe melhor, conquanto eu esteja vivo com minha família!
— Não seja tolo! Você acha mesmo que os alemães vão nos matar considerando o quanto trabalhamos para eles? Eles não seriam tão burros...
— Eu não sei, mas não vou ficar aqui para arriscar... Se você quiser vir conosco com sua família, Moshe, ainda dá tempo.
— Não, eu não fujo do meu destino... Pode ir.
— Moshe...
— Vá, mas vá para bem longe, para que não te peguem.
— Adeus, Moshe. Vou sentir saudades, meu velho amigo.
Os dois amigos se abraçaram fraternalmente e ao escutar as patrulhas alemãs Gestapo se aproximarem, Moshe saiu correndo para seu apartamento para partir com sua família dos olhos da Gestapo.
Era difícil subir quatro andares em intensa euforia, mas mesmo assim, Jakob conseguiu fazê-lo em profunda mostra de desespero...
— Ruth, nós temos que ir, temos que ir agora.
— Mas, Jakob...
— Esqueça, não vamos levar malas... Vamos!
Ruth era uma belíssima senhora de trinta anos recém completos; tinha cabelos encaracolados castanhos, olhos verdes, lábios sensuais, nariz um pouco meso-oriental, ela era linda, mas estava tão desesperada que tampouco tivera tempo de se arrumar, assim, só estava com uma camisa de camponesa, uma saia surrada e um avental, nem calçada estava.
— Certo. David, Alina, vamos.
Alina era ainda um bebê, iria fazer três anos em novembro, tinha cabelos castanhos igualmente encaracolados como os a mãe, olhos oblíquos e era muito altiva. David já era rapaz, tinha dez anos, já estava estudando para o seu Bah Miztvá e era de certa maneira muito parecido com seu pai.
— Vamos.
Alina foi nos braços da mãe, enquanto Jakob apressava o passo de seu filho ao puxá-lo pelo braço. Mas um assombro surgiu quando um grave ruído que surgiu do rangir da porta do edifício foi acompanhado de agudos gritos que vieram a seguir.
— A Gestapo!
Jakob foi à janela e observou com atenção que uma viatura da Gestapo estava estacionada defronte ao edifício e logo atrás estava o caminhão que os levaria para o gueto, isso era demais para Jakob...
— Para a escada de incêndio.
— Mas Jakob...
— Esqueça, nós temos que ir, eu seguro Alina.
— Certo.
Como fugitivos, em verdade, eles eram mesmo, os membros daquela família cautelosamente desceram o edifício pelas escadas de incêndio, fervilhados de intensa adrenalina, corriam em meio ao desespero enquanto desciam as escadas metálicas que ficavam na parte posterior daquele prédio ladrilhado, no centro de Varsóvia.
Fugindo da opressão, da morte certa, os quatro mal sabiam o que fariam depois de sair daquele prédio, mas sabiam que deviam sair; em ritmo acelerado, os quatro se dirigiram ao beco que ficava por atrás daquele edifício ladrilhado, que um dia seria por ventura uma construção, e por trás de um monte de caixas de papelão se esconderam...
Ratatatá... Ouvem-se a monótona sinfonia fúnebre da MP-40 perfurar os ares próximos aquele prédio, os nazistas estavam fuzilando todos os homens daquele prédio e num sinal de assombro, Jakob desatinou-se a chorar.
— Vamos, Jakob... Vamos.
Era difícil para Jakob, mas eles não podiam se conter por meros sentimentos, eles tinham que sobreviver, esse é o supro mandamento de um judeu, não morrer.
Raivosos latidos acompanhavam pesados passos pelo úmido piso asfaltado do beco, pouco sabiam eles, que tão perto estaria a SS.
— Façam silêncio! — Cochichou.
Os cachorros começaram a brandir seu intenso latido, despertando ao patrulheiro da SS certa desconfiança quanto aos caixotes e tão logo aproximou-se deles...
Heydrich, hierher zu kommen. Schauen Sie, was ich gefunden habe.[3]
— Ja.
O SS afastou-se com seu cachorro dos arbustos e à porta dos fundos aproximou-se...
— Vamos, não podemos ficar aqui.
Aproveitando-se da distração dos soldados, a família cautelosamente observou o guarda adentrar no prédio com o cachorro e  Jakob seguiu para a tampa do bueiro do beco.
Sehen Sie, was diese Juden planten ... Fleischwurst, zu sehen. Juden sind nicht mehr![4]
Es muss es gewesen sein.[5]
Jakob empurrou com toda a sua força a tampa do bueiro para o lado e quando a abertura no piso surgiu, ordenou que Ruth e Alina fossem primeiro, depois David...
— Vamos, rápido!
David demorou-se um pouco e com imensa pressa, Jakob desceu a escada de acesso sem perceber que os alemães se aproximavam do beco.
— Ich dachte, vielleicht ein paar Juden geflohen waren.[6]
Cautelosamente, Jakob fechou a tampa do bueiro no exato momento em que os alemães tornavam ao beco.
— Vamos, temos que sair daqui.
Pelo esgoto, os quatro fugiram em direção a outra parte da cidade, e pela manhã, Jakob encontrou um amigo seu que se ofereceu para levá-los para perto da fronteira.
— Como vai, Jakob? Como vem passado?
— Não muito bem, Sigmund, não muito bem, Moshe foi fuzilado pela SS.
— Que coisa horrível! Eu lamento, Jakob.
— Foi muito difícil sairmos de casa, mas conseguimos, eu e minha família.
— Pois muito bem, graças a Deus que vocês estão vivos. Tome, seus passaportes para passar na fronteira.
— Nossos o quê?
— Vocês agora são cidadãos da União Soviética... A fronteira está muito vigiada, você vai se passar por um médico que esteve em Varsóvia para uma conferência de Medicina e que agora está voltando para a União Soviética.
— Mas como que chegaremos à fronteira?
— Eu os levarei até lá.
— Como?
— Você vai odiar, mas é preciso... Vocês vão dentro de sacos de pano, junto com sacos de esterco, e nós vamos chegar perto da fronteira assim.
— Sacos de esterco!?
— É isso ou ficar aqui.
— Não temos escolha, mas se vamos passar por um médico e sua família, não teríamos que ter roupas mais apresentáveis?
— Já providenciei isso. Essa debaixo do banco do carro.
— Ótimo! Quando partirmos?
— Agora de manhã.
— Podemos comer alguma coisa? Desde ontem à tarde não comemos nada.
— Tudo bem, sirvam-se, temos pão, queijo e geléia.
— Obrigado, Sigmund, você é um bom amigo.
Sigmund era membro da resistência clandestina, ele era membro do Partido Comunista Polonês, embora não concordasse com a neutralidade da União Soviética para com a Alemanha, não reclamava, pois isso ajudava para com que muitos perseguidos se exilassem na União Soviética.
O pequeno caminhão barulhento percorria as ruas ladrilhadas de Varsóvia trazendo um rastro de fedor que podia ser notado à larga distância, contudo o pequeno caminhão foi contido na saída da cidade pela SS.
— O que foi, senhor guarda?
— Seus papéis.
— Aqui estão.
Sigmund entregou-lhe os documentos para o fiscal da barreira.
— O que você “trazer” na carro?
— Esterco, para adubar as fazendas do Leste, trabalho para o senhor Schielmann da Schielmann Produtos Agrícolas Co. Conhece?
— Ja, eu sei quem é o senhor Schielmann.
— O senhor quer fazer a vistoria?
— Nien, não é preciso, seu papéis estão em ordem e eu não quero sujar meu uniforme, pode passar.
O caminhão passou pela cancela, trazendo um nariz torto aos soldados da SS, o fedor daquele esterco trazia náuseas aos passantes, mas Jakob e sua família conseguiram fugir de Varsóvia.
...
— Vocês entenderam tudo, não foi mesmo? Você não são mais Jakob e Ruth Rosenberg, vocês são agora Dimitri Fiodorvich e Anna Nikolaievna Petrenko, vocês nasceram em Kursk. Dimitri, qual é a data do seu aniversário.
— 1° de maio de 1905.
— Isso, dia do trabalhador do ano do “ensaio revolucionário”, isso não parece ser relevante, mas isso é importante para a sua identidade como marxistas. E você, Anna?
— 22 de outubro de 1910.
— Muito bem, esse foi o dia que aconteceu a Revolução de Outubro. Qual são os nomes de seus filhos?
— Alexei Dimitriich e Sarina Dimitrievna.
— O dia em que eles nasceram são os mesmos.
— Certo.
— Pode ser que na fronteira os fiscais queiram debater teoria marxista, sempre leve em conta que tudo é culpa da burguesia, que não há lugar melhor que a União Soviética, e que a voz de Stálin é tudo.
— Certo.
— Agora vão, meus amigos, boa sorte.
— Obrigado, eu não sei como agradecê-lo.
— Só sobrevivam.
Dimitri Fiodorvich abraçou seu amigo, e com lágrimas nos olhos partiu em direção à fronteira cabisbaixo com sua família. Ele contivera muito bem a alegria de estar ali, saindo daquele inferno que estava Varsóvia e indo para um lugar que não fosse hostil a ele por ser judeu.
Здравствуйте, товарищ. Меня зовут Дмитрий Петренко.[7]
Ваши документы.[8]
Вот они.[9]
— Me diga a natureza de sua visita à Varsóvia, camarada Petrenko.
— Eu estava numa conferência de medicina em Varsóvia, mas acabei me perdendo do meu grupo, tanto que nada levamos além da roupa do corpo, nem carro nós trouxemos.
— Deviam ter mais atenção! Camarada, o que você achou de Varsóvia?
— Um lugar infernal! Não sei como eles conseguem viver ali, são batidas toda hora,  anteontem mesmo eu vi fuzilarem em praça pública dois simplórios unicamente por não terem feito a Sieg Heil. Nada melhor que voltar a nossa pátria livre. A nossa querida União Soviética.
 — O que você acha do pacto de Não-Agressão que assinamos?
— Eu fiquei um tanto espantado, devo confessar, mas eu sei que o camarada Stálin fez isso para manter a paz por mais tempo, ele sempre sabe o que faz.
Após esse discurso totalmente imbuído de teor stalinista, o guarda liberou a cancela e deixou que os quatro passassem, mas falou:
— Deixem-me que os leve à cidade para que possam pegar o trem para Moscou.
— Não, nós não queremos incomodar, vamos a pé.
— Pois muito bem, que assim seja. Boa viagem, camaradas.
— Bom trabalho, camarada.
— Obrigado.

...

— ... E foi isso que aconteceu, meu caro Moshe, nós conseguimos sobreviver à guerra. Eu até que vivo bem em Moscou, eu não sou mais médico, é claro, sou contista, uma coisa à la Tchekhov, sabe? Que infelicidade você ter morrido aqui, meu amigo.
Petrenko desatinou-se a chorar, ao observar a inscrição do portão de Auchwitz dizendo: “O trabalho liberta”.
— Meu amigo, que infelicidade! Meu amigo...


E assim é marcado o dia 16 de outubro na História da Polônia, como o dia em que o gueto de Varsóvia foi delimitado... Seria um dia mais fúnebre ainda, se por um acaso do destino, também não fosse o dia em que Karol Wojtila (João Paulo II) foi empossado papa no dia 16 de outubro de 1978.


[1] Tradução literal do verbete polonês “niemiesku” que designa alemão. Assim, o verbete que designa “alemão” em polonês tem a seguinte construção através da incompreensão lingüística que os dois povos vivenciaram nos seus primórdios.
[2] Alto Comando do Wermarcht, do Exército Alemão.
[3] Heydrich, venha até aqui. Veja o que encontrei.
[4] Veja o que esses judeus estavam tramando... Linguiça de porco, veja. Nem mais judeus são!
[5] Deve ter sido isso.
[6] Eu achei que tinha fugido algum judeu porventura.
[7] Olá, camarada. Meu nome é Dimitri Petrenko.
[8] Seus documentos.

[9] Aqui estão.

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