sábado, 17 de março de 2012

O que não é Idade Média (crítica a um amigo)




       Certa vez um amigo meu, um erudito com feições religiosas declarou:
"A Idade Média é um período de superação dos valores clássicos. A sociedade antropocêntrica, politeísta e com bases urbanas é subistituída (erro dele) por um mundo teocêntrico, monoteísta e com estrutura fortemente agrária. As imagens abaixos são documentos históricos que comprovam essa realidade. O feudalismo é o sistema em que encaixa-se com essas novas propriedades e que foi fomentado (outro erro dele) pelos ataques bárbaros, que forçaram o abandono das cidades e o êxodo ao campo e assim sua devida proteção (Castelo-nobres), seu devido sustento material (servos) e sua identidade na fé (Igreja)."

             


       Isso é uma discussão téorica, mas pode ser relevante para superar o senso comum de  algumas pessoas que se interessem ou não por História.


      Primeiramente, a expressão: "A Idade Média é um período de superação dos valores clássicos" é problemática, afinal de contas não é isso que observamos se enxergamos com atenção o período, a Idade Média representa em si uma transformação da sociedade romana (carregada de helenismo) em uma sociedade mista com elementos ditos "bárbaros" germânicos (isso na Europa Ocidental, obviamente), na qual alguns conceitos clássicos perduraram, tanto na Filosofia como as ideias de Platão que passaram invitavelmente para Santo Agostinho, como por valores, no qual a sociedade feudal ficou embasada na Família, tal como na sociedade romana.


       Sim, a família, a linhagem é um  elemento importante que configura o medievo, mas ela remonta desde o período Imperial, na qual o conjunto de valores (que recebeu algumas modificações, mas perduraram muitos valores e conceitos clássicos) realizava a liga social nessa sociedade. O que assistiu na Idade Média não foi uma mudança radical da sociedade e de seus valores, mas um adequamento para serem associados aos preceitos religiosos vigorantes na época. A Idade Média representou em larga medida, embora com exceções, uma continuação da sociedade romana, tomando para si também elementos "bárbaros".

"A sociedade antropocêntrica, politeísta e com bases urbanas é subistituída (erro dele) por um mundo teocêntrico, monoteísta e com estrutura fortemente agrária" 


        Primeiramente, eu não vejo problema em ver a sociedade dita clássica como politeísta, mas tenho problema em ver a Medieval exclusivamente como monoteísta, pois querendo ou não, houveram em todos os cantos da Europa, principalmente na Europa Central, Oriental e mesmo na Escandinávia, cultos a vários deuses conciliando com uma religião monoteísta como o cristianismo (na Rússia isso era palpável do século VIII ao X, onde elementos ditos "pagãos" conviviam com elementos cristãos). 


        Quanto a visão filosófica teocêntrica no período do Medievo, eu não vejo grandes problemas, nem mesmo quanto a visão antropocêntrica na sociedade dita clássica, vejo problema nesse conceito, pois ele não engloba por exemplo Constantinopla, que diferentemente de outras feições religiosas, tinha ainda em efervecencia ideias helênicas, como a valorização também do homem, no mesmo período.


         Vejo ainda problema em se acreditar que a sociedade por exemplo romana, era basicamente urbana, não é esse o caso, Roma também era uma sociedade agrária que dependia em larga medida da produção agrícola do trigo africano, do azeite e do vinho. As ideias quanto a produção agrária, servidão, coisas afins, surgiram na parte final do Império, não foi basicamente uma mudança tão significativa assim, até mesmo porque se observarmos atentamente, por volta do século III assiste-se já um movimento migratório dos cidadãos para fora das cidades. 


       Houve sim uma mudança, acabou-se com o poder das pólis e agora assiste-se uma sociedade baseada nas terras, mas isso não é exclusivo da Idade Média.
      

 
       "O feudalismo é o sistema em que encaixa-se com essas novas propriedades e que foi formentado pelos ataques bárbaros, que forçaram o abandono das cidades e o êxodo ao campo e assim sua devida proteção (Castelo-nobres), seu devido sustento material (servos) e sua identidade na fé (Igreja).", não há grandes problemas quanto a essa frase, a não ser o fato de que isso não seja exclusivamente por causa dos ataques bárbaros... Houve também uma pressão por parte dos escravos, e mais ainda pela religião e pelos povos germânicos no Império para que a escravidão fosse deixada de lado, além do fato de que escravos estavam ficando cada vez mais escassos e caros, generalizar que o feudalismo foi formentado exclusivamente pelos ataques bárbaros é muito forte.

        Eu pessoalmente acredito que a Idade Média, antes de mais nada, uma abstração dos historiadores da Escola Francesa em separar a História por Eras, deve ser encarada como o período de adequação da antiga sociedade romana (já em decadência), com elementos bárbaros combinando em seu poder agora não mais só um rei, mas a Religião, representada pela a Igreja (seja católica ou ortodoxa), e pela nobreza e pelo Governo (não podemos usar a palavra rei, porque surgiram Repúblicas Cristãs nessa época, como a de Veneza e a de Novgorod).

        Isso não se aplica à interpretação de meu amigo, mas a outros historiadores e pseudohistoriadores... Onde ocorre a Idade Média?

        Excusado será dizer que deve ser na Europa? Mas e o Oriente Médio? Ele não assistiu a si uma Idade Média, embora tenha sido um pouco menos acentuada?

       Pois então, alguns dirão então que a Idade Média engloba toda a Humanidade. Mas aí estão errados, os indíos brasileiros não passaram por isso, e para contrastar mais ainda, no Oriente, a China vivenciava o auge de sua civilização.

       Agora outra pergunta: Quando começa a Idade Média?

       Costumeiramente pela escola francesa, foi em 476 quando Roma caiu... Mas pera aí, pois então agora, a Rússia, que não tem muito a ver com Roma não teve uma Idade Média? Primeiramente porque não havia in facto povos que tenham estabelecido reinos na Rússia dentre os eslavos nessa época, segundo, porque essa abstração descarta por exemplo que reinos já formados, como por exemplo dos saxões, suevos e afins, formem a Idade Média.

      Segundo, Idade Média significa uma descentralização política? Se for esse o caso, então o nascimento de Rus', estado embrião do que um dia viraria  a Rússia não enquadraria nisso, quão menos o Império Khazar, e Carlos Magno?

      Não, não é isso, mas o inverso também não é verdade, também se assiste na Idade Média a fragilidade de alguns estados ante ao poder dos chefes locais, tal como na França, ou mesmo Inglaterra.

      Idade Média acaba quando se forma as primeiras nações unificadas? Se for o caso, Portugal deixou de ser medieval em 1184 quando se formou como nação com Henrique de Borgonha, e Afonso Henriques.


      Idade Média é o fim das relações comerciais? Mas e a Rota da Seda que nesse período estava em plena atividade, o enriquecimento de Bizâncio e a capacidade comercial das Repúblicas Italianas e da Dalmácia. 


      Idade Média é Cruzadas? Ora, então países como a Escandinávia e da Europa Central não vivenciaram isso, além do mais, é esquecido que na verdade houveram dois locais para as Cruzadas: 
  •       No Oriente Médio, obviamente, na luta contra os Muçulmanos por Jerusalém. 
  •       No Nordeste da Europa, nas estepes da Rússia, quando os Teutônicos desejaram acabar com a fé ortodoxa na Rússia e ainda expandir os seus territórios. 
  •       Ainda teve a Reconquista, embora não seja muito bem vista como Cruzadas.
       Idade Média é o período anterior ao nascimento da burguesia? Mas o comércio e os comerciantes são de antes desse período e permaneceram por toda a sua duração.


       Idade Média é servidão? Se for assim, ela só vai acabar em algumas partes do mundo, como na França, com a Revolução Francesa, e na Rússia só no século XIX!


       Quando acaba a Idade Média?
       Responda: Sob que critério?
  
       Se for pelo tradicional, da escola francesa tradicional, com a Queda de Constantinopla.
       

        Se for pela formação dos Estados Nacionais, então no século XII, com Portugal.
  
       Se for com a mudança do pensamento exclusivamente religioso, então no século XIII com as primeiras propostas do Renascimento Italiano.

       Se for pelo fim da Servidão, então século XIX com a Rússia.

       Se for pelo fim da concorrência dos poderes entre a Igreja, Nobres e o Rei, isso só irá acabar na Modernidade (Quem leu os Três Mosqueteiros sabe do que estou falando).



       Se for o fim do poder da Igreja, da família ante ao Estado, então a Idade Média não acabou.

       Se for pelo fim do isolamento das populações locais, então a Idade Média acabou no século XIII quando os Mongóis começaram a invadir a Europa.

       Viu como é complicado generalizar Idade Média para tudo que é canto! Idade Média até pode ser usada como pârametro para cada local, mas não para o conjunto, e a pessoa deve estar certa de que pârametro define o que é Medieval.

       Vejamos o Caso da Rússia:

        1) Se for por início de centralização política: a Rússia assiste uma centralização política no século VIII que acabou desagregando com rixas internas, que dividiu todos os territórios do que seria a Rússia Ocidental, em pequenos principados, o que facilitou a invasão mongol no século XIII, mas assistiu um processo de unificação com Ivan, o Terrível, no século XVI, que se concretizou de forma mais harmônica com os Romanov, por volta de 1600 e alguma coisa.

        2) Se for separação de nobres, Igreja e Estado, isso nunca sequer ocorreu senão quando a enclodiu as duas Revoluções Russas.

        3) Se for pelo fim da competição de poderes entre o Estado, Igreja e Nobreza, isso tentou ser adquirido por Ivan, o Terrível, que terrrivelmente falhou, mas que começou a ser mostrado de forma mais palpável, quando Pedro, o Grande, começou a negociar com esses setores, na virada do século XVII.

         4) Se foi o fim da servidão, então isso acaba no século XIX com o decreto de Alexandre II que revoga a servidão na Rússia.

         5) Se é o aparecimento da Burguesia, os Strogonov, uma  das famílias boiardas mais influentes da Rússia, ensaiaram o comércio no tempo de Ivan, o Terrível.

         6) Se é uma burguesia verdadeiramente ascendente, isso surge no final do século XIX.



           Viram como é preciso ter parâmetros específicos! Não à toa que os Historiadores russos hoje se debatem tentado lutar tanto contra a escola soviética sobre Idade Média, como também a escola francesa, do tempo czarista, que acredita que na Rússia teve uma Idade Média como no Ocidente.  Alguns até consideram que na Rússia não houve Idade Média, mas outra coisa (como também a Rússia não vivenciou o período da Antiguidade).

          Aplicar os conceitos franceses das Eras (Antiga, Medieval, Moderna, Contemporânea), é complicado por causa disso, porque eles não são aplicáveis a outras partes do Mundo se não a Europa (até na Europa apresenta problemas), e os conceitos que definem o que é Idade Média não são universais nas mesmas épocas nos mais diferentes locais do Mundo.

          Idade Média no final é só um tipo-ideal que usamos há bastante tempo para resumir um período totalmente eurocêntrico da História e da Historiografia , que no final das contas causa mais problemas do que soluções.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Haber e o uso da ciência para o "bem" e para o "mal"

A figura mais controversa pra mim na história da Ciência não é Oppenheimer (pai da bomba nuclear), nem Alfred Nobel (criador da di...