domingo, 18 de março de 2012

O livro de bolso (conto do blogueiro)



         Era tarde, uma daquelas tardes preguiçosas de verão em que as pessoas não têm muito que fazer... O sol iluminava com seu esplendor o alto do céu límpido, sem nuvens, sem fumaça, azul como deve ser.
        Domingo bonito aquele, com crianças brincando de amarelinha nas calçadas, os moleques jogando bola nos campinhos e as menininhas brincando de pega-pega, os velhos se divertiam no xadrez, truco ou algo parecido.

         Até mesmo a natureza parecia uma coisa feliz, pulsante, exalando nos bosques da praça um odor tão límpido, tão digno que até mesmo as flores não estavam acostumadas a produzir,  as macieiras, as mangueiras, todas davam xistosos frutos que os pequeninos sapecas corriam para subir em seus galhos para pegar o que comer.
          Aquilo nem parecia Brasília, com pessoas correndo rigorosamente sob o sol das duas da tarde, sob o frescor do domingo de vinte graus Celsius que era confortável com uma umidade daquelas, havia muito tempo que não se via isso em Brasília.

         Caminhando sozinho, sem ter muito que fazer, um violinista, daqueles que encontramos nas estações de trem tocando seus violinos estridentes por alguns trocados,  tocava uma música feliz naquele dia, uma de Dvorak, seu favorito. Todos ali acompanhavam com os olhos os passos daquele rapaz que andava de camisa branca e calça sarja,  um daqueles tipo comuns que se divertem com um pouco de música no ouvido.
        
          O rapaz, um jovem de vinte e poucos anos, já tinha uma barba proeminente, bem aparada, que ia da ponta de seus cabelos até o queixo, formando uma feição de poeta ou revolucionário; Seu cabelo castanho, desgrenhado já denunciava que fosse poeta, mas os seus olhos, meio tristes, e seu espectro calado já tinham revelado que fosse escritor. Na verdade era os três, músico, poeta e escritor. Um daqueles tipos solitários que se diverte ao trabalhar sozinho.
            Não que ele não gostasse de gente, mas na verdade a gente não gostava dele, afinal era poético demais para todo mundo e estranho demais às mulheres, que não gostavam muito de tipos fechados.

           Continuava a tocar sua sinfonia enquanto via calejar suas mãos, mas sequer se importava, a música era o que importava... Num dado momento, as pessoas se acostumaram àquela figura triste e não lançaram mais olhares a sua música. As crianças continuaram a correr, gritar e a brincar, os velhos retomaram a jogatina, os pais retomaram o seu churrasco de domingo e as mães começaram a fofocar.

        Num dado momento o músico afastou-se de todo mundo, sentou-se num banco e estranhou quando as pessoas o encararam quando ele parou de cantar... Sozinho, solitário, o músico calou seu violino, cansou a sua mão  e baixou sua cabeça, enquanto as crianças corriam ali.

         O músico não era uma pessoa má, feia ou pitoresca, mas era uma pessoa originalmente solitária, triste, melancólica e tentava esconder com indiferença os seus sentimentos... Sabia em prática ler e falar vários idiomas, viajara meio globo com um só centavo, e era uma pessoa respeitada no âmbito acadêmico, mas era triste, bem triste.

           Os passarinhos substituíram a canção estridente do violino e começaram a cantar a sua sinfonia natural enquanto o músico guardava seu violino numa capa.

            — Que dia estafante! — Disse enfadonhamente uma jovem moça que corria com seu cachorrinho Cocker Spaniel e cansadamente assentou-se no banco, ao lado do violinista.
            
             O jovem ficou calado, não tinha o que dizer sobre aquilo, mas queria dizer uma coisa, além que porque  queria conversar com alguém, mas não podia, não conseguia.

            A moça era bonita, uma daquelas raridades que encontramos nas tardes de Domingo, de cabelos longos, muito negros e cacheados, seios não muito fartos;  parecia ser carinhosa, tinha um jeito de moleca, embora fosse formosa,  era um tipo sapeca, sem prosa, sem melodia, ela cantava com a garganta uma sinfonia, uma canção de amor com muito fervor.

         Os olhos verde-esmeralda, do tipo de uma cigana ou de um lince, aparentavam delicadeza naquela jovem moça de pele esbranquiçada que tentava com dificuldade esconder-se do sol com uma sombrinha, aquela sombrinha de ipê-dourado.
           Trazia consigo um pequeno livro de bolso, um daqueles que encontramos nas rodoviárias, ou naqueles cestos giratórios de livraria em ponta de estoque... Era um pequeno livrinho de brochura acinzentado, com “Tchekhov” escrito em letras garrafais.
            O cachorrinho, o Cocker Spaniel era um tipo meio vagabundo, que se entrelaçava nas pernas da dona e latia aos que corriam na pista... Era pequenino para um cachorro de sua raça, tinha uma cabeça meio arredondada, orelhas grandes moles e caídas junto aos olhos, o cachorrinho ofegante, de tanto andar, mostrava sua língua ao relento abanando-a com preguiça, enquanto seus olhos arredondados, cor de amêndoa, olhavam o músico com curiosidade.

          O violinista fitou o cachorrinho com atenção, não só porque tinha medo de cachorros que ia desde a infância, mas parecia se comover com a simpatia daquele pequeno ser... Pois então o jovem tomou coragem e disse à dona:
         — Qual o nome dele? Do seu cachorrinho?
         A dona estranhou a primeira vez que o violinista pôs-se a falar, mas gostou da voz meio melosa, de narrador de radionovela antiga, e sorridente disse:
          — Volódia, o nome dele é Volódia.
          — Um nome russo, Volódia, é um belo nome, é o diminutivo de Vladimir.
          — É mesmo? Eu não sabia, um amigo meu me disse esse nome e eu gostei. Você gosta de cães?
          — Oh, sim, claro, eu tenho um beagle, chama-se Nikita — Mentiu.
          — Que interessante! Muito interessante, senhor...
          — Alexandre, Alexandre Dovstoi, mas pode me chamar de Alexandre.
          — Dovstoi? É estrangeiro?
          — Não, meu avô era russo, de Smolensk, veio pra cá depois da Segunda Guerra, fugido.
            A moça começou a fitá-lo melhor, percebeu mesmo que o rapaz, apesar de ser magro, diferentemente da sua ideia de eslavo, que devia ser uma coisa musculosa, não era feio, era uma figura simpática, que não fosse pelo nariz, totalmente caucasiano, ninguém apontaria que fosse russo em alguma coisa. Ela verdadeiramente gostou dele.
            — Eu pude notar que você gosta de tocar violino, você é músico?
            — Não, eu só sou amador mesmo, sempre quis ser violinista, mas nunca me foi permitido, eu sou escritor, um daqueles que calejam a mão junto ao teclado.
            — Escritor? Que interessante! E escreve o quê?
            — Poemas, contos, romances, até peças agora. Tudo que der eu escrevo, senhorita.
            — Para quê tanto formalismo? Pode me chamar de Lana, Lana Montenegro.
            — Muito prazer, Lana.
          Os dois continuaram a conversar naquela confortável tarde de domingo, um dia visivelmente mais confortável onde os amantes agora se conheciam, os velhos brigavam no truco e as crianças gritavam nas cantigas.
             — Eu notei que você estava lendo um livro, posso ver?
             — É um livro que eu comprei quando estava na rodoviária, um daqueles pocket books não muito caros, só pra passar o dia.
            A moça entregou-lhe às suas mãos o livro... Alexandre fitou a capa com atenção e logo concluiu:
            “A Dama do Cachorrinho, de Tchekhov, se eu fosse desconfiado, eu diria que isso não é uma mera coincidência”, pensou consigo.
               — A Dama do Cachorrinho, de Tchekhov, é um dos meus favoritos.
               — Você já leu?
               — Claro que sim, Tchekhov é um dos meus favoritos, se você gostou desse, você vai gostar de outro conto dele: “Por trás do barraco”.
                 E assim, Alexandre conheceu sua dama do cachorrinho, e os dois, com o pequeno Cocker Spaniel puseram-se a andar naquela tarde de domingo, onde as árvores tremulam, os sol irradia, as crianças brincam e os velhos roubam nos jogos. Era uma linda tarde de domingo.
               Naquele mesmo dia, o violinista comprou seu beagle e tratou de chamá-lo de Nikita, aquele tinha sido um bom domingo, e agora o músico só pensava em Lana.
                Assim termina a tarde, com os dois caminhando lado à lado, na rua, ao céu laranja, com o sol enfraquecendo sua luz, enquanto desciam por uma colina em direção ao parque abraçados como namorados.  Eis uma história de livro de bolso.

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