sábado, 3 de março de 2012

Réquiem (trecho de livro de Anna Akhamatova)


          À laia de prefácio

Nos terríveis anos de iejovismo * passei dezassete meses nas bichas da cadeia de Leninegrado. Uma vez, até alguém  me "reconheceu". Por essa altura, uma mulher de lábios azuláceos que estava atrás de mim, e que de certeza nunca ouvira sequer pronunciar o meu nome, despertou da letargia própria de todas nós e perguntou-me ao ouvido (ali toda a gente sussurrava):
        - Pode contar isto ?
        Respondi:
        - Posso.
Então, ume espécie de sorriso deslizou por aquilo que outrora fora o rosto da mulher.
1 de  Abril de  1957
Leningrado

*Iejovshchina ou Yezhovshchina:  Período que se refere à perduração da política de Nikolai Iejov, chefe da polícia secreta (NKVD -comissariado popular dos assuntos internos), antecessor de Béria e que, tal como este, foi no seu tempo o braço direito de Stálin.


Introdução


Era no tempo em que só um morto,
contente por estar em paz, sorria.
Como peso morto, Leninegrado
dependurava-se das enxovias.
E quando legiões de condenados
já marchavam loucos e aflitos
e as locomotivas já soltavam
os apitos do breve canto do adeus,
sobre nós gelavam estrelas de morte
e a Rússia inocente se contorcia
sob as cardas de ensanguentadas botas,
sob as rodas negras dos carros sombrios.



1*



Levaram-te de madrugada
e eu seguia atrás como num enterro,
no escuro do quarto as crianças choram,
a vela do ícone já se derretera.
Em teus lábios o ícone frio, na fronte
o suor gelado... Esquecer é impossível!
Como mulheres de streltsi ** eu uivarei
debaixo dos torreões do Kremlin. 



* Este poema refere-se à prisão de N.N. Punin, amigo chegado de Anna. Os streltsi eram soldados camponeses, do regimento de atiradores de Moscovo. Em consequência de um motim em 1698, foram executados por ordem de Pedro o Grande, 1182 streltsi.

2.


Corre doce o Don tranquilo, e entra
uma lua amarela pela casa dentro,

de chapéu à banda entra ela,
vê uma sombra a lua amarela.

Esta mulher está a morrer,
está sozinha esta mulher.

O homem na cova e o filho
na cadeia, orai por mim.
1938

(para ler mais, procurem o livro de poesias de Akhmatova: Requiem)

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