Um dia desse eu achei que você estivesse me perseguindo, encontrei você umas duas ou três vezes nas minhas caminhadas nos corredores da vida, o que é algo muito estranho, afinal quem diria que eu gravei o seu rosto no anonimato de toda uma multidão: Sim, eu gravei sem querer.
É mais estranho ainda pensar que você estava olhando para mim quando eu estava distraindo redigindo algum ensaio que não teria fim, você me pegou desprotegido com o seu olhar de serpente; O que você estaria pensando de mim afinal? Eu realmente não sei e conjecturo não querer saber, afinal de contas a ignorância às vezes é uma benção.
Entrei numa sala e encontrei meus amigos à porta cantarolando músicas bregas e sorrindo com as maiores trivialidades da vida; A cortina de fumaça do cigarro irritou minhas narinas e decidi tomar um pouco de ar, foi aí que você apareceu de novo: Com sua sandália rasteirinha, uma pulseira no braço esquerdo meio tribal e os cabelos meio à la hippie. Achei meio estranho, não esperava encontrá-la naquele digníssimo antro, mas fora deveras compreensível pensar que você fora arrastada pelos amigos.
Fui para a minha aula e conversei com alguns colegas sobre isso; Quando estava indo para casa, vi você correr em direção ao mesmo ônibus do que o meu. Eu estava meio desligado e entrei na frente de maneira um tanto grosseira, não era de se esperar cortesia de alguém que tivera aula o dia todo, mas foi então que ao ir para o meu lugar, você disse com voz angelical um "Boa Noite" bem tímido; Não lembrava que houvesse ainda educação nas palavras das pessoas no cotidiano, mas realmente você foi bem educada.
Fingi não me importar com isso e me sentei junto à janela, foi então que você sentou do meu lado. Só podia ser uma conspiração cósmica, pois aparentemente não havia lugares melhores do que aquele ali; Perguntei a mim mesmo se estava sendo bem galante naquele dia e sorri com a tolice que essa ideia trazia. Coloquei meus fones de ouvido e fechei meus olhos, adormeci com você ao lado admirando as obras do Niemeyer da janela do coletivo.
Alguns teriam dito que eu devia ter puxado alguma conversa com você, mas a vida é tão cheia de singularidades que meras coincidências não são lá muito aproveitadas por nós, pessoas descuidadas, e afinal de contas, que conversa teríamos nós em comum? Dormi tranquilamente e quando acordei você já tinha saído, nem me importo com isso.
Calibrei meus olhos à claridade da iluminação pública, retirei o meu fone de ouvido depois de duas músicas, e desci na minha quadra como sempre fiz. Nunca mais te vi, é verdade, e é possível que nunca mais te verei, mas não sinto qualquer coisa sobre isso; É tolice acreditar que existe algo além em meras coincidências.
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