domingo, 6 de janeiro de 2013

Uma discussão sobre o papel da Ideologia



 


            “Nós vos pedimos com insistência:
            Nunca digam — Isso é natural! [...]
            A fim de que nada passe por ser imutável”  
                       (Bertolt Brecht)


            Considerando que o senso comum pode ser entendido como uma entidade de pensamento e conhecimento construída a partir de uma realidade vivida num contexto social, já que o homem se traduz por ser ao mesmo tempo um individuo laboris, socialis et ludens, observasse que essa conjectura do saber normalmente acaba tendo enraizada uma ideologia disfarçada.


            Mas o que é uma ideologia?


            Para Marx, a ideologia é um produto construído de forma arbitrária por uma classe dominante a fim de literalmente “mascarar a verdade” e alienar o trabalhador, o homo laboris numa relação dicotômica entre exploradores e explorados, essa é a base do pensamento marxista, um dos francos pilares.

            Mas a ideologia, embora Marx tenha sido bem perspicaz nesse ponto ao interpretá-la como uma máscara, ela pode ser entendida como um produto de um conjunto de valores e ideias de toda uma sociedade e não obrigatoriamente é feita de maneira arbitrária ou apenas para mascarar a realidade, mas ela em si carrega um valor, uma ideia propriamente dita de tornar normal a sociedade, dar uma coesão ao corpo, e ao contrário do que Marx diz, a ideologia não apenas toma os olhos dos explorados, mas também dos ditos exploradores.


            Tal como na tragédia final de Édipo, o Rei, onde o tirano mascara a realidade para apagar a sua culpa do crime em Tebas, ele próprio se ilude, e se cega por completo frente à aletheia, traduzida de maneira porca como a verdade, “pravda”. Só que nessa tragédia de Sófocles, Édipo, vergonhoso de ter desposado a mãe e matado o pai, acaba ferindo os olhos e se lamentando por ter sido considerado o mais sábio dos sábios e no fim ter sido o mais cego dos cegos.

            A despeito do drama dessa peça, é o que acontece com todos nós que vivemos num corpo social, a Ideologia se enraíza completamente no nosso imaginário,  e se não tomarmos cuidado e seguirmos no dogmatismo estrito de nossas ideias, acabamos tão cegos quanto o Édipo, o decifrador da Esfinge, e podemos beirar ao fanatismo por acreditarmos que a nossa verdade é única e que as demais visões são falsas ou meras deturpações da realidade.


            A melhor maneira de sobrevivermos ao dogmatismo sem nos consumimos por completo em suas ideias e pensamentos é tomar uma postura geral de todos acontecimentos, duvidar dos nossos passos, tomarmos o ceticismo em nossos movimentos e adquirirmos o senso crítico das coisas, uma análise crítica da situação, fazendo questionamentos de práticas e ideias que se enraízam nos comportamentos sociais, o “bom” senso como Gramsci mesmo  disse é “o núcleo sadio do senso comum”.

            Se inter-relacionarmos  o senso crítico com Édipo, temos que o senso crítico é a visualização dos nossos equívocos, é uma autocrítica da própria sociedade, que de forma prematura acaba nos prevenindo de um trágico desastre.

           


            Voltando ao debate acerca da Ideologia; A nossa realidade deve ser encarada de maneira pragmática, mas nunca dogmática, tomando cuidado para que o ceticismo não seja tão grande ao ponto de duvidarmos de tudo que aprendemos e conhecemos.

            De maneira geral, o discurso ideológico de maneira inconsciente se enraíza no nosso imaginário, seja no caso de “A Democracia é um governo de iguais que governam por meios iguais e límpidos garantido a harmonia de todos os seus indivíduos no corpo”, ou “Quem espera, sempre alcança” e “Cada um por si, Deus por todos”.

            Se formos pensar de maneira categórica, essas frases são inteiramente carregadas de ideologia, uma, usada em discursos políticos, é a própria definição do modelo tradicional liberal, a segunda remete a uma ideia de quem é paciente sempre consegue o que quer, o que ideologicamente falando quer dizer, economicamente só os indivíduos pacientes mas que constantemente trabalha podem enriquecer, ou seja moral burguesa. A última é a moral burguesa escrachada, Deus cuidará de todos enquanto cada um cuidar de si.

            Essas frases são comuns, seja em discursos políticos, seja em ditados populares ou repetidos por nossos pais, mas enraízam uma ideologia.



            Entramos então em outro ponto da esfera dessa discussão, a ideologia pode aparecer de maneira consciente ou inconsciente em várias esferas, seja no convívio social, seja na escola, na igreja, e até mesmo na cultura.

            No convívio social, nossos pais nos educam conforme os seus desígnios que carregam seus valores e seus conhecimentos, consequentemente suas ideias; Na escola, o discurso de que o ensino é democratizador é tão enraizado até hoje que quando o desempenho de um aluno é aquém do esperado, ideologicamente falando, o aluno é tido como não empenhado, e o aluno com melhores notas, é consequentemente tido como melhor, a escola é um reflexo da própria sociedade.

            A Igreja ensina os mandamentos da Bíblia, ao respeito, mas mais do que isso que é preferível aos “olhos do Senhor” que se mantenha a coesão social e o respeito aos mais velhos, e abstraindo para algo maior, que a fortuna é uma mostra de bons olhos à Graça Divina.

            Quanto à cultura, isso é bem visível à cultura de massas, seja nos filmes de final de ano que mostram um pai norte-americano numa mesa, repleta de comida, rodeado pelos filhos e demais parentes, cortando o peru enquanto a mãe, que às vezes é mostrada como submissa, prepara a comida, e os filhos esperam respeitosamente para abrir os presentes enquanto são tocadas canções natalinas, neva e o pai faz a prece. Isso é a personificação do ideal de família protestante norte-americana, embutindo uma moral puritana de maneira escrachada.

            Mas não é só nisso que a ideologia se mescla à cultura, nas simples histórias em quadrinhos, essa coisa tão inocente e tão singela, a moral e a ideologia estão  lá escondidas. Seja o Capitão América ou o Superman, onde eles aparecem como guardiões de uma “ordem natural” estática e harmônica que é apenas quebrada pelo MAL, representado pelos vilões (Caveira Vermelha e Lex Luthor) que não têm escrúpulos e sempre querem destruir a ordem. Uma visão maniqueísta da realidade, tendo em vista que não existe bondade intrínseca sem a presença do mal.

A despeito de ser ideológico ou não, eu gosto do Capitão América, exatamente por ele ter alguns valores

            Esse é o caso mais visível, mas e o Batman? O Batman pode não parecer tão ideológico, mas paremos para pensar, um milionário rico faz a “filantropia” de prender os piores bandidos de Gotham City e de quebra ainda auxilia a cidade com a sua riqueza, há aí uma valorização camuflada da burguesia, mas mais do que isso há uma condenação moral também, em que as crianças nunca devem “matar seus pais”, não devem traficar armas (Pinguim), cometer roubos, etc.



            E Mafalda e Snoppy, essas coisas tão infantis e tão divertidas? Pois é, dizem que Mafalda não tem uma ideologia embutida, mas os comentários cáusticos e as reflexões daquela garotinha são bem mais vibrantes que de muitos filósofos na Universidade, a questão que a ideologia existente em Mafalda não é a ideologia tradicional que visa legitimar práticas sociais, mas sim contestá-las; Mafalda, em outros termos, quer nos fazer refletir sobre os rumos do mundo.



            Cinema, histórias em quadrinhos... Que tal falarmos em propaganda? A propaganda, a mídia como um todo, visa vender um produto, seja um óculos Ray-Bay, um Hyundai último tipo, ou um Ipod, mas ela vende mais do que isso, ela vende uma maneira de vida, um modo de se pensar. Quando compramos um Ipod, nós não compramos só porque ele é útil, na verdade é bem útil, dá para acessar a internet, ver os e-mails, ouvir música, jogar, ver filmes, ler textos, etc. Tudo na palma da mão, mas o que você compra é uma ideia de progresso, de que o mundo sempre está mudando e que é seu dever acompanhar as mudanças e usufruir delas, é o American Way of Life!

            Você quer ser como o cara que usa Ray-ban e pilota o Hyundai vermelho com os cabelos esvoaçando com o teto solar, falando ao viva-voz em seu Iphone, chegando em sua luxuosa casa na praia em Malibu. Esses produtos te doutrinam a pensar dessa maneira. E na verdade, é o que todo mundo normalmente quer, uma vida confortável.
Poucos resistiriam a um carro desses

            Isso foi a propaganda comercial, mas e a propaganda propriamente ideológica? Ela vende ideias com palavras, discursos, ações, e desfiles, essa propaganda te dá a ideia de pertencer a um corpo, o faz sentir ser membro de algo maior, de construir um novo mundo. Seja o mundo socialista, onde todos tem os mesmos direitos, são iguais e trabalham pelo bem da humanidade sem classes sociais (pode-se dizer que Marx foi um dos primeiros marqueteiros bem sucedidos da história) ou fazer com que o progresso continue, que a ciência evolua e que possamos dominar cada vez mais a natureza ( o que o pensamento progressista sempre vendeu), ou simplesmente fazer com que a sua nação seja forte, a melhor do mundo, e que todas as outras se curvem à sua grandeza (É a definição do Fascismo).


            Veja como as coisas andam, a ideologia saiu da família para chegar ao fascismo.

            Esses são usos comuns da mídia que conscientemente ou inconscientemente nos levam a pensar uma ideologia. Isso se aplica a outras esferas, seja o rock in roll, seja a Literatura, com Dickens vendendo antissemitismo em alguns de seus livros e Zola uma ideia de socialismo, assim vai.


            As notícias também acabam tomando um viés ideológico, não poucas são as situações em que algumas notícias são enfatizadas mais do que outras, ou trechos são destacados, às vezes isso é feito de maneira inconsciente, tal como na hora que contamos uma história e nos atemos aos fatos que nos impressionaram mais, mas às vezes não.



            Em todo caso partiremos a um último ponto que eu gostaria de discutir:



            Gramsci, esse pensador da década de 1920, italiano que acabou perecendo frente ao crescimento do fascismo na Itália, em um dos seus escritos, Concepção dialética da História, tipificou a ideologia em duas formas: Orgânica e Arbitrária.

Gramsci em foto


            A ideologia orgânica se traduz num conjunto de valores que foi implantado num contexto e que fazia sentido no meio social que acabava se solidificando em tradições e costumes, dessa maneira leituras weberianas e de Locke sobre contrato social poderiam mesclar-se com a ideia da assimilação desses valores que praticamente se autojustificavam em vias da força temporal.



            A ideologia arbitrária era imposta de maneira externa por meio da força, seja física ou do discurso, e naturalmente tinha problemas em se legitimar, por essa razão acabava precisando da propaganda para permanecer, no caso da Itália, o Fascismo.





            Essa  discussão toda foi produto de uma leitura que tive sobre a ideologia como papel presente em nossas vidas, e em todos os meus pontos, o que quero apresentar é que a sociedade humana como sociedade, corpo de indivíduos, não sobrevive de maneira coesa sem a ideologia para legitimá-la, seja no tempo de César, seja na feudalidade, seja na Revolução Francesa, seja na hoje, seja na União Soviética. A ideologia é a liga com que os indivíduos se inter-relacionam, e ela tem um papel duplo, de mascarar a realidade, mas também de dar razão à ela, e ela não é estática, ela se mescla com o corpo social, abrangendo todas as classes.



Exercício Mental




“O Estado é uma instituição ao serviço de todos os cidadãos”



            Esse parecer universalista é tão enraigado por todos nós que parece até uma verdade absoluta, confesso que para mim é, e mais do que isso uma vontade, tendo em vista que não imagino uma forma mais perfeita de estrutura social do que a que o Estado, afinal ele é o regulador social.
            Mas como regulador, ele serve aos interesses de uma classe, que como Marx dizia, é agora a burguesia e o Estado apenas serve para oprimir o proletariado, pela visão marxista.

Mesclando com o pensamento de Lênin no “ O Estado e a Revolução”, temos que o estado socialista deve ser pautado pela ditadura da maioria, o proletariado, sobre a burguesia, para garantir o triunfo da Revolução, e que esse proletariado deveria ser dirigido por uma classe pensante, a inteligentsia; Não fica difícil de entender o que isso representa, a inteligentsia, tomou o estado com o amparo ideológico de governar em prol do proletariado na construção da sociedade comunista.

            Assim, tanto para os marxistas-leninistas quanto para os defensores mais árduos do Estado como instituição, o Estado deve garantir por seus meios o seu papel de servir à maioria, a diferença é que no pensamento marxista-leninista o estado é transitório e não deve servir à burguesia, mas ao proletariado, uma verdadeira Ditadura do Proletariado, e a Inteligenstia deveria tomar o papel de Vanguarda Revolucionária e se apossar de uma Ditadura conforme os desígnios romanos.


            No pensamento burguês o Estado é totalmente democrático e ele não privilegia nenhum dos corpos da sociedade, ele deve salvaguardar todos os serviços aos cidadãos, mas acaba que nessa realidade alguns são “mais cidadãos do que os outros”.



            Não compactuo mais com nenhuma dessas visões, seja a leninista, da vanguarda e da Ditadura, porque a palavra Ditadura me toma calafrios e nem o pensamento burguês, pois embora a ideologia seja totalmente universalista, não se traduz na realidade.
            Esse exercício mental mostra bem o que uma citação delicada pode fazer quando a dissecamos ao fundo.

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