Eu nunca fui muito de guardar recordações, fotos, ou arquivos pessoais. Na verdade eu nunca tive muito empenho em guardar coisas. Por exemplo, eu não tenho fotos minhas dos últimos tempos, nem dos meus pais ou de outros parentes, deixou tudo guardado num álbum verde na estante da sala.
Minha mãe que tinha esse hábito, de guardar recordações em fotos, mas eu preferia guardar tudo na memória, sempre acessível em todos os cantos que eu vou. Contudo, o preciosismo chegou de alguma forma e eu fui guardando relíquias no quarto.
Primeiro a máquina de escrever de meu pai, da qual surgiram minhas primeiras palavras digitadas. Depois o óculos de sol que o meu velho comprou num ótica nos anos 90, a mesma ótica onde minha mãe trabalhara, e onde os dois se conheceram. Parecem bugigangas de um passado esquecido, mas no fim não eram.
Papai sempre foi um pouco niilista, ele gostava de jogar fora as coisas inutilizadas, seja a vitrola que ele comprou com muito esforço quando tinha minha idade, seja a máquina de escrever que eu consegui salvar. Os óculos de sol se empoeiram num armário dentro de um estojo caramelo com os desígnios Ray-Ban, na lateral. Era um óculos bonito, embora nunca ficasse bem nem no meu nem em seu rosto. Mesmo assim eu os guardei e os uso.
Contudo, hoje foi um dia diferente, fui ver as fotografias emaranhadas dentro do álbum, aquelas que estevam esquecidas e eram guardadas por minha mãe. Nelas estava fotos de entes falecidos, meu bisavô, o grande João, pai de minha avó, português de nome e de família, que veio ainda criança de Portugal, lá do Minho, com o seu pai, o também falecido Antônio, caixeiro viajante falido de Portugal. Não lembrava que o meu bisavô fosse tão enrugado e tão frágil, a pele pálida acumulava veias azuladas em todo o seu rosto e os olhos eram cansados por tanto trabalhar como técnico de rádio. Minha mãe o odiava, nem sei porquê, mas minha avô nutria uma admiração pelo meu bisavô, eu só tinha o visto uma vez na minha infância. Ele morreu quando chegou aos 106 anos tendo os seus dias completados em algum lugar de Minas.
Vi ainda a avó de meu pai, uma índia yanomami da aldeia que criou o meu pai quando ele foi abandonado pela mãe irresponsável e pelo pai relapso que tinha outra família, o meu avô Isaac. Ela segurou a barra e o educou, estava sentada numa cadeira com uma camisola branca que ia até o joelho, só me conheceu quando eu era bebê. Morreu antes que pudesse ter contato. Pela foto, sua vida não parecia ter sido muito feliz em seus dias, era tão enrugada quanto um maracujá e tinha olhos bastante arregalados.
Nisso vi uma foto de quando eu era um bebê rechonchudo, de fios rubros no cabelo e sorrisinho no rosto. Não imagina que eu fosse daquele jeito, certamente se eu tiver um dia um filho, provavelmente será desse jeito. O pequeno garotinho risonho sentado sobre um banco tinha sofrido maus bocados, o pai dele chegava bêbado em casa e batia nele e na mãe e quando fora menor tinha convivido com o dilema de desnutrição, mas esse dilema não parecia fazer com que o garotinho se importasse com qualquer coisa nesse gênero.
Vi uma foto de minha mãe, quando jovem, ela usava um terninho preto e salto alto, o batom vermelho combinava com os seus cabelos escuros. Parecia mesmo uma modelo, esbelta e um pouco alta, minha mãe realmente foi uma pessoa muito bonita.
Quanto ao meu pai, ele sempre fora uma figura um pouco musculosa e rechonchuda, embora não fosse de todo intratável, ele às vezes tinha os seus excessos, como a vez que ele quebrou um armário de casa com um de seus braços num acesso de raiva, papa sempre foi alguém muito forte. Numa foto estou eu, com talvez quatro anos, ando lado a lado com o meu pai num parque, nessa época meus cabelos ainda eram dourados e o meu sorriso era falhado, por causa dos dois dentes que perdi num das minhas traquinagens em casa.
Em outra foto meu pai estava em seu escritório, usando terno, em frente a uma pilha de papéis e em cima, pendurado a uma parede estava um pôster de algum produto que não consegui identificar, e que tinha a pose insinuante de uma moça desenhada vestida com uma revolta seda púrpura em seu corpo. Eu nunca tinha visto essa foto antes.
Minha festa de cinco anos, lá estou sendo segurado pelo meu avô, Manuel, enquanto tento inutilmente apagar as velinhas do meu bolo. Vovô era realmente uma pessoa muito simples, que viveu uma vida muito dura no interior, mas que mesmo assim sempre foi uma das pessoas mais justas que eu conheci. Tinha ele um sorriso por debaixo do seu bigode grisalho que dava-lhe feições simpáticas, semelhantes a um James Doohan ou do presidente José Mujica do Uruguai. Meu avô nessa época era uma pessoa bem alta e vívida, os anos ainda não tinham chegado plenamente em suas costas, tanto que ele me segurava com fervor. Vovô, vovô, foi você que me criou, foi mais meu pai do que meu próprio pai.
Em outra foto estava a minha avó, com os seus oblíquos olhos azuis combinando com os últimos fios escuros de seu cabelo. Ela era queimada de muitos sóis, também de muito trabalho, vovó sempre foi uma figura simpática, cozinha mal que era uma coisa, mas era simpática. Às vezes era um pouco infantil em suas atitudes, mas conseguia relevar tudo isso em sua simplicidade, traduzindo-se por uma dona de casa por definição.
Meus tios, um pouco mais sombrios, ainda eram jovens à essa época, mas já nesse período mostravam seus talentos para a ociosidade, o único que salvava era o meu tio Marcos, que me deixava mexer em seu computador e a jogar em seu videogame. Foi ele que me ensinou de alguma forma como realizar a manutenção dos circuitos e um pouquinho de informática, virou um excelente tecnocrata em São Paulo.
Quanto aos outros dois, William e Marcelo, esses se perderam no mundo. Meu tio William era fã inveterado de Dragon Ball e Pearl Jam, eu aprendi a gostar de rock com ele, mas nunca saía do seu quarto e sequer se dispôs a tomar um emprego, só com o meu pai, mas mesmo assim não acabou bem, meu tio Marcelo, depois de ter ido para o exército se indispôs a viver em sociedade e renegou qualquer carreira cívil, tornando-se o que segundo minha mãe disse, um vagabundo.
Pior talvez seria o meu tío Maurício, que não tive a chance de conhecê-lo, ele desestruturou a família de meu avô. Meu tio Maurício era sem dúvida o favorito de meu avô Manuel, e o filho mais velho, era com certeza o pupilo contudo se envolveu com o mundo das drogas e começou a vender tudo o que tinha em casa. Meu avô tentou salvá-lo, gastando rios de dinheiro para interná-lo, mas não conseguiu, e acabou perdendo o filho quando ele teve uma overdose. Nunca mais o meu avô foi o mesmo, talvez tenha sido por isso que ele praticamente me adotou como seu "filho", para preencher essa lacuna.
Em outra foto estavam minhas tias, Lúcia, Ednamar, Michele e Marcilene. Marcielene era e ainda é odiada por todas, incluindo por minha mãe, que a consideram arrogante e presunçosa,contudo na foto ela não parece nada disso: Uma figura simpática de cabelos negros e olhos igualmente azuis aos de minha avô, ela era bem mais alta do que me lembrava, e teve meus dois primos, os quais não tenho contato, Fábio Bruno, o qual odeio desde pequeno, e Alexander, uma figura um pouco mais simpática.
Da parte de meu pai, há uma ausência de fotos no álbum, talvez porque minha odiasse a família dele, principalmente a sua sogra, Teresa, que o abandonou ainda bebê aos cuidados de sua mãe, minha bisavó paterna, e foi viver uma vida desvairada até sua juventude se esgotar. Contudo lembro de alguns nomes, embora os esqueça volta e meia.
Enfim, folheando mais um pouco o álbum, encontrei uma foto minha quando era criança de eu abraçando uma menina na minha escola, quando devia ter seis ou sete anos. Talvez tenha sido minha primeira paixão, mas diabos, qual era o nome dela? Eu a conheci na classe da professora Jane, foi na primeira série, espere, eu tinha então cinco anos. Ela era realmente tão bonita quanto eu lembrava, era uma figura sorridente de cabelos pretos e olhos enigmáticos, mas era intocável, tinha uma madrasta daquelas, parecia a Branca de Neve. Erámos os dois crianças inocentes.
Meus amigos na festa do meu aniversário: Felipe, esse sim me colocava em confusões quase sempre, era uma figura diabólica, com o perdão do termo, de cabeça de abóbora que se envolvia em brigas com os moleques mais velhos e me fazia ajudá-lo. Como acreditava que fosse meu amigo, apanhei diversas vezes. Eu era o terror da escola sem querer, mas mesmo sendo o terror, ainda era um aluno notável.
Na verdade, alguns professores diziam que talvez eu fosse retardado, porque até os quatro ou cinco anos não tinha a fala plenamente desenvolvida e o meu desempenho escolar era realmente medíocre, contudo a partir da segunda série, disseram que eu era um aluno notável e me pularam de série (era muito comum na época), penso que queria mais se livrar do terror da escola do que me elogiarem propriamente dito, mesmo assim, também é mérito meu nunca ter reprovado e ter entrado na universidade dois anos antes da idade normal.
Enfim, folhei mais um pouco e encontrei uma foto minha de terno, um belo terno por sinal, mas uma camisa meio ruim e uma gravata vagabunda, ao lado de uma menina desdentada da cor do leite, tal como as outras. Se chamava Rayara, ela, e eu tinha alguma forma de atração por ela, talvez tenha sido a minha primeira femme fatale, se podemos usar o termo, era uma menina sapeca e travessa que certa vez tinha jogado um chiclete na minha jaqueta e eu em represália coloquei o chiclete no seu cabelo, na sua franja. Foi uma cena por demais divertida na época, mas ela ficou chorando enquanto cortava o seu cabelo, hoje entendo porquê, eu era mesmo terrível.
Foi aí que eu lembrei, foi nesse mesmo ano que saí do ensino público e fui para o particular. Meu pai tinha largado o alcoolismo e estava empenhado em me colocar numa boa escola a todo custo. Foi nessa escola, religiosa, que acabei tomando outros caminhos. Aprendi sim muita coisa, mas também aprendi a não gostar da religião. Na verdade, eu nunca fui muito religioso, minha família também não. Meu pai, apesar do sangue judeu da nossa família, era católico, minha mãe era talvez agnóstica, até hoje não sei qual é sua religião, meus avós protestantes e anteriormente católicos, nunca líamos a Biblia, ou resavamos antes das refeições, quando eu cheguei numa ambiente hierarquizado onde tinha que rezar praticamente todo o dia ao final da aula, e jurar a bandeira às sextas, pode-se dizer que foi um choque.
Com poucos amigos, resolvi que iria me empenhar em estudar, e meus desempenhos eram muito bons. No início era bom em matemática, pelo que me lembro, mas depois descobri a força que a matemática tinha. Mas no primeiro ano, me destaquei mesmo em História, Geografia e Língua Portuguesa, ganhei em todos bimestres medalha de honra ao mérito, as quais, quando eu cresci e percebi que não tinham significado, tratei de jogá-las fora.
Eu era excepcional para a minha turma, talvez. Mas em todo caso, convivi de algum modo com a tirania dos meninos mais velhos, com suas brincadeiras maldosas, mas não tanto quanto outros alunos. Havia na minha turma um tal de Marcelo, um aluno de 16 anos (numa turma onde a média era ter 10, 11 anos) que tinha alguma forma de deficiência mental, e outra chamada Fayla, que também possuía, pronto, prato cheio para os desocupados que não perderam tempos em troçá-los por tais características.
Os meninos, liderados por uma mente doentia, chamada Luís Miguel, insultavam os dois, faziam troça, brigavam fisicamente com eles. Eu queria dizer que fui neutro e tal, mas também não fui, embora não os tenha agredido, eu tinha alguma antipatia por eles, talvez por serem os que sofressem o bullying, talvez porque quisesse ascender aos olhos dos outros garotos, eu também disse coisas feias, que hoje tremo ao lembrá-las. Nunca vou me perdoar por isso.
Mesmo assim, as minhas notas eram boas, os negócios de meu pai iam bem, tudo parecia perfeito, talvez o fosse. Eu parecia feliz ali, tinha provas, mas ainda assim era feliz, tinha na minha turma até histórias engraçadas, como as de um menino chamado Gabriel, um guri amarelento e magricelo que tinha um topete igual do Sílvio Santos, que certa vez trouxe o seu ratinho para a sala. Era um ratinho branco que ele escondera no quadro de energia e causou o terror nas meninas, eu ri muito na época. Depois fiquei sabendo que ele vivia no bar e um dia trouxe até uma capsula de uma bala para a escola, depois desse dia nunca mais o vi também.
Sim, alguns amigos meus acabaram tomando outros caminhos, a eles eu lamento, mas mesmo assim a minha vida continua.
Os negócios de meu pai iam de vento em polpa, foi aí que decidimos mudar-nos do subúrbio para um bairro mais ameno. Nesse meio tempo, eu mudei de escola e passei a frequentar uma renomada instituição da capital, para famílias mais abastadas, e conhecida pelo seu valor. Meu pai achou o ideal, mas eu tinha torçido o nariz.
Tive que fazer novos amigos, como sempre. Mas me adequei bem a tudo isso. Mudamos de casa, mudamos de vida, tempos de bonança haviam chegado. Foi aí que eu cheguei à fotos da primeira vez que eu tinha ido ver o mar; meus pais viajavam com regularidade, mas sempre para lugares no interior, Poços de Minas, Goiania, São Paulo, mas nunca para o litoral, mas por sugestão minha nós fomos, e fomos para um bom lugar: Florianópolis.
Lembro até hoje com orgulho de quando eu vi o mar pela primeira vez em Jurerê Internacional, eu fiquei fascinado, não queria sair da água por nada no mundo. Até hoje Florianópolis é a minha segunda casa.
Era por ali que as fotos acabavam, nessa viagem. Depois nunca mais quis tirar fotos com minha família, e os meus pais só tinham agora fotos da minha irmã... Eu tinha crescido e a minha vida agora era outra.
Pensando bem, mamãe estava certa, fotos realmente guardam recordações, mas são os objetos que carregam ainda mais. São os objetos que definem nossa personalidade, fases da nossa vida, a máquina de escrever com a qual você aprendeu a escrever, o óculos que o seu pai comprou quando conheceu sua mãe. Essas coisas fúteis, mas mesmo assim que carregam uma parte de você.
Nunca vou esquecer do meu avô me segurando na minha festa de aniversário, sorridente, enquanto tentava apagar as velas, mas também não vou esquecer do dia em que me escondi numa caixa d'água no esconde-esconde e o meu avô apareceu para me tirar de lá, sorrindo, sem falar nada, nem sequer brigar comigo. No terreno da casa do meu avô eu tive dias bem felizes.
Também não vou esquecer dos dias que meu pai entrava bêbado em casa e a minha mãe me protegia, dizendo que tudo iria ficar bem, que nada iria acontecer, que eu estaria bem. Nas noites frias, quando o meu pai estava sóbrio, quando ele me cobria com um cobertor, mas também brigava comigo se dissesse que estava com medo.
As histórias que vovô me contava antes de dormir, quando era pequeno e eu ficava fascinado. Os pratos inusitados que minha avó fazia, os amigos com quem conversei. Tudo isso está na minha memória e nem tão cedo poderei esquecer.
Também não poderei esquecer a violência que o álcool entrava em casa, do modo como o meu pai me batia, ou mesmo a infância imensamente pobre e problemática com a qual tive que conviver. Nada disso posso esquecer.
Isso é parte de mim, parte do que rege meus pensamentos e minhas atitudes. A honra do meu avô, os caminhos tortuosos que alguns amigos tomaram, sempre manter o autocontrole e ser honrado, nunca infligir o mau, mas também não ser inocente. Essas lembranças carregamos conosco e nem mesmo o tempo pode apagá-las como faz num álbum de recordações.
sexta-feira, 25 de janeiro de 2013
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