Num bar, desses botecos “copo-sujo” da capital estavam dois homens
sentados junto a um balcão, o primeiro, um trabalhador qualquer da indústria civil,
suado com a roupa repleta de nódoas de cimento do trabalho. Degustava feliz o
seu copo de chope enquanto o outro, um homem fino e pequenino comia os amendoins
enquanto esperava o seu conhaque.
Vem então a desculpa: o "tremor da carne", que abalou
muitos mártires[1],
você gostaria de conhecer alguém, pergunta a essa pessoa tanto quanto puder[2],
não canso de dar bons conselhos ao meu irmãozinho e à minha irmãzinha, e os
repreendo, mas é o mesmo que pregar no deserto.[3]
Foi assim que uma conversa entre os dois começou.
Papo vai, papo vem, o segundo homem tomou um gole de seu conhaque
e espremeu um pouco de limão em cima e começou a retomar a história que
contava:
“Trata-se dum reservatório preso às costas, no qual se armazena
ar...[4]
Por mais zangado que estivesse, o pai não conseguiu conter uma gargalhada.
— Você não é meu filho — é um esquilo![5]
Se me escamei? Enfureci-me! Pus-me aos coices. Dei por paus e por
pedras. Quase que me peguei com dois ou três deles. E acabei por me vir embora.
Isolei-me[6]
Eis aí, por exemplo, um homem culto sofrendo os remorsos de uma
consciência requintada, torturado por um sofrimento moral, perante o qual todo
outro sofrimento nada significa[7]
Direi apenas que o pintei com horror, mas pretendi, custasse o que
custasse, superar minha repulsa e, sufocando todo sentimento, me manter fiel à
natureza.[8]
Os senhores podem ver que esta nossa carne continua sendo ardentemente caçada,
meus amigos[9].”
— Decididamente é um homem de imenso espírito[10]
—
Por quê?
—
Por tratares de filosofia em semelhante conversa. Parece até um mestre de
dialética.
— Jamais
fui mestre de ninguém, embora nunca me opusesse a jovem ou velho que desejasse
me ouvir na execução de minha tarefa[11]
—
Verdadeiramente és um poeta.
— De
maneira nenhuma! A alma humana e seus limites, a esfera de experiências
percorrida até o presente pela alma humana, os cumes, as profundezas e a
extensão dessas experiências, toda a história da alma até nossos dias, suas
possibilidades não realizadas ainda, tudo isso é o distrito de caça reservado
para o psicólogo nato. Para o amigo das grandes caçadas[12]
—
Quer dizer que é psicólogo?
— De
maneira nenhuma, sou apenas um caçador de histórias, e estou contando-lhe uma.
E para tanto, deves tomar muitas precauções antes de chegar a esse ponto[13].
—
Sabe, meu caro, você é um cara engraçado, brindo a isso — bebericou o seu copo
de cerveja.
—
Não é surpreendente que você pense assim, já que não tem da realidade nenhuma
representação que não seja falsa[14]
Veja, por exemplo, o desejo da conquista. O desejo da conquista é, com certeza
o mais comum e natural entre os homens, e quando eles se entregam a ele e são
bem sucedidos, são louvados. Entretanto, quando lhes faltam meios e eles tentam
de qualquer maneira, cometem um erro que merece censura[15]
—
Ora, nem sempre é assim, meu caro. Na construção civil nos pensamos diferente,
gostamos de dizer algumas banalidades às que passam, mas nem por isso somos
assim. Eu confio nesse principio.
— Todo o universo da cidade e tudo o que havia feito a confiança no
presente em sua superioridade não passavam de ruínas.[16]
— Não acredito nisso, moço.
— Tudo é passageiro, meu caro. Até a chuva de verão é efêmera
frente ao calor tropical.
— Realmente o senhor é bem pessimista. Vejamos o jogo.
— De maneira alguma sou um pessimista, apenas sou um caçador de
histórias, e um dia até eu irei contar essa história para os meus conhecidos.
Passar bem, e não se esqueça, a vida é um jogo.
Bebeu um último gole de conhaque e saiu, o pedreiro sorriu-se de
tudo aquilo e do jeito ridículo como aquele homenzinho contava suas histórias,
até que percebeu que tudo fazia sentido e fechou o seu sorriso, não quis mais
beber o seu chope e foi para casa. O Flamengo tinha perdido outro jogo.
PS: É interessante notar que me vali do uso das afamadas notas de
rodapé, principalmente porque no início eu não tinha uma ideia clara sobre o
que seria esse conto, dessa forma, me entreti na maior parte do tempo em
brincar com as palavras, como o caçador de histórias, assim tomei-me da licença
de tomar emprestadas citações dos mais variados livros da minha estante
justamente na página 61. Espero que gostem desse meu lampejo criativo, ou não. E antes que me acusem de elitismo o título foi retirado também de uma citação, da página 61, de Rumo à Estação Finlândia, de Edmond Wilson.
[1]
Duby, Georges. Idade Média, Idade dos Homens. Pág 61.
[2] Miodunka, Wladyslaw. Cześć jak się masz?.
Pág 61.
[3] Tchekhov,
Anton. O Assassinato e outras histórias. Pág 61.
[4]
Verne, Jules. 20 mil léguas submarinas, pág 61.
[5]
Martin, George. A Guerra dos Tronos. Pág. 61.
[6]
Pessoa, Fernando. O Banqueiro Anarquista, pág 61.
[7]
Dostoievsky, Fiodor. Memórias da casa dos mortos, pág 61.
[8]
Gogol, Nikolai. O retrato. Pág. 61.
[9] Shakespeare, William. Henrique V, pág
61.
[10]
Dumas, Alexandre. Os três mosqueteiros, pág. 61.
[11] Sócrates. Apologia de Socrates de Platão in Nova
Cultural, Sócrates. Pág 61.
[12]
Nietzsche, Friedrich, Além do Bem e do Mal. Pág 61.
[13] Sun Tzu, A arte da guerra, pág. 61.
[14]
Thomas Morus, A utopia. Pág. 61.
[15]
Maquiavel, O Príncipe. Pág 61.
[16]
Hartog, François. Os Antigos, o Passado, o Presente. Pág. 61.
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