terça-feira, 30 de agosto de 2011

O soldado polonês (texto do blogueiro)

O lutar da guerra trazia grandes emoções àquele soldado, já tão distante de casa. Sabia que havia muito tempo que havia partido de sua aldeia nos arredores da cidadezinha de Lvov, onde seus pais cresceram, assim como seus avós, no meio de uma vida modesta, sem grandes luxos, numa fazenda de interior.
Aquele rapaz sabia até hoje como ordenhar uma vaca ( de cima para baixo, com força e delicadeza ao mesmo tempo), sabia como selar um cavalo e cavalgar ao longo do pequeno riacho da sua vila, onde admirava impaciente o por do sol, à sombra de uma macieira.
Vocês acham que ele se esqueceu de seu velho pai, já tão envelhecido e cego de um olho? É óbvio que não, ele pensava em seu velho pai todos os dias, pensava no tanto que aquela pequinesa pensava calada enquanto carregava com o ancinho pacotes e mais pacotes de feno rumo ao celeiro daquela pequena propriedade.
E de sua mãe, vocês acham que aquele pobre rapaz, com a cruz no peito e São Francisco de Pádua na alma, iria esquecer-se de sua velha mãezinha, toda enrugada, já corcunda, cheia de verrugas no rosto, que há tanto falecera em seu leito materno. Óbvio que não, o jovem garoto rezava todo dia para que sua mãe estivesse em paz no santo sepulcro celestial, em que os dois, inocentemente acreditavam.
Ah! E a jovem Marzella? A jovem donzela dos longos e finos cabelos escuros, olhos azuis, pele palidamente branca, boca sensual e traçado sinuoso. Acha que ele se esquecera de que estava a ponto de casar-se com ela e ter uma família?
É óbvio que não, ele não se esquecera que com ela queria ter filhos, com ela queria enamorar-se, com ela queria passar o resto dos seus dias caminhando ao luar, com o tocar de violinos estridentes, no exalar das flores noturnas, no parque de sua terra natal.
Esse era Wladyslaw Leśmian, o jovem soldado que saíra da sua confortável e bucólica aldeia em direção às baluartes de aço ali,naquela fétida trincheira, eslamaçada pela chuva do outro dia, corroído pela coqueluche e pelo frio, unicamente para defender a liberdade de sua obscurecida pátria. A velha e saudosa Polônia.
E pensar que ele poderia estar em Varsóvia estudando piano, podia estar estudando Direito em Crácovia, podia viajar até o mundo inteiro com o dote que receberia do pai de sua noiva (um rico comerciante russo, que na verdade era contrabandista de vodca), tudo isso ele podia, mas o calor da pátria era forte. Aquele garoto criado ao som da Polonaise, ensinado a se ajoelhar unicamente na presença de Deus, não aceitaria ver-se prostrar enquanto outros choravam a dor de ser polonês.
“Ser polonês é difícil. Ao mesmo tempo em que se deseja liberdade, pouco se faz para tê-la.” Pensava o jovem que se lembrava saudosamente do seu velho pai contando a história do levante de 1863, em que seu tio foi fuzilado a mando do Czar.
“Papai! Meu velho papa, precisava tanto vê-lo de novo, meu velho.”
Sabia que não veria seu pai tão cedo, nem mesmo sua noiva, mas pensava como seria aquele momento, o passear em meio ao vento esvoaçante com aquela beldade de lenço florido na cabeça em meio aos campos dourados de trigo que ele mesmo plantara, arara e iria colher. Pensava com felicidade, sobre a luz do pôr-do-sol, o momento em que poderia beijar sua amada sem se preocupar com nada.
“Ah!”
O tocar  estridente de um apito de marinheiro indicava que se devia entrar em formação. O jovem polaco vestiu seu capacete de aço, abotoou sua túnica e embainhou seu rifle.
—  Oчень хорошо! Levantem-se, seus porcos! Hoje é o dia de provarem sua coragem, hoje é o dia de se mostrarem dignos ao nosso Czar. Veremos se dentre vós distinguem os homens dos ratos! Em formação! — Gritou o capitão.
Nem se importara com os insultos do capitão, aquele oficial graduado que ganhara uma ordem dos Cavaleiros da Cruz de São Jorge logo naqueles dias, apenas pensava em sua Marzella.
— Boa sorte, camarada, não diga que não avisei — Falou o colega de Wladislaw, Grigori Chernenko.
Ele nem se importara com o apelo político de seu amigo para não ir naquela incursão, só pensava que logo estaria em casa, bebendo wodka( vodka) com seu pai e beijando sua Marzella. Veria seus amigos de infância, seus tios, todos obesos e brincalhões, veria todos esses.
— Ypa!
Os soldados levantaram-se daquela vala no meio do nada, apoiando-se em toras de madeiras infestadas com cupins e lama e seguiam sob um descampado em direção a um lugar não visível.
Sabiam, aqueles sensatos, que muitos morreriam, sabiam que poderiam ser feridos, mas com o Capitão apontando uma arma para quem recusasse e voltasse, tudo mudava.
Os alemães não estavam longe — eles com certeza fariam tocar suas metralhadoras irritantes e lançariam seus “espremedores de batata”. Mesmo assim, aqueles soldados rasos gritavam: “URA!” como se fosse a ultima coisa que iriam dizer.
Seria fatídico aquele dia 23 de agosto de 1914, mas faria de tudo para libertar sua amada Polônia da opressão prussiana e mais ainda para libertá-la da opressão do Czar. Wladyslaw lembrava de como seu irmão, Henryk, fora tirado do conforto do seu lar, sob o choro de seus filhos, unicamente por ter dito em público que não gostava do Czar.
“URA!”
À passo de ganso, marcham aquela centena de soldados, todos enfileirados, descarregando seus rifles Mosin Nagant sobre alvos desconhecidos e pensando sobre qual propósito estariam todos ali. Ninguém sabia de certo, nenhum ali era tão tolo de ser voluntário naquela sangrenta guerra, exceto Wladyslaw.
“Wladyslaw, Wladyslaw, que burrice você fez!”
O cricrilar das metralhadoras fez com que muitos caíssem de joelhos diante daquele inimigo poderoso, mas não Wladyslaw, Wladyslaw era forte, e não seriam meras balas traçantes de 7.62mm que o fariam ficar longe de sua querida Marzella.
Com a última bala do seu rifle já envelhecido, Wladyslaw conseguira perfurar o capacete de aço, pontudo, de um oficial alemão, mas aquilo teria um preço. Bum!
Um expansão gasosa fez com que aquela explosão ecoasse em toda aquela fileira de soldados e no meio da cratera formada, em meio ao pó e a sujeira, lá estava o estúpido polonês que apenas queria salvar sua terra, mas não se lembrava se estava vivo ou morto, se estava feliz ou triste, se estava com Marzella ou com uma anja para levá-lo ao Paraíso.
“Eu avisei”
Ao acordar no hospital de campanha, Wladyslaw mal conseguia respirar de tanta atadura que colocaram em si. Não podia mover-se e falar também não. Uma bondosa enfermeira, uma santa senhorita de alta classe, diga-se de passagem, trazia todo o dia o almoço e um noticiário, mas Wladyslaw ainda não sabia como foi parar ali.
— Enfermeira, quando poderei voltar para casa?
— Receio que em breve?
— Em breve? A guerra acabou.
— Para você acabou.
Foi aí que ele percebeu que estava sem as duas pernas e quando percebeu que não era um sonho (afinal, ele ainda sentia as pernas), gritou de agonia.
Assim ele voltou para a sua amada terra natal, longe de tudo aquilo, sem muito que fazer, ficou esperando na estação da cidadezinha, seu pai vir buscá-lo.
Andando com os punhos, aquele jovem soldado era motivo de chacota dentre os passantes da estação, de crianças a velhinhos, todos troçavam dele, pois parecia um mico de circo.
— Por que riem? Eu lutei no front, tive a coragem que muitos de você não têm. Se estou assim foi para deixar nossa pátria livre, a nossa amada Polônia!
Um assombro surgiu na plataforma, todos se calaram, agora sentiam vergonha de si, aquele jovem soldado agora inspirava um misto de respeito e pena nos que estavam ali. Todos calaram-se, até que uma garotinha sardenta caminhou em direção ao jovem soldado.
— Toma, moço, pode ficar com o dinheiro do meu lanche, precisa mais do que eu.
Wladyslaw não sentiu-se com forças para recusar àquela pequinesa essa demonstração de afeto infantil. Ele sentiu-se mal por ter recebido aquele dinheiro, mas mais mal ainda quando viu que os outros viajantes também se apiedaram dele e começaram a dar-lhe esmolas.
Wladyslaw sentiu-se humilhado.
Na estação, o agora portador de necessidades especiais encontrou-se com seus vizinhos de porteira, seus amigos e sua namorada, todos não o reconheceram.
—Veja só, o circo voltou a cidade — Troçou-lhe  Samuel Siewerski, seu melhor amigo, desde a infância.
Uma lágrima percorreu-lhe os olhos de profunda dor naquela situação, mais ainda quando viu a sua querida Marzella abraçada com outro rapaz que nunca vira na vida.
Wladyslaw desceu do banquinho em que havia se sentado e caminhando através dos punhos, sai da estação de trem. O grupo não resistiu e começaram a troçar dele, gesticulando como macacos.
Wladyslaw, já muito tristonho, vira-se em direção e Samuel e de baixo para cima diz:
— Eu esperava mais de você, Samuel. Eu realmente esperava mais de você — Chorou.
— Wladyslaw!?
Os amigos se envergonharam com tudo aquilo, Marzella mais ainda por ter trago seu novo namorado para àquela situação.
— Vem só vocês, saio para lutar pela nossa querida e amada terra e quando volto, o que encontro? Meus amigos troçando de mim e minha noiva abraçada a outro homem. Onde está meu pai?
— Wladyslaw — Tomou a palavra o seu vizinho de porteira, Bosleław Wolski — Seu pai está morto. Ele morreu duas semanas depois que você partiu.
Wladyslaw soltou um grito surdo e caiu em lágrimas tão tristonhas que fizeram até os passantes chorarem com sua dor.
— Wladyslaw...
— Deixem-me! Eu só preciso ir à igreja.
— Certo, mas deixe-me levá-lo pelo menos — Pediu Samuel.
— Em minhas condições, não há como eu recusar.
Os cinco saíram em comboio em direção à saída da estação ferroviária, sentindo muito remorso, os amigos de Wladyslaw pediam para os passantes para não rirem e nem apontarem para o soldado desarmado, e Samuel pediu um cocheiro os levasse para a pequena igreja de São Cristovão, nos arredores da vila.
Ninguém tivera coragem de emitir um som, ninguém tivera coragem de emitir uma só palavra, todos pensavam que o melhor seria ficar calado.
— Bem, vocês, quando estou aqui, vocês são falantes, quando parto e vou embora, ninguém sequer se pronunciou a dizer que meu pai morrera. Quando volto, falam-me coisas ruins, quando me revelo, falam nada.
Ninguém teve a coragem de respondê-lo.
Não ficava longe a igrejinha e em cinco minutos, lá estavam os cinco nas escadas da casa de Deus.
Wladyslaw caminha vagarosamente dentre os degraus e defronta-se com uma gigantesca estátua de Jesus Cristo, o velho profeta da Judéia que tanto ouvira das palavras do padre, e a ele olhou.
Os dois se entendem em amargurante dor, sabem a dor da sangria, cada um a seu modo, mas ambos estão aleijados, e ambos estão muito magros e fracos. Ali, defronte do ícone de madeira, Wladyslaw joga 70 zlotys ao pé da escultura, dinheiro esse que conseguira com as esmolas, e em seguida reza em latim e faz o sinal da cruz.
— Wladyslaw! Wladyslaw!
Wladyslaw caiu de queixo na pedra lapidada do chão límpido da entrada da igreja e dali não mais levantou, o jovem soldado enfim descobrira que tudo que pedira antes, de nada adiantou em razão de ter se aventurado em outras coisas, agora depois de maduro, quando pedira para morrer, seu pedido fora atendido. Não acredito nesse messianismo xamânico a que chamam de cristianismo, mas essa é a verdade dos fatos tais como são narrados.

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