quarta-feira, 29 de maio de 2013

Planalto das Veredas

      O povo do planalto das veredas[1] é um povo meio estranho, em formas e comportamentos. Ainda é formado por uma gente recente que surgiu nessas passagens não tem mais de cinquenta anos, mas transformaram totalmente essa paisagem.

     Aqui nessas veredas ocultas escondiam-se animais de imensa vergadura como um pequeno mamífero de nariz longo e fino todo peludo, curiosamente chamado pelos habitantes de Trigactyla[2]. Dedica-se ele a comer formigas nesse sertão sem cor na época da estiagem, enquanto outro compadre seu, um lobo simpático de cor meio ruivo-acastanhado chamado de Brachyurus[3] dedica-se a matar pequenos camundongos do mato para sua sobrevivência. Os nativos tomam esses dois como exemplos da fauna dessa parte do mundo, embora ambos estejam próximos da extinção.

    Nessas passagens também, apesar do solo ácido e vermelho, desenvolve-se o dito Pau-mulato[4], um nome feio para uma árvore tão frondosa como essa. Tem ela um tronco todo retorcido que arranha conscientemente o céu com suas flores amarelas que desabrocham um pouco antes da estação das chuvas. Essa árvore de folhas  penta-folíoladas é um simbolo de resistência à estação de estiagem que se prolonga por seis meses nessa parte do interior do continente e colore a grande cidade que o povo das veredas interioranas construiu a partir do nada.

     Disse que o povo das veredas surgiu a pelo menos 50 anos. Pois é verdade, surgiu de muitas tribos, tribos das montanhas da regiões ricas em ferro um pouco mais ao sul, das estepes que se prolongavam pela pradaria, do semi-desértico interior logo mais adiante. Gente de todas as falas e maneiras de pensar.


     O povo do árido semi-deserto foi que construiu tão vistosas habitações de forma matemática ao longo de uma linha tracejada ao qual carinhosamente os habitantes chamavam de Via Axium[5], que se desenvolve ao sul e ao norte de maneira tão prodigiosa que toda a cidade gira em torno desse caminho. Por ali xistosos xiquixás movidos sobre a tração de um eixo firmemente construído em um metal bem trabalhado, percorrem por esses caminhos levando os mais abastados cidadãos para os seus compromissos, embora quase nunca um desses xiquixás andem mais rápido do que a perna de um homem.

     Também existem grandes carroças de metal que levam pessoas de um lado ao outro que sempre estão lotadas, o que traz bastantes infórtuinos na vida cotidiana do povo das veredas. 

     As moradias dessas pessoas se desenrolam em torno da dinâmica dos xiquixás[6], e é comum as famílias terem mais de um, porque todos moram longe de onde trabalham, o que causa grandes transtornos. Boa parte dos que vão trabalhar na cidade central, moram na periferia e tem que atravessar vastas florestas e estradas em precárias condições para conseguirem o seu tão amado plástico pintado.

     Sim plástico pintado[7], o povo das veredas é bastante reverencioso quanto à essa tira de polímero feita de fibra de mandioca que possibilita que um seja mais poderoso que o outro. Outrora cultuava-se uma fibra vegetal cuja inscrição levava uma caricatura de várias criaturas da natureza[8], mas percebeu-se rápido que não era muito prático utilizar a natureza para esses fins, e desenvolveu-se o plástico pintado.

     Com o plástico pintado é mais fácil conseguir as coisas, tendo em vista que nenhum dos habitantes das veredas planta o que próprio consome, mas conseguem tudo a partir da religião, o Deus desse povo anteriormente era três em um, ao mesmo tempo que era um fantasma misericordioso, era também figura paterna nas horas mais difíceis e às vezes fazia o papel de filho  zeloso que nunca fazia travessuras, mas agora o deus deles é um único, tal como o nosso. Pois eles apresentam todo final de semana o plástico pintado no templo mais próximo e conseguem sua cota de milho ou batata, embora apreciem mais feijão.

     Às vezes os templos concorrem entre si, e dessa concorrência alguns tentam atrair fiéis dizendo que o seu milho era melhor, e que o deus comum a todos tinha abençoado mais tal congregação que outra com uma safra mais virtuosa.

    Contudo, como eu disse, para os habitantes das veredas conseguirem usar o plástico pintado, precisam exercer uma atividade normalmente tediosa e exaustiva. Assim seguem para os seus ofícios longe de casa. A maior parte das pessoas trabalham pintando fibras vegetais dentro de grandes castelos de pedra na parte central da cidade, castelos bonitos, em formas retangulares ou mesmo circulares que de tão grandes tentam tocar o céu. A visão destes é muito fechada, tudo o que mais desejam os jovens é preencher tais ocupações tediosas, para isso se submetem a rigorosas provas da comunidade para conseguirem o status de guerreiros pensativos da comunidade, e aquele que se mostrar mais valoroso recebe uma excelente cota para o resto da vida, alguns nem mais se dedicam a trabalhar.

    Os que verdadeiramente trabalham, os agricultores e tecelões são excluídos da sociedade e deixados de lado e fazem de tudo para conseguirem um pouco desse plástico pintado para terem um pouco de respeito na sociedade, assim vendem milho e roupas bem finas feitas de índigo e uma fibra vegetal qualquer, coisa que o povo das veredas há muito aprecia.

    O povo das veredas se esconde em falsos pudores, os homens são sempre arrogantes e acham-se caçadores natos, mas não conseguem viver sem as mulheres, que por sua vez se interessam mais do que pelo corpo ou pela astúcia de um dos seus pretendentes, mas sim a capacidade dele em lhe dar roupas bem trabalhadas e uma bela morada, as mulheres são tão chatas com isso que não deixam nenhum homem se aproximar delas, arrogantes como elas, brincam com os sentimentos do homem como gatinhos com novelos de lã, e é comum terem vários parceiros por semana, mas no fim reclamam por nunca encontrarem o parceiro ideal.

    Já o homem normalmente diz não se importar com isso, e procura ficar com várias mulheres ao mesmo tempo, se interessando apenas por suas formas, e à arte dos prazeres. Trancam-se em quartos escuros, e sobre esteiras sobre o chão, no meio da noite, emitem ruídos grosseiros com sua parceira; mal visto é o homem que não faz a sua parceira emitir tais sons da maneira apropriada.

   Entretanto, não é permitido nem aos homens nem às mulheres falarem publicamente disso, nem demonstrarem abertamente qualquer prazer na vida particular, embora os homens normalmente jactam-se disso, mesmo terem a dificuldade de conseguirem parceiras.


   O povo das veredas dedica-se aos seus ofícios  praticamente todos os dias, exceto em dois na semana, que são dados por sagrados (embora nenhum deles se lembre o porquê): Um é o dia da criação do mundo, outro é o dia do descanso divino. Como eu disse, anteriormente o deus desse povo era um que conjugava três, tal como nos povos da Índia, volta e meia alguns têm recaída, mas o verdadeiro deus é o provedor dos plásticos pintados; Ninguém sabe porém que esse deus se alimenta através da exploração dos ofícios do povo das veredas, mas se soubessem, ninguém iria se importar também.

    Essa cidade que se desenvolve em torno de um lago feito pelas mãos de sua própria gente, no meio do mais árido interior, sobrevive milagrosamente apesar da frieza e falsidade do seu povo, além de toda a matemacidade na qual ela se desenvolve no desenho de uma ave  no meio de um plano cartesiano. O povo que vive ali acha normal as ruas não terem nomes, ficar parado horas inteiras ao pé dos prédios sem nada para fazer e que alguns roubem descaradamente os plásticos pintados uns dos outros. Na verdade se divertem com isso, que povo estranho esse. Mais estranho ainda é o fato de pertencer a ele.




[1] Também comumente chamados de Brasilienses.
[2] Conhece-se também por Tamanduá-Bandeira
[3] Lobo-Guará
[4] Nome coloquial do Ipê-Amarelo
[5] Via Eixo
[6] Refere-se aos carros
[7] Cartão de crádito
[8] Notas do Real

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