quarta-feira, 5 de junho de 2013

A despedida de nossas imaginações

       Vagarosamente, o cortejo passava e os homens seguiam ao redor daquela miríade que se desenvolvia naquela tarde fria e nada amistosa, o céu estava bastante acinzentado tal como o humor dos homens e mulheres que por ali passavam.

      Ondas do povo, centenas, milhares de seres corriam com os olhos a acompanhar o sofrimento gravado nas fisionomias das estátuas daquela praça central, alguém tentou subir num caixote e proferir algumas palavras, mas o horror do público não estava apto a ouvir a demagogia de alguns oradores.

      Lentamente um vento frio corria sobre nossos ossos, os operários de todos os tipos, desde os das letras até os das fábricas, seguiam calado com os gorros e chapéus junto ao peito, enquanto um coro de rostos banhados em  lágrimas cantava aos soluços os refrões da Internacional. Era uma turba sem rosto, mas de muitas vozes, pálida pelo frio, mas azeda em espírito.

      O cortejo fúnebre atingia a todos, desde mulheres corpulentas de rostos enrugados com os anos, até os mais jovens rapazolas que não tinham nada além de uma vida pela frente. Queria poder dizer que estava acompanhado em toda aquela multidão, mas me senti só e desolado no meio de todas aquelas pessoas, imagino que boa parte delas também.

     Não havia bandeiras vermelhas ou líderes devolutos em meio à turba, apenas uma fila indiana que caminhava no chão de pedra batida sem nenhum destino, sem nenhum horizonte, o sol da  liberdade tinha nos abandonado naquela tarde, tão cinzenta e nebulosa, que nem mesmo uma ave apareceu para nos cumprimentar.

       Os cabelos se esvoaçavam com o tempo e eu tentava me proteger daquele frio, mas sem muito caso também, não estava muito interessado ficar gripado, a essas alturas era o que pouco importava. Não havia bandeiras no horizonte e logo chegou o crepúsculo, as velas que alguns carregavam começaram a apagar com o vento que seguia contra nossa direção e o cortejo prosseguiu às escuras. Às escuras ficaram nossas ideias e paixões reprimidas e ficamos em silêncio enquanto o vento gorjeava uma canção monótona que nada se parecia com a Internacional. A boa e velha Internacional. "De pé, ó vitimas da fome! De pé, ó famélicos da Terra. Da ideia a chama já consome, a crosta bruta que a soterra". A crosta bruta que a soterra, pelo contrário, foi a crosta bruta que a soterrou por inteiro e agora essa chama se apagava em nossas mãos e corações.

      Sim, eu não posso dizer que fiquei feliz com tudo isso. Era como enterrar o meu melhor amigo, meu maior companheiro por muitos anos e passei um dia inteiro pensando nisso, mas enquanto a banda tocava agora a marcha fúnebre, percebi que um sonho tinha acabado.

      Duzentos homens pegaram as pás, incluindo eu mesmo, e marcamos a terra dura com a lâmina que ceifava esse trágico destino, olhávamos para nós com extrema tristeza, alguns estavam inconsoláveis. Eu também me peguei choramingando bem às escondidas, mantive a cabeça erguida e abri com ainda maior força o túmulo. Quando o abrimos, jogamos todas as nossas esperanças de lado, pegamos todos o nosso esquife e cerimonialmente o enterramos lentamente naquela cova.

      Alguns se recusavam a acreditar, saiam revoltosos da cerimônia, gritavam conosco e diziam que nós éramos traídores, mas suas vozes foram abafadas com o ruído com que o vento fazia tremular todos os presentes. Gemia bem lentamente, preenchendo nossos pensamentos.

      No fundo tocava o último refrão da Internacional, e um velho, um homem bem velho por sinal, surgiu no meio de nós, sem muito destaque, e  com lágrimas nos olhos ajoelhou-se no esquife e jogou um pequeno livro de brochura vermelha em cima da armadura do caixão. Era o Manifesto Comunista.

     Alguns outros se seguiram, outros colocaram o Imperialismo: Fase Superior do Capitalismo, de Lênin, outros colocaram o Livro Vermelho de Mao Tsé-Tung, alguns lembraram até do Marighella, mas eu não, não tive coragem de enterrar Bukharin nessa cerimônia. Ele era o meu tutor, meu mentor na teoria econômica e ele não tinha morrido naquela cerimônia, tinha morrido antes quando  Stálin o matou por ser tão amigável, quando Stálin deportou sua mulher para a Sibéria e lhe roubou o seu único filho. Bukharin só vivia no meu peito.

      A cerimônia se seguiu bem triste, como eu disse, não teve ninguém que quis esboçar um discurso, nem mesmo um capelão. Todos nós presentes éramos ateus convictos, mas quando o esquife finalmente chegou na terra e os homens começaram a lançar as areias do tempo sobre o esquife, ficamos sabendo que tudo acabou. Em lágrimas, nos despedimos do nosso último sonho: O marxismo. A ideia mais eterna que tínhamos que tinha perecido sobre os discursos de demagogos e de assassinos profissionais. Nada tínhamos a perder a não ser nossos grilhões e no fim, perdemos tudo.

      Todos nós nós nos separamos, alguns saíram à esquerda, meio à francesa, outros seguiam pelo caminho mais ecológico, alguns quiseram voltar e escolher um novo caminho, um pouco mais à direita. Outros se perderam no meio daquele cortejo, mas eu, eu sou eu mesmo, me guio só por mim e caminho vagarosamente rumo a outro sonho, Bukharin não morreu com o marxismo, Bukharin vive,  está claro que temos nossas discussões, mas ele continua sendo o meu amigo.

     Esse cortejo desapareceu quando as  luzes apareceram, quando as últimas bandeiras e fileiras desapareceram soluçando e deixando para trás as ideias que tinham tomado com tamanha intensidade. Compreendi, de repente, que não era só eu que me sentia sozinho, mas todos nós. Essa ideia morrer sem nenhuma glória, e também não deixou nenhuma glória para nós.


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