sábado, 18 de maio de 2013

Uma mancha na minha camisa (conto)

       Um borrão se desenvolve na minha camisa... Um borrão bastante incômodo,  uma sujeira inconveniente na minha camisa favorita, logo essa camisa?  Não lembro de onde pode ter surgido esse borrão. De onde será que veio?

      Não foi de café, porque a mancha não é marrom e não cheira tão bem quanto o tradicional café paulista. Também não é tinta, porque dessa vez não estava levando uma caneta, mas é um borrão deveras incômodo. Não é marca de ferro, porque sequer teria coragem de queimar essa camisa.

       Mas é estranho, essa camisa continua estranha. Deixe-me ver porque está desse jeito. Eu a vesti quando estava prestes a sair de casa, logo depois de vestir minhas calças, e antes de calçar as minhas meias e o meu calçado. Até essa altura você estava limpa.

       Peguei o comboio no caminho e fiquei em pé, troquei conversas  com o cobrador sobre futebol e ri um bocado de como tudo é tão irritante. Mais um engarrafamento, o sol estava pregando no meu rosto, mas nem por isso suei.

       Cheguei aqui e tomei um pouco de café, sentei-me de lado e li um pouco do jornal. Não tinha nada de interessante e deixei de lado, mas isso não explica o porquê dessa camisa estar meio manchada. Pode ser meio metrossexual de minha parte, mas eu gosto muito dessa camisa, ela me lembra do modo como a comprei.

       ...
          Comprei essa camisa numa loja, uma pequena alfaiataria no centro. Era uma loja para artigos de trabalho, onde só vendia roupas masculinas. Eu estava meio cansado nesse dia, e o céu não estava muito convidativo, entrei na loja e perguntei:

         — Olá, eu gostaria de ver os artigos para camisas.

          O atendente era um senhor de idade, muito amigável é verdade, tinha os cabelos brancos pelo o tempo e os olhos meio apertados, era pelo menos dois palmos mais baixo do que eu e tinha um sorriso discreto nos lábios.
  
           — Desculpe, eu não o entendi — Sorriu-se meio envergonhado.

           — Camisas. Eu gostaria de ver algumas.
  
           — Certamente que sim. Que tamanho é o seu, meu jovem.

            — 3.

            — 3!? Parece mais dois. Deixe-me ver — Fitou-me a gola da camisa — Tem razão, é três. Venha, eu tenho umas camisas que o senhor vai gostar.

             Segui o senhor até o dispensário, onde estavam expostas as camisas, algumas bem elegantes por sinal. 

           — Essa é a melhor da nossa loja. Ela é feita de algodão egípcio, fio 80. Não há melhor do que essa, custa cem reais.

           — Cem reais? É muito bonita, mas ela não é um pouco cara. Eu queria algo mais simples.

           — Mas, meu caro rapaz. Com essa camisa não haverá inferno que acontecerá contigo, ela é linda de queimar os olhos, qualquer mulher que se preze iria correr atrás desse colarinho.

            Obriguei-me a sorrir, decerto era mentira de vendedor, mas não me entreguei fácil.

            — E aquela ali?

            — Aquela ali não presta ao senhor. É de fio comum, desfia rápido demais, confia em mim.

           — Pois sabe, essa camisa que o senhor traz não me agrada muito.

           — Temos várias, veja essa.

           Mostrou-me uma camisa rosa com listras brancas, eu realmente dispensei na hora. Era ridícula  sem falar que não combinaria com nenhum paletó ou calça. Mostrou-me uma azul escura que era bonita, mas sóbria demais. Até que por fim me apresentou essa, branca, com linhas azuis. Achei bonita, desde cara. E perguntei:

          — Quanto é essa?

          — Cem reais.

          — Cem mesmo?

          — Sim, mas ela se paga. Pode apostar.

           Fitei-a com um pouco mais de carinho e disse:

          — Pois vou apostar, eu vou levá-la.

          O velho vendedor sorriu-se com aquilo e disse que era uma boa compra. E era mesmo, mas aquela seria a última camisa que eu pagaria aquela quantia. Logo depois de ter pago a compra, ele apertou a minha mão e entregou a sacola:

         — Cuidado, vem uma chuva braba por aí.

         E veio, as nuvens eram tão traiçoeiras que se combinaram com os ventos para esboçar um torrão de água sobre todos os desavisados naquele viaduto. Cheguei todo ensopado em casa, mas a camisa estava incólume.

...

        Usei-a em apenas três ocasiões. Uma foi num casamento, outra foi no serviço e a terceira foi agora. Ela era a mais adorada de minhas camisas e eu tinha total respeito por sua singularidade, tratava de lavá-la a mão e respeitando o sentido do fio.

        E isso traz-me a questão inicial, o que vem a ser essa mancha na minha camisa.

        Eu olhei para o céu, encontrei um avião cortando as nuvens tão devagar e tudo o que sabia era que aquilo era só um mecanismo que voava mesmo sendo mais pesado que o ar. Não me importei se o chão estava molhado, e encharcava o meu sapato.  Os regadores irrigavam o jardim.

        Andei mais um pouco pela calçada, cumprimentei um ou dois amigos pela multidão. Enfrentei a turba de pessoas que seguia contra a minha direção e pensei que tudo tinha acabado. Mas isso não responde nada. Logo depois fui para debaixo de uma árvore para cochilar, mas quando acordei nada me aconteceu: Não caiu uma maça na minha cabeça, tal como foi com Newton (até porque nem era uma macieira, era uma mangueira) e a minha camisa continuava limpa.

       Logo depois fui almoçar: Era espaguete ao molho surgo, mas a despeito da minha habilidade de sujar a minha roupa comendo macarronadas, dessa vez ela saiu incólume. Pensei em desaparecer um pouco, utilizar-me de uma sombra para escrever uma coisa, quando ela apareceu.

      Sim, ela. Não sei você, mas acho ela bem bonita.

      Tem ela olhos castanhos e um olhar meigo que conquista qualquer desavisado, seus cabelos escuros e o toque delicado de sua pele é tão sedutor como sua voz. Estava de batom vermelho que estava para arrasar qualquer um, e uma colar de coração prateado logo acima de sua camisa preta cheia de bordados. Aquela sim estava para seduzir.

        Sorriu pra mim e lembrou-se do meu nome, eu tive que cumprimentá-la também, quando saiu. Fiquei parado olhando o modo como andava, de maneira tão elegante e tão simples que era até agradável. Depois de dois minutos, me resignei, fiquei constrangido enquanto um casal sorria do modo como tinha agido e desci as escadarias de cabeça baixa.

        E isso me leva a esse problema. Como é que essa camisa estava manchada? Na ocasião está limpa, mas agora.

        Espere, e esse copo na minha mão? Está meio vazio não está... Eu tinha comprado um pouco de suco quando estava vindo para cá e vinha tomando. Vinha tomando até que... Não acredito, foi isso então. Minha camisa se manchou por causa disso! Isso é trágico-cômico agora, parando para pensar. Minha camisa favorita suja pela minha própria distração. Não acredito.

       Se pelo menos fosse  um pouco de café, deixaria minha camisa um pouco acordada, se fosse a macarronada, ela estaria bem alimentada. Se fosse a tinta, ela estaria prestes a escrever uma poesia, mas eu deixei cair um pouco de suco de uva... Isso é imperdoável. 

        Poderia ter sido pelo menos uma marca de batom. Não seria pedir demais, seria? Uma pequena sujeirinha vermelha junto ao colarinho, de uns lábios tão sorridentes de uma certa moça tão sedutora, de corrente em forma de coração e dada à poesia. Brincadeira, tais coisas não são fadadas a pessoas tão distraídas  como eu. Tenho que descobrir como limpar essa camisa sem que fique marcada para sempre, assim como minha vergonha desse fato não traga mais memórias futuras.

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