sábado, 25 de maio de 2013

Recordações

      Imagens passam por minha mente tão taciturna de olhares, meus olhos oblíquos enchem-se nas pálpebras enquanto tudo em volta parece girar. A noite se tornou cada vez mais fria, hoje parecia ser um dia tão bom, mas acabou levando o meu chão;

     Imagens correm na minha cabeça, de um filme antigo, uma película já gasta pelo tempo, de uma tarde ensolarada dessas, há dez anos atrás, quando eu ainda era uma criança capeta, e me escondia nos fundos do quintal da casa do meu avô. Meu avô pensou que eu estivesse escapulido pelo portão, e me procurou por todos os cantos até me encontrar dentro de uma caixa d'água vazia.

    "É hora de almoçar, meu neto".

    Nem sequer brigou comigo, sorriu por  baixo do bigode, por onde a pele tão sofrida marcava-se de rugas. Meu avô era um típico homem do Norte, à essa época, era forte e tinha um ar severo. Ostentava um cabelo ralo, embora ainda negro, na cabeça e uma barba ligeiramente grisalha que o fazia parecer o Mazaroppi, na verdade, sempre achei que ele gostasse de ver os filmes dele.

     Tinha algo de especial em meu avô, a forma como ele se vestia, conforme a sua simplicidade, camisa cáqui e calça justa, e um chapéu Ramenzoni de feltro. Muito do meu estilo copiei dele, à bem da verdade.

    Meu avô era corajoso, contava-me histórias das quais eu não acreditava, dos tempos em que ele saíra do Recife, onde nascera e foi cuidar das fazendas de cana-de-açúcar no interior. O salário era de miséria, mas rendeu boas histórias. De como uma noite ele enfrentou uma fera com uma espirgarda nas mãos, e outra em que ele se esqueceu de dar o tabaco ao Saci-Pererê e ele aprontou mais uma diabrura no estábulo.

    Meu avô também contava de como Lampião tinha sido tão sanguinário no interior, que matara um padre, e deixara todos receosos dos cangaceiros, felizmente quando ele já estava em idade de trabalhar, o Cangaço já tinha acabado, mas ainda sim ele temia os coronéis.

    Contou-me uma vez de seu pai, que não tive a chance de conhecer, mas soube que ele era um sapateiro ou um profissional liberal de menor importância, contou-me como ele andava elegante pelas ruas do Recife, de colete, e chapéu, sempre levando um relógio de bolso nas mãos. Um belo relógio inglês que infelizmente não ficou com ele, mesmo sendo o filho mais velho.

   Meu avô adorava o pai dele, e acredito que se ele o adorava, então este deveria ser um homem valoroso, mas ele amava mesmo era a sua mãe, uma moça bonita da classe média recifense, refinada que só. Usava chapéu fechadinho e luvas de seda, mas teve que enfrentar o ofício de mãe e dona de casa, foi ela que educou o meu avô e o irmão dele, Tio José (como minha mãe o chamava).

   Tio José viajou para São Paulo tentar a vida e teve boa sorte trabalhando nas metalúrgicas, isso deve ter sido na década de 50, enquanto o meu avô trabalhava nos engenhos de açúcar até que ouviu o chamado do homem:

   "Convido a todos os interessados em construir uma nova nação tão forte e tão vigorosa, a virem ajudar a construir a nova Capital. Capital essa sonho de todos os Brasileiros". Era JK.

    Meu avô pegou o primeiro caminhão pau-de-arara e cortou as veredas do interior rumo ao pedaço de nada e terra que era Brasília. Trabalhou duro nas obras nos Ministérios, e se tornou um excelente operário, foi em Brasília, na vila do IAPI morar.

    Inicialmente dormiu no chão de terra batida, até que o pessoal da Novacap, liderada então pelo Israel Pinheiro mandou providenciar tendas de lona para que os operários da Capital não morressem com o frio cadavérico que fazia na época (meu avô dizia que nunca tinha sentido tanto frio quanto no dia que chegou à Brasília).

    Brasília era um esforço grandioso de uma nova cidade para uma nova humanidade. Era isso que se queria, apagar o horror que a Europa assistiu com a Segunda Guerra Mundial e viver para o futuro, um futuro em que o homem estava prestes a chegar ao Espaço. Meu avô não sabia de todas essas coisas, ele era analfabeto à época e só foi aprender com os operários na escola improvisada pela Novacap.

     Brasília em fevereiro de 1960 estava ainda só no mais puro esqueleto, ninguém acreditava que a cidade estaria pronta no dia 21 de abril de 1960, só JK, que apesar de ser corrupto, acreditou na cidade, bem como confiou sua carreira política. Presidente Bossa-Nova, JK veio pro meio do Goiás pra construir uma cidade como essa, e mandou o Niemeyer desenhar algo que combinasse com esse céu, que tal bem representa a vastidão do Planalto Central. Brasília, porque és tu, és Brasília.

    Não sei se meu avô chegou a conhecer JK em pessoa, acredito que sim, JK inspecionava as obras pessoalmente, e o meu avô trabalhava na construção dos Ministérios, esses tão grandes que eu passo por eles todos os dias. Ali está a marca do meu avô.

    Brasília é algo especial para ele, foi aqui que ele conseguiu um emprego (que pagava mais do que ele ser uma espécie de cowboy do interior do Sertão), e foi aqui que ele conheceu a minha avô, de traços tão lusitanos, bonita e meio bobinha. Sua família de portugueses estava vindo lá de Minas, e ela tão sorridente, de olhos tão azuis como os poços de água do Goiás e cabelos tão negros quanto a noite fria da Capital, aparentemente conquistaram o meu avô.

    Meu avô pediu a mão de minha avó à mãe desta, velha Celina (como chamava minha mãe), uma senhora tão bem anárquica que traiu o próprio técnico de rádio João, da cidadezinha de Uberlândia, com um artista qualquer, mas no fundo ela era megera. Celina era uns dez anos mais velha que meu avô e foi ela que arrastou a corda para o rapaz tão bem aparentado quanto ele (Meu avô era um tipo meio magricelo e formal, um tanto parecido comigo parando pra pensar, tirando o bigodinho de Mazzaroppi e o olhar perdido, além da brilhantina para deixar o cabelo impecável para traz).

    Meu avô comprou uma briga, disse que não queria ficar com a minha bisavó e sim com Edna, aquela que fazia ele pensar todas as noites. Um amigo dele disse que ele estava comprando briga, mas ele nem ouviu. Casou-se com Edna na capelinha improvisada (uma tenda no meio do terreno de terra batida) e teve com ela uma penca de filhos, entre estes, minha mãe.

    Minha mãe nasceu em 74, anos bastante difíceis, principalmente porque o meu avô a despeito de ser um excelente operário não quis ficar na Novacap e procurou trabalhar no comércio, onde dava mais dinheiro. Trabalhou na Ótica Veiga, que ainda acho que existe,  cujo o dono, senhor Veiga era um homem justo e educado, até hoje o meu avô conta histórias de como ele gostava do senhor Veiga.

    As coisas não eram fáceis, embora trabalhando na ótica, e tendo um salário razoável, meu avô tinha problemas para sustentar os oito filhos que o casal possuía numa pequena casa no subúrbio/favela da Capital, a vila IAPI acabou se deslocando para uma localidade que viria a ser chamada de maneira totalmente horrível, de Ceilândia.

    Mas acredito que o meu avô e minha avó eram pessoas felizes, embora meu avô fosse dado à bebida e ao cigarro, e tenha sido um tirano por um bom tempo, depois ele se tornou um homem macio e fino trato que eu conheci. Ele já chegou a ser tapeado várias vezes por pessoas mal-intencionadas, chegando a dormir num terminal de ônibus sem que tivesse um cruzeiro na carteira. Eram tempos difíceis.

    Quando houve a hiperinflação, minha mãe conta, que chegou a faltar comida em casa, minha avô teve que trabalhar de costureira e doméstica para pagar as contas, senhor Veiga às vezes atrasava os pagamentos (meu avô nunca acreditou que fosse uma coisa que ele quisesse), e meus tios, bem como a minha mãe, tiveram que catar laranjas para sobreviver.

     Os anos passaram, as condições dos meus avós não melhoram muito, e minha mãe foi ter que trabalhar. Trabalhar na mesma ótica que o meu avô trabalhava, onde por um acaso do destino, meu pai estava a comprar um óculos de Sol para enfrentar o calor nada abransível que fazia em Brasília. Imagino que os dois tenham se conhecido ali.

    Conta o meu pai que ao ver as condições de vida na casa dos meus avós, ele se apiedou com tudo, principalmente com as condições paupérrimas e pelos surtos que o meu tio Maurício, que era dado à bebida e outras drogas "recreativas", fazia em casa. Assim, ele levou  a minha mãe a morar junto com ele, isso foi no início dos anos 90. Foi nessa época que eles se casaram, contra o desejo do meu avô (ele não aprovava o casamento dos dois por acreditar que o meu pai, um homem também dado à bebida, iria cuidar bem da minha mãe), e logo depois eu nasci.


    Meu pai não era à essa época um homem muito agradável, pelo menos pelo que eu me lembre, de toda a minha infância, eu só lembro de ele ter brincado comigo uma vez, mas lembro várias vezes ele chegando em casa bêbado, batendo em mim e em minha mãe. Meu avô ficava indignado com isso, mas não podia fazer muita coisa (ainda não havia meios de denunciar tais coisas, e ele era muito velho para manejar a sua peixeira de novo). Por isso, ele cuidava de mim quando a minha mãe ia dormir em sua casa (com medo de meu pai), e cuidou de mim como um filho, por isso que tenho tanta estima por ele.

    Meu avô era um homem decente e justo, sempre me ensinou que era melhor ser justo e pobre do que rico e errado. Sim, ele era homem de valores e tinha boas histórias para me contar, não tinha estudado muito (antes de vir para Brasília e acabar de ser alfabetizado, meu avô tinha estudado numa escola financiada por padres, que valia a lei do castigo físico, embora ele reclamasse mais das lições de latim e de canto).

   Meu pai com o tempo se tornou alguém mais respeitável, largou a bebida e conseguiu um bom trabalho, de maneira que crescemos de vida. Comecei a estudar em bons colégios, e o meu pai dizia que queria um filho juiz (não conseguiu), meu avô sempre frisava que era melhor estudar se eu quisesse ser alguém na vida, e estudei, estudei por ele, estudei por causa do meu avô, para ajudar pessoas tão boas quanto ele foi.

   Me afastei do meu avô, ficou difícil conversar com ele do jeito que conversávamos antes, mas eu nunca esqueci do meu avô. Do modo como ele me ensinou a ser íntegro e justo, do modo como ele sorriu para mim ao descobri que eu estava na caixa d'água escondido:

   "É hora de almoçar, meu neto".

  Não, vô, é hora de chorar. Chorar simplesmente. Obrigado por ter sido bom comigo.

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