Aqui nessas veredas
ocultas escondiam-se animais de imensa vergadura como um pequeno mamífero de
nariz longo e fino todo peludo, curiosamente chamado pelos habitantes de
Trigactyla[2]. Dedica-se ele a comer
formigas nesse sertão sem cor na época da estiagem, enquanto outro compadre
seu, um lobo simpático de cor meio ruivo-acastanhado chamado de Brachyurus[3] dedica-se a matar pequenos
camundongos do mato para sua sobrevivência. Os nativos tomam esses dois como
exemplos da fauna dessa parte do mundo, embora ambos estejam próximos da
extinção.
Nessas passagens também,
apesar do solo ácido e vermelho, desenvolve-se o dito Pau-mulato[4], um nome feio para uma árvore
tão frondosa como essa. Tem ela um tronco todo retorcido que arranha
conscientemente o céu com suas flores amarelas que desabrocham um pouco antes
da estação das chuvas. Essa árvore de folhas penta-folíoladas é um
simbolo de resistência à estação de estiagem que se prolonga por seis meses
nessa parte do interior do continente e colore a grande cidade que o povo das
veredas interioranas construiu a partir do nada.
Disse que o povo das
veredas surgiu a pelo menos 50 anos. Pois é verdade, surgiu de muitas tribos,
tribos das montanhas da regiões ricas em ferro um pouco mais ao sul, das
estepes que se prolongavam pela pradaria, do semi-desértico interior logo mais
adiante. Gente de todas as falas e maneiras de pensar.
O povo do árido
semi-deserto foi que construiu tão vistosas habitações de forma matemática ao
longo de uma linha tracejada ao qual carinhosamente os habitantes chamavam de
Via Axium[5], que se desenvolve ao sul e
ao norte de maneira tão prodigiosa que toda a cidade gira em torno desse
caminho. Por ali xistosos xiquixás movidos sobre a tração de um eixo firmemente
construído em um metal bem trabalhado, percorrem por esses caminhos levando os
mais abastados cidadãos para os seus compromissos, embora quase nunca um desses
xiquixás andem mais rápido do que a perna de um homem.
Também existem grandes
carroças de metal que levam pessoas de um lado ao outro que sempre estão
lotadas, o que traz bastantes infórtuinos na vida cotidiana do povo das
veredas.
As moradias dessas
pessoas se desenrolam em torno da dinâmica dos xiquixás[6], e é comum as famílias terem
mais de um, porque todos moram longe de onde trabalham, o que causa grandes
transtornos. Boa parte dos que vão trabalhar na cidade central, moram na
periferia e tem que atravessar vastas florestas e estradas em precárias
condições para conseguirem o seu tão amado plástico pintado.
Sim plástico pintado[7], o povo das veredas é
bastante reverencioso quanto à essa tira de polímero feita de fibra de mandioca
que possibilita que um seja mais poderoso que o outro. Outrora cultuava-se uma
fibra vegetal cuja inscrição levava uma caricatura de várias criaturas da
natureza[8], mas percebeu-se rápido que
não era muito prático utilizar a natureza para esses fins, e desenvolveu-se o
plástico pintado.
Com o plástico pintado
é mais fácil conseguir as coisas, tendo em vista que nenhum dos habitantes das
veredas planta o que próprio consome, mas conseguem tudo a partir da religião,
o Deus desse povo anteriormente era três em um, ao mesmo tempo que era um
fantasma misericordioso, era também figura paterna nas horas mais difíceis e às
vezes fazia o papel de filho zeloso que nunca fazia travessuras, mas
agora o deus deles é um único, tal como o nosso. Pois eles apresentam todo
final de semana o plástico pintado no templo mais próximo e conseguem sua cota
de milho ou batata, embora apreciem mais feijão.
Às vezes os templos
concorrem entre si, e dessa concorrência alguns tentam atrair fiéis dizendo que
o seu milho era melhor, e que o deus comum a todos tinha abençoado mais tal
congregação que outra com uma safra mais virtuosa.
Contudo, como eu disse, para
os habitantes das veredas conseguirem usar o plástico pintado, precisam exercer
uma atividade normalmente tediosa e exaustiva. Assim seguem para os seus
ofícios longe de casa. A maior parte das pessoas trabalham pintando fibras
vegetais dentro de grandes castelos de pedra na parte central da cidade,
castelos bonitos, em formas retangulares ou mesmo circulares que de tão grandes
tentam tocar o céu. A visão destes é muito fechada, tudo o que mais desejam os
jovens é preencher tais ocupações tediosas, para isso se submetem a rigorosas provas
da comunidade para conseguirem o status de guerreiros pensativos da comunidade,
e aquele que se mostrar mais valoroso recebe uma excelente cota para o resto da
vida, alguns nem mais se dedicam a trabalhar.
Os que verdadeiramente
trabalham, os agricultores e tecelões são excluídos da sociedade e deixados de
lado e fazem de tudo para conseguirem um pouco desse plástico pintado para
terem um pouco de respeito na sociedade, assim vendem milho e roupas bem finas
feitas de índigo e uma fibra vegetal qualquer, coisa que o povo das veredas há
muito aprecia.
O povo das veredas se
esconde em falsos pudores, os homens são sempre arrogantes e acham-se caçadores
natos, mas não conseguem viver sem as mulheres, que por sua vez se interessam
mais do que pelo corpo ou pela astúcia de um dos seus pretendentes, mas sim a
capacidade dele em lhe dar roupas bem trabalhadas e uma bela morada, as
mulheres são tão chatas com isso que não deixam nenhum homem se aproximar
delas, arrogantes como elas, brincam com os sentimentos do homem como gatinhos
com novelos de lã, e é comum terem vários parceiros por semana, mas no fim
reclamam por nunca encontrarem o parceiro ideal.
Já o homem normalmente diz
não se importar com isso, e procura ficar com várias mulheres ao mesmo tempo,
se interessando apenas por suas formas, e à arte dos prazeres. Trancam-se em
quartos escuros, e sobre esteiras sobre o chão, no meio da noite, emitem ruídos
grosseiros com sua parceira; mal visto é o homem que não faz a sua parceira
emitir tais sons da maneira apropriada.
Entretanto, não é permitido
nem aos homens nem às mulheres falarem publicamente disso, nem demonstrarem
abertamente qualquer prazer na vida particular, embora os homens normalmente
jactam-se disso, mesmo terem a dificuldade de conseguirem parceiras.
O povo das veredas dedica-se
aos seus ofícios praticamente todos os dias, exceto em dois na semana,
que são dados por sagrados (embora nenhum deles se lembre o porquê): Um é o dia
da criação do mundo, outro é o dia do descanso divino. Como eu disse, anteriormente
o deus desse povo era um que conjugava três, tal como nos povos da Índia, volta
e meia alguns têm recaída, mas o verdadeiro deus é o provedor dos plásticos
pintados; Ninguém sabe porém que esse deus se alimenta através da exploração
dos ofícios do povo das veredas, mas se soubessem, ninguém iria se importar
também.
Essa cidade que se
desenvolve em torno de um lago feito pelas mãos de sua própria gente, no meio
do mais árido interior, sobrevive milagrosamente apesar da frieza e falsidade do
seu povo, além de toda a matemacidade na qual ela se desenvolve no desenho de
uma ave no meio de um plano cartesiano. O povo que vive ali acha normal
as ruas não terem nomes, ficar parado horas inteiras ao pé dos prédios sem nada
para fazer e que alguns roubem descaradamente os plásticos pintados uns dos
outros. Na verdade se divertem com isso, que povo estranho esse. Mais estranho
ainda é o fato de pertencer a ele.