sábado, 10 de junho de 2017

Roberto

       Roberto é um dos personagens mais curiosos que eu cheguei a conhecer. Ele tinha um semblante sério, um rosto mais fechado que o habitual, escondia-se atrás de um terno preto mal-cortado. Sempre que podia, acenava para os moradores, habituado com seu serviço. Tinha os cabelos brancos há muito tempo, que lhe dava uma envelhecida exponencial, era um homem alto de olhos compridos. Branco de semblante roseado, vivia no seu canto escutando o rádio e fumando o seu cigarro (Winston branco).


        Roberto não era simpático, de fato, você teria medo dele à primeira vista. Ele sempre falava grosso, balançava a cabeça como cachorro de painel de automóvel. Era sem dúvida um enigma. Poucas vezes tinha contato com ele, e sempre me sentia confortável falando com essa figura fechada, assim como eu.


        37 anos e trabalhando como segurança. Uma vida inteira desperdiçada! Era isso o que ele pensava. 13 anos trabalhando na Good Job (que de bom trabalho não tinha nada), todas as noites ele ficava das 19 horas até as 7 horas do dia seguinte em pé na portaria do prédio. Ele fumava duas cartelas por dia e sempre ouvia o mesmo tipo de música, rock dos anos 80.


       Roberto e eu ficamos amigos a partir de nosso vizinho, seu Hélio, um senhor de 69 anos com câncer de próstata que fumava igual uma chaminé. Na verdade, em São Paulo, todo mundo fuma. Muitas vezes eu ficava na parte de fora do prédio escrevendo ou fazendo palavras cruzadas, eu estava tentando parar de fumar de uma vez por todas, quando Roberto aparecia e nós conversávamos.


       Eu, corintiano roxo, brincava com o Palmeiras dele e nós conversávamos sobre a vida. A diferença era gritante de idade, ele com seus 37 anos, eu com meus 23.  Era curioso ver como tínhamos ficado amigos.


        — Sabe, Alan, nós somos muito parecidos, Nós nos preocupamos muito com o presente e com o amanhã — iniciou a conversa.

        — É verdade, somos sempre preocupados com o dia de amanhã. Se haverá dinheiro, se conseguiremos nos sustentar ou sobreviver. Eu tenho muito disso, de prever o que pode acontecer.
        
        — Sim, mas eu estou com 37. Estou há treze anos nessa firma, sol a sol, senão tivesse caído nessa teria procurado outro emprego há tempos. Mas quem ia me empregar?

        — Sim, eu te entendo — eu estava desempregado, e volta e meia não tinha um trocado no bolso.

        — Minha mãe sempre dizia... Procura estudar, aprende inglês, estuda alemão... Mas sem cabeça né, acabei não estudando, agora tô aqui ralando feito um condenado.

        — É um desperdício, Robertão, você é um cara com muito potencial, querendo ou não isso não é para você.

        — Eu sei, eu sei — ele tira o cigarro da mão e acende outro — Mas fazer o quê? Estou sozinho no mundo. Eu ainda moro na casa dos meus pais, meu pai com a saúde que ele tem e a minha mãe também já tem idade. Se fosse filho único seria uma coisa, mas tenho mais dois irmãos, mas ninguém aparece.

         — É complicado.

        — E pensar que eu podia estar em outro lugar...

        Então Roberto contou-me a sua história de vida em detalhes. Ele sentou-se ao meu lado e tragava com cuidado os seus cigarros.

        A família de Roberto era da Áustria, a mãe dele veio ainda muito criança ao Brasil depois da guerra. Fui delicado em tocar nesse tema, mas a verdade é que o assunto era mais nebuloso do que eu imaginava. O avô de Roberto tinha se envolvido com os perpetradores e tinha denunciado muitos vizinhos para os nazistas, por isso a família fugiu da Áustria depois da guerra.

        O avô de Roberto era um alpinista amador que numa de suas escaladas teve um ataque do coração e morreu. Em detalhes, Roberto falou que o coração dele quando foram abri-lo tinha o tamanho de um coração de um boi por causa do clima da montanha; Com isso, a mãe de Roberto acabou vindo para o Brasil.

       Fato ou não, contando-me em detalhes, soltei que era um historiador e ele sorriu dizendo que a mãe dele queria publicar a história num livro:

       — Mas é muito caro, Alan. Ela precisaria de um editor, você sabe que não é fácil... E publicar por conta própria...

       — Sim, eu sei.

       O tio de Roberto tinha seis anos, tinha acabado de voltar da escola com os colegas. Ele era uma criança pequena, de cabelos loiros e olhos azuis, mal sabia falar alemão direito, quando os colegas o pegaram num episódio que ia marcar para sempre a família, Quatro crianças o pegaram contra a vontade e o amarraram nos trilhos da ferrovia que passava do lado da casa da família em Tirol.


        A despeito dos gritos da criança, o resultado foi inevitável. A locomotiva passou com tudo sobre as pernas do menino, foi um dos atos mais bárbaros e gratuitos que poderia-se imaginar. Depois disso, o garoto nunca mais teve a mesma vida, sendo amparado pelo governo austríaco, passou o resto da vida amargando o ônus de ter perdido as pernas quando criança.

         Chegando ao Brasil, a mãe de Roberto teve que trocar os documentos e acabou conhecendo um filho de italianos da Mooca. Foi assim que nasceu a família dele.


          — Só que meu pai, assim, ele era desligadão, quem salvou mesmo foi a minha mãe. Todas as contas que chegavam em casa, ela que cuidava. Ela foi bem rígida conosco inclusive.


           Foi  assim que ele contou sobre o irmão mais velho e da irmã; A irmã de Roberto e ele eram bem ligados, ela se formou na Belas Artes e estudou Artes Plásticas na USP. Embora fosse algo de louvor para a família de Roberto, ela não conseguia emprego de forma alguma até que se tornou professora de artes numa escola do Grande ABC.

          Segundo Roberto, embora ela gostasse muito de artes, e fizesse umas aquarelas sensacionais (inclusive me mostrou alguns desenhos em nanquim), ela nunca conseguiu fazer uma exposição que seja.

          Roberto trabalhou numa locadora por três anos, e encontrou uma menina que ele sempre lembraria para sua vida. Foi nesse tempo que ele teve contato com o cinema e conheceu todos os clássicos, do Laranja Mecânica ao Rambo. Conheceu o rock'n roll e foi realmente um jovem. Mas como todos sabem o VHS ficou com os tempos contados e ele se enfiou num emprego qualquer nos Correios.


         — Você ia ser carteiro?
         — Sim, eu fui no primeiro dia de terno. Acredita? — A essa altura, quinto cigarro — Cheguei lá na entrevista, eu era moleque igual você. O pessoal achou que era um figurão, lá de dentro. Quando viram que eu era igual eles, eles riram de mim. Brancão, bonito, o pessoal começou a marcar em cima.

           — Como assim?

         — No primeiro dia mesmo eu tive que carregar as sacolas cheias de cartas de terno. Acredita nisso, eu era franzino, magro pra caramba, levando 50 quilos de cartas nas costas. É duro.

         — Tem razão.

          — Toda vez  quando eu estava para quinze minutos de sair chegava um monte de envelopes e encomenda pra descarregar do caminhão. Fiquei um ano trabalhando nisso, dei laudo médico falando que não podia levar peso... Nada. Aí me estressei e saí.

          — Porra, Roberto. Você podia estar no serviço público até agora, cara.

          — Sim, mas não dava não. Eles até falaram pra ficar mais um tempinho que eu seria remanejado, mas não tinha como, Alan, era muita ralação.

          — E então?

          — Fiquei um tempo sem trabalhar até cair na Good Job.

           13 anos. Roberto não tinha finais de semana, não tinha Natal ou Ano Novo. Via a família apenas nos dias de folga. Não tinha vida social. Ganhava um salário comercial que apenas servia para interar as contas de casa. Pegava dois ônibus de Santo Amaro para chegar no nosso prédio todos os dias.


          — É não é fácil não.

          Não tinha patrimônio, nem segurança, Não tinha carro, não tinha casa, vivia num quarto na casa dos pais. Não reclamava, mas eu sentia que ele esperava mais.

         — O tempo é perverso, Roberto.

         — Sim e eu escolhi errado.

          Foi assim que viramos amigos, cada um limitado por seu próprio tempo. Volta e meia ele trazia algo de novo, percebi que eu era um foco de distração para ele durante o seu turno e querendo ou não ele se tornava um dos poucos amigos que tinha em São Paulo.

          — Assim, Alan, estou com um problema. Você entende alguma coisa de herança?

          — Alguma coisa aconteceu com seu pai?
        
         — Não, mas assim, eu ando preocupado. Ele anda meio mal de saúde e já tem idade e tem umas coisas acontecendo que me deixam assim...

          O irmão mais velho dele tinha se casado com uma mulher. Essa mulher passou a transformar a vida em família um completo martírio; A cunhada de Roberto não se entendia com a mãe dele e obrigou o irmão a se mudar para um condomínio.

          O caso que o casal ficou morando no prédio por dois anos e o irmão sempre repassava o dinheiro da taxa de condomínio para a esposa que gastava no shopping comprando roupas; Acabou que a despesa ficou alta demais para ser paga e o apartamento foi penhorado. Devido a isso, eles passaram a ter que morar de aluguel numa favela no Capão Redondo.

           Esse episódio deixou as coisas piores do que estavam, não só porque a cunhada ficou como oportunista como o irmão ficou em dificuldades com dois filhos pequenos para criar. Numa das visitas, a cunhada falou aos filhos sobre a casa dos pais de Roberto:

        "Um dia, tudo isso será de vocês, quando os seus avós se forem"

        "E o tio Roberto?"

        "A gente deixa um quartinho para ele. Roberto não se importa, para ele está tudo bom".

         Roberto poderia ficar sem um teto.

        Eu o aconselhei a ter cuidado, porque de fato corria o risco dele ser passado para trás, mas que o irmão dele tinha direitos... A não ser que a mãe dele passasse a casa para o nome dele.  Essa foi a sacada que tivemos.


        Foi uma conversa boa no final das contas.

       — Alan, eu sou o filho do meio, no fim, eu me preocupo muito com os meus pais. Estou lá o tempo todo, minha irmã mesmo abriu mão disso, agora não posso ficar sem um teto para morar assim. Eu sei que ganho pouco, mas dá para sustentar uma casa.

     — Sim, mas você vive muito sozinho, Roberto. Você precisa sair de vez em quando e ter uma vida social, ter filhos, cara.

     — Eu sei, mas não acho a pessoa certa.


     — Eu sei, a vida anda cada vez mais difícil. Mas não desespere, meu velho, tudo vai melhorar.


     Duas semanas depois tive que voltar para Brasília. Querendo ou não, perdia um bom amigo, mas sinceramente, basta apenas conversar casualmente com as pessoas que aparecem no seu caminho para que você se acostume a chamá-las de amigos.

3 comentários:

  1. Olá! Bom, eu sei que em um mundo em que vivemos, um mundo em que vídeos de pessoas se lambuzando em uma banheira com chocolate parecem gerar mais repercussão do que, por exemplo, um vídeo literário bem feito, posts como este - assim como o seu blog em si - parecem não ter espaço, mas eu tenho que dizer que realmente gostei do que li. E não, eu não gostei por ser uma história feliz e sim por ter me feito sentir e lembrar de algumas coisas. Sei lá, meu pai é um Roberto, de certa forma. Trabalhando e trabalhando com coisas que não realmente o agradam ou o agradavam, ganhando pouco, mas não tão pouco para passarmos necessidades básicas (e minha mãe uma "Roberta"). Já estava me sentindo mal por essa minha realidade há anos e também ficava me dizendo para lutar... Para não acabar como eles e sim, correr atrás e quem sabe, até mesmo conseguir proporcionar uma vida melhor para ele e para a minha mãe (pelo tempo que restar a eles) e irmã? Só que o seu post conseguiu reforçar esses meus pensamentos de "lutar" e correr a chance de melhorar significativamente esses aspectos. Obrigado por compartilhar isso. É bobo o que eu disse, mas me senti confortável para compartilhar.

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  2. Fico feliz, Kabuh, por ter proporcionado algum tipo de força para a sua luta diária, eu realmente quis homenagear esse herói solitário e individual que vemos todos os dias e nem sempre é reconhecido. Quanto ao blog, infelizmente é verdade o que você falou, a repercussão da página não é tão grande e poucas pessoas se interessam pelos temas apresentados, mas faço tudo de coração e eu me sinto melhor podendo pelo menos dar um espaço para discutir isso do que ficar no mainstream. De toda forma, eu fico contente e espero que possamos conversar um dia :)

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    1. Se quiser conversar, mande uma mensagem inbox por Facebook, https://www.facebook.com/alanmubel, acho que seria legal conversar de toda forma

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