Prólogo
Na linha de frente do campo de
Borodino desenrolava-se preguiçosamente uma extensa e estreita vala por sobre a
terra dura e um pouco encharcada. Ali, uma extensa trincheira cortava o seio do
barranco por onde Mikhail Kutuzov e Napoleão Bonaparte se digladiaram há cento
e trinta anos atrás.
Cento e trinta anos e outra guerra
aparecia. Com o fracasso das linhas de defesa Molotov, perto da Grande Cidade
de Novgorod e a linha de defesa Stálin frente ao avanço feroz das tropas fascistas,
as longas e vastas planícies da Sarmácia ficaram a mercê da audácia hitlerista,
bem como as florestas da Ucrânia e da Bielorrússia.
Felizmente ira implacável do clima
russo agiu mais cedo, a rasputitsa controlou o avanço alemão que poderia
ter sido fatal nesses dias negros, dando tempo para que se desenrolasse uma
linha de defesa na grande capital, o centro da Mãe-Rússia. Moscou.
Com as tomadas de Kiev, Kharkov, Sebastopol e
Novgorod, a situação se mostrava bem clara que tinha sido um erro ter confiado
no pacto de não-agressão com os alemães, de maneira que Leningrado resistiria
bravamente enquanto Moscou teria que se levantar mais uma vez.
Moscou inteira foi mobilizada, pelas
avenidas, pelos becos e ruas, tudo o que se via era a mobilização de homens
para lutarem na frente, com rifles em falta, resistindo como podiam ao rigor do
Inverno de 1941-42, que vinha sendo o mais rigoroso até então. As crianças
saíam das escolas para cavar trincheiras na terra endurecida pelo Inverno, as
mães iam às fábricas para construir o armamento usado na guerra, enquanto os
pais, esses sim se agrupavam nos batalhões de voluntários no Bairro Operário.
O medo quase irracional da derrota
contaminou o seio da sociedade soviética, de maneira que Moscou era o único
grande baluarte que ainda poderia resistir na Europa em ocupação, de maneira
que introjetam-se até hoje os medos e as desconfianças da guerra na sociedade
russa atual.
São dias difíceis em Moscou; dias
que não podem ser esquecidos, mesmo sob o esforço inconsciente de nossa parca
memória de trair nossas lembranças. Afinal, quem se lembrará da multidão
faminta clamando por pão na rua Gorky? Que se lembrará da Central de
Alistamento na Arbat? Tão poucos.
Mas quem poderá esquecer o desespero
e o medo nos olhos? E o frio, sobretudo o frio. São dias difíceis em Moscou,
bem difíceis.
Conto I
São dias negros na planície
moscovita, nesse barranco junto ao rio Moskva desenvolve-se o sagrado Kremlin
de maneira tão imponente nesses difíceis meses de guerra. A cidade está cada
dia mais fria e melancólica, a neve cai diante os nossos próprios olhos
enquanto vagamos vagarosamente na fila por um pouco de pão.
O frio corta-nos os ossos, o vento
siberiano agride nossas têmporas tão gastas enquanto a úlcera corrói nossos
estômagos vazios. O oficial da Gosplan olha para nós com desprezo, mantém-se
insensível diante os constantes apelos das mães por um pouco mais de pão.
Sensibilidade é uma palavra que foi
varrida do dicionário, foi expurgada tal como o pessoal dos processos da década
de 1930. Compaixão é outra palavra tão perigosa que nem merece ser citada. Ela
é tão perigosa que pode levar a morte.
São dias tenebrosos desde que os
fascistas alemães invadiram traiçoeiramente nossa pátria e varreram tudo o que
estava à sua frente em questão de semanas;
Ninguém, da Ucrânia aos Urais, consegue passar uma noite de sono
tranquilo sem se lembrar que os alemães podem um dia aparecer e destruir tudo o
que temos mais direito: nossas vidas.
Ouvimos todas as noites o barulho
dos aviões inimigos sobrevoando nossa capital; Ouvimos o modo como a nossa
Força Aérea e as brigas anti-aéreas tentarem inutilmente digladiar contra os
inimigos da nossa Pátria. A correria, os gritos. Todos desesperados tentam se
proteger no metrô, de maneira que as estações ficam apilhadas de pessoas.
Descobri essa manhã que os alemães
criaram uma rádio em russo divulgando notícias falsas para nos enganar. Hoje
pela manhã divulgaram que o Kremlin tinha ido ao chão após o maciço bombardeio
alemão. É claro que eu não acreditei nisso e tive que olhar pela janela. Mesmo
que o nosso exército não seja invencível, especialmente agora, desde que a Rússia é a Rússia o Kremlin sempre se
manteve de pé; Napoleão nunca conseguiu por abaixo algo que estava em nosso
espírito.
Entretanto, mesmo com essa série de
mentiras, até que a rádio toca umas músicas boas. Hoje mesmo tocou Stravinsky.
Mas quando começa a parte do noticiário a gente coloca na Rádio Moscovita.
Acredite bem em mim quando eu digo
que são dias difíceis, dessa fila, em meio ao inverno moscovita, segurando a
minha ushanka para que não se perca junto ao vento, voltando sujo de graxa da
fábrica, eu digo que eu sinto um peso no coração quando eu lembro que tudo que
a guerra produz é frio e fome. Isso na Rússia só faz crescer o nosso medo da
morte.
Queria poder chorar, mas lembro de
que nesse frio cortante minhas lágrimas iriam escorrer pelas minhas rugas, e
também pela minha barba, e terminaram por congelar tudo em volta,
principalmente o meu coração.
Desolação — tudo que eu vejo ao
andar por essas ruas. Os balões meteorológicos descendo pela rua Kirov, os
batalhões de milicianos marchando para fora da cidade velha.
Ali no descer da rua Tverskaia, pode-se encontrar o Café Pushkin
fechado. Não há ninguém que se possa olhar nessas ruas. Tudo o que eu vejo são
cadáveres ambulantes: mulheres esquálidas, crianças doentes e jovens soldados
indo ao encontro da Morte.
Esses mesmos soldados ontem brincavam junto ao bairro operário, na
Krasnaia Presnia prospekt, na rua Barricadnaya ou mesmo na área do porto na
Krasnopresnensky. Esses meninos outrora formaram gangues nas ruas, órfãos de
pai e mãe muitas vezes não tinham mais nada a fazer do que cometer alguns
delitos. Hoje vão todos esfarrapados nas carrocerias dos tanques e dos tratores
dos Kolkozes locais. Marcham lado a lado
nas fileiras de aço para o moedor de carne.
Vês como é triste presenciar tudo isso? O pânico que se respira em
meio ao frio. Ontem mesmo houve distúrbios na rua 1905 a. por mais pão, o NKVD
respondeu por sua própria sutileza, à bala.
Um oficial do NKVD, um jovem rapazola de uns vinte e poucos anos de
idade, que nem tinha barba direito, fuzilou a todos com os olhos e praguejou
enquanto atirava para o alto:
“— Não têm vergonha? Que querem que façamos? Que entreguemos tudo
para os alemães? Vocês são agitadores, sabotadores e inimigos do Povo. Já
estamos fazendo tudo que é possível, mas vocês devem entender bem a mensagem do camarada Stálin, essa uma luta
até o final e em lutas assim acabam-se fazendo sacrifícios. Ele continua em
Moscou enquanto muitos de vocês pensam em sair. O que há com vocês?”
Um velhinho de aspecto um pouco sombrio, pela velhice e pela fome
também, se aproximou do oficial e olhando-o de aspecto tenro e humilde, como se
fosse o seu próprio pai, disse em um tom particularmente fraco:
— Nós temos fome, camarada tchequista. Nós só temos isso. Dê-nos um
pouco mais de pão, pois sem isso não podemos fazer nada.
O oficial não expressou
nenhuma mudança de expressão e aproveitando-se do tumulto no meio da
multidão fuzilou à sangue-frio o velhinho com a sua pistola Nagant. O velhinho
caiu de joelhos no chão e olhou sem acreditar no que o rapaz tinha feito.
Cuspiu um pouco de sangue e desabou no asfalto com o chute no rosto que levou
do tchequista.
— É isso que vocês querem? Continuem a trair a nossa Mãe-Pátria e
será isso que acontecerá a todos vocês.
O corpo tremelicou um pouco com o frio, mas depois de alguns
minutos ficou inerte, ao contrário da multidão que demorou a ser contida por
cinco ou seis tchequistas armados até os dentes.
São dias negros em Moscou, eu disse que eram. Jovens matando os
velhos, mães implorando por um pouco mais de pão. Medo, dor, desespero,
sofrimento, e sobretudo... Frio, muito frio.
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