quarta-feira, 14 de junho de 2017

Contos Moscovitas



Prólogo

            Na linha de frente do campo de Borodino desenrolava-se preguiçosamente uma extensa e estreita vala por sobre a terra dura e um pouco encharcada. Ali, uma extensa trincheira cortava o seio do barranco por onde Mikhail Kutuzov e Napoleão Bonaparte se digladiaram há cento e trinta anos atrás.
            Cento e trinta anos e outra guerra aparecia. Com o fracasso das linhas de defesa Molotov, perto da Grande Cidade de Novgorod e a linha de defesa Stálin frente ao avanço feroz das tropas fascistas, as longas e vastas planícies da Sarmácia ficaram a mercê da audácia hitlerista, bem como as florestas da Ucrânia e da Bielorrússia.
            Felizmente ira implacável do clima russo agiu mais cedo, a rasputitsa controlou o avanço alemão que poderia ter sido fatal nesses dias negros, dando tempo para que se desenrolasse uma linha de defesa na grande capital, o centro da Mãe-Rússia. Moscou.

            Com as  tomadas de Kiev, Kharkov, Sebastopol e Novgorod, a situação se mostrava bem clara que tinha sido um erro ter confiado no pacto de não-agressão com os alemães, de maneira que Leningrado resistiria bravamente enquanto Moscou teria que se levantar mais uma vez.

            Moscou inteira foi mobilizada, pelas avenidas, pelos becos e ruas, tudo o que se via era a mobilização de homens para lutarem na frente, com rifles em falta, resistindo como podiam ao rigor do Inverno de 1941-42, que vinha sendo o mais rigoroso até então. As crianças saíam das escolas para cavar trincheiras na terra endurecida pelo Inverno, as mães iam às fábricas para construir o armamento usado na guerra, enquanto os pais, esses sim se agrupavam nos batalhões de voluntários no Bairro Operário.
            O medo quase irracional da derrota contaminou o seio da sociedade soviética, de maneira que Moscou era o único grande baluarte que ainda poderia resistir na Europa em ocupação, de maneira que introjetam-se até hoje os medos e as desconfianças da guerra na sociedade russa atual.
            São dias difíceis em Moscou; dias que não podem ser esquecidos, mesmo sob o esforço inconsciente de nossa parca memória de trair nossas lembranças. Afinal, quem se lembrará da multidão faminta clamando por pão na rua Gorky? Que se lembrará da Central de Alistamento na Arbat? Tão poucos.
            Mas quem poderá esquecer o desespero e o medo nos olhos? E o frio, sobretudo o frio. São dias difíceis em Moscou, bem difíceis.




Conto I

            São dias negros na planície moscovita, nesse barranco junto ao rio Moskva desenvolve-se o sagrado Kremlin de maneira tão imponente nesses difíceis meses de guerra. A cidade está cada dia mais fria e melancólica, a neve cai diante os nossos próprios olhos enquanto vagamos vagarosamente na fila por um pouco de pão.

            O frio corta-nos os ossos, o vento siberiano agride nossas têmporas tão gastas enquanto a úlcera corrói nossos estômagos vazios. O oficial da Gosplan olha para nós com desprezo, mantém-se insensível diante os constantes apelos das mães por um pouco mais de pão.

            Sensibilidade é uma palavra que foi varrida do dicionário, foi expurgada tal como o pessoal dos processos da década de 1930. Compaixão é outra palavra tão perigosa que nem merece ser citada. Ela é tão perigosa que pode levar a morte.

            São dias tenebrosos desde que os fascistas alemães invadiram traiçoeiramente nossa pátria e varreram tudo o que estava à sua frente em questão de semanas;  Ninguém, da Ucrânia aos Urais, consegue passar uma noite de sono tranquilo sem se lembrar que os alemães podem um dia aparecer e destruir tudo o que temos mais direito: nossas vidas.

            Ouvimos todas as noites o barulho dos aviões inimigos sobrevoando nossa capital; Ouvimos o modo como a nossa Força Aérea e as brigas anti-aéreas tentarem inutilmente digladiar contra os inimigos da nossa Pátria. A correria, os gritos. Todos desesperados tentam se proteger no metrô, de maneira que as estações ficam apilhadas de pessoas.

            Descobri essa manhã que os alemães criaram uma rádio em russo divulgando notícias falsas para nos enganar. Hoje pela manhã divulgaram que o Kremlin tinha ido ao chão após o maciço bombardeio alemão. É claro que eu não acreditei nisso e tive que olhar pela janela. Mesmo que o nosso exército não seja invencível, especialmente agora, desde   que a Rússia é a Rússia o Kremlin sempre se manteve de pé; Napoleão nunca conseguiu por abaixo algo que estava em nosso espírito.
            Entretanto, mesmo com essa série de mentiras, até que a rádio toca umas músicas boas. Hoje mesmo tocou Stravinsky. Mas quando começa a parte do noticiário a gente coloca na Rádio Moscovita.
            Acredite bem em mim quando eu digo que são dias difíceis, dessa fila, em meio ao inverno moscovita, segurando a minha ushanka para que não se perca junto ao vento, voltando sujo de graxa da fábrica, eu digo que eu sinto um peso no coração quando eu lembro que tudo que a guerra produz é frio e fome. Isso na Rússia só faz crescer o nosso medo da morte.
            Queria poder chorar, mas lembro de que nesse frio cortante minhas lágrimas iriam escorrer pelas minhas rugas, e também pela minha barba, e terminaram por congelar tudo em volta, principalmente o meu coração.
            Desolação — tudo que eu vejo ao andar por essas ruas. Os balões meteorológicos descendo pela rua Kirov, os batalhões de milicianos marchando para fora da cidade velha.

Ali no descer da rua Tverskaia, pode-se encontrar o Café Pushkin fechado. Não há ninguém que se possa olhar nessas ruas. Tudo o que eu vejo são cadáveres ambulantes: mulheres esquálidas, crianças doentes e jovens soldados indo ao encontro da Morte.
Esses mesmos soldados ontem brincavam junto ao bairro operário, na Krasnaia Presnia prospekt, na rua Barricadnaya ou mesmo na área do porto na Krasnopresnensky. Esses meninos outrora formaram gangues nas ruas, órfãos de pai e mãe muitas vezes não tinham mais nada a fazer do que cometer alguns delitos. Hoje vão todos esfarrapados nas carrocerias dos tanques e dos tratores dos Kolkozes  locais. Marcham lado a lado nas fileiras de aço para o moedor de carne.

Vês como é triste presenciar tudo isso? O pânico que se respira em meio ao frio. Ontem mesmo houve distúrbios na rua 1905 a. por mais pão, o NKVD respondeu por sua própria sutileza, à bala.
Um oficial do NKVD, um jovem rapazola de uns vinte e poucos anos de idade, que nem tinha barba direito, fuzilou a todos com os olhos e praguejou enquanto atirava para o alto:
“— Não têm vergonha? Que querem que façamos? Que entreguemos tudo para os alemães? Vocês são agitadores, sabotadores e inimigos do Povo. Já estamos fazendo tudo que é possível, mas vocês devem entender bem  a mensagem do camarada Stálin, essa uma luta até o final e em lutas assim acabam-se fazendo sacrifícios. Ele continua em Moscou enquanto muitos de vocês pensam em sair. O que há com vocês?”
Um velhinho de aspecto um pouco sombrio, pela velhice e pela fome também, se aproximou do oficial e olhando-o de aspecto tenro e humilde, como se fosse o seu próprio pai, disse em um tom particularmente fraco:
— Nós temos fome, camarada tchequista. Nós só temos isso. Dê-nos um pouco mais de pão, pois sem isso não podemos fazer nada.
O oficial não expressou  nenhuma mudança de expressão e aproveitando-se do tumulto no meio da multidão fuzilou à sangue-frio o velhinho com a sua pistola Nagant. O velhinho caiu de joelhos no chão e olhou sem acreditar no que o rapaz tinha feito. Cuspiu um pouco de sangue e desabou no asfalto com o chute no rosto que levou do tchequista.
— É isso que vocês querem? Continuem a trair a nossa Mãe-Pátria e será isso que acontecerá a todos vocês.
O corpo tremelicou um pouco com o frio, mas depois de alguns minutos ficou inerte, ao contrário da multidão que demorou a ser contida por cinco ou seis tchequistas armados até os dentes.


São dias negros em Moscou, eu disse que eram. Jovens matando os velhos, mães implorando por um pouco mais de pão. Medo, dor, desespero, sofrimento, e sobretudo... Frio, muito frio.

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