Uma
série de autores e acadêmicos tentam discutir o aspecto da Shoah em sua organização
com o caráter funcionalista e intencional.
Um desses trabalhos que são importantes de salientar é o de Mark
Roseman, Os Nazistas e a Solução final. A conspiração de Wannsee: do
assassinato em massa ao genocídio, o qual apresenta aspectos relevantes para o
estudo sobre o nazismo, situado no meio termo entre o intencionalismo e
funcionalismo; Roseman, em seu capítulo 3,
apresenta que os nazistas e sobretudo Hitler não davam sinais de que
tinham algo planejado com relação aos judeus antes de 1941, bem como não tinham
elaborado nada parecido com o que viria a ser caracterizado como Holocausto
(Shoá).
Embora tenha havido as conversas
sobre o que fazer com os judeus a partir do Protocolo de Wannseen, desde
deportá-los e exterminá-los da face da Europa, Hitler, para o autor escondeu
muito bem suas intenções com relação aos judeus. Embora muito tenha se escrito
sobre Hitler de testemunhas oculares, não se sabe quando ele realmente cogitou
a ideia do extermínio sistemático das populações judaicas.
As declarações de Hitler são
ambíguas, mas muitos historiadores consideram que o discurso de janeiro de 1939
como um marco para as pretensões dos nazistas de exterminarem os judeus, mas
isso é questionado pelo corpo do texto, que tem a intenção de mostrar que os
nazistas não tinham um plano definido de exterminar os judeus de início, mas
que havia várias nuâncias às quais variavam entre a deportação dos judeus para
áreas longínquas e inóspitas até certa recusa de se fuzilar judeus alemães.
A expulsão dos judeus foi algo
cogitado pelas altas lideranças nazistas até meados de 1941, quando se cogitou
ou por uma expulsão dos judeus para Madagascar ou para o interior da Sibéria.
Primeiramente se trabalhou com a ideia de concentrar a população judaica ao
redor dos pântanos de Pripet (que hoje constituem uma parcela inóspita não só
por seu aspecto pantanoso, mas pelo próprio desastre de Chernobyl), mas a
concentração de judeus na região deixou os governantes locais reticentes;
Cogitou-se a formação de um gueto em Łodż, entretanto, não tardou muito para
que o local ficasse superpopuloso. Os governantes dos territórios conquistados
a Leste com o passar do tempo se mostraram cada vez menos dispostos a aceitar
as transferências populacionais para esses territórios, de modo que Himmler
numa certa altura teve que autorizar a morte de 100 000 judeus para que um
governante aceitasse mais transferências para a região.
É de se considerar que no corpo do
texto se tenta apresentar que a eminência da guerra com a União Soviética não
tenha só levado a luta contra o bolchevismo, a busca por terras férteis e
petróleo, o autor não desconsidera isso, mas ele observa que em torno de 1941
havia o desejo de se solucionar o problema de superpopulação na fronteira oriental deportando os judeus da
Europa para a Sibéria (talvez tenham se inspirado na ideia de Stálin de criar
uma “Região Autônoma Judaica no Birobijan”), nesse meio tempo se considerava
que no meio das deportações muitos judeus morressem.
O próprio Heydrich solicitava que os
judeus tchecos que fossem deportados para a Lituânia e os Países Bálticos em
geral fossem do grupo dos “imprestáveis”, os doentes e inválidos, de modo que
esses morreriam mais depressa, e calculava que no meio do transporte haveria
alguns judeus que morreriam antes do embarque.
De fato, alguns governantes gerais
chegaram a declarar que não se importavam se deportassem os judeus para
Madagascar ou para a Sibéria contanto que eles deixassem o solo do “Reich”.
Entretanto os eventos relacionados ao ano de 1941, ano-chave da Grande Guerra
Patriótica, como os historiadores soviéticos gostavam de rotular, frustraram os
planos de uma deportação em massa de judeus para a Sibéria.
Para Roseman, a deportação dos
alemães do Volga por Stálin teria enfurecido Hitler e de maneira punitiva ele
tenha cogitado tomar medidas mais drásticas com relação aos prisioneiros de
guerra soviéticos e os judeus, mas deve-se lembrar que as deportações
promovidas por Stálin, para estudiosos de União Soviética, representaram um
caráter preventivo para que não houvesse qualquer instabilidade na região
pró-nazista; Em todo caso, Roseman pontua que em meados de 1941, Hitler começa
a cogitar uma eliminação física dos judeus.
Embora tenha sido da Alta Cúpula do
Partido que Eichmann e Hess tenham ouvido que o campo de Auchwitz seria usado
como campo de extermínio. O processo de eliminação dos judeus não partiu das
lideranças, mas dos escalões mais baixos do Wermarcht e da SS. Nisso se pode
concluir que alguns membros dos baixos escalões viam como possibilidade de
ascensão o extermínio de judeus no front. Nesse caso figura-se o exemplo do
comandante na Sérvia que postulou uma lei cesariana que para cada um oficial
nazista morto, cem judeus seriam mortos.
Nisso, embora Roseman diga que o
processo tenha antevido o próprio Hitler, este tinha plena ciência do que vinha
acontecendo nos escalões mais baixos do Exército mas não tinha feito nada para
impedir. O problema desse tipo de análise é que ela pode levar não só a
conclusão (que acredita-se ser do autor) de que Hitler foi complacente com os
fuzilamentos sumários, mas que Hitler poderia ter pensado que uma intervenção
nos escalões do Exército poderia gerar uma insubordinação não desejável no esforço
de guerra.
É de se pontuar, que não se esquece
do papel de Hitler na construção do Holocausto, mas se coloca também na equação
o papel das estruturas formadas do regime.
Quanto aos fuzilamentos sumários,
eles figuraram tão recorrentes nos meses iniciais da guerra, sobretudo na
tomada da parte ocidental da Ucrânia e Bielorrússia, mas Himmler passou a
cogitar o uso de câmaras de gás, como meio de reduzir os custos da matança. As
primeiras câmaras foram usadas na Ucrânia, em localidades como Galich e eram
móveis, utilizando o escapamento de veículos do front; Posteriormente o
processo de matança se tornou bastante sistematizado.
Embora Hitler não tenha expressado
inicialmente em seus discursos de maneira enfática a eliminação sistemática dos
judeus anteriormente, ele abraçou o movimento que se fazia em torno disso. De
modo que se demonstra que o processo de matança começou pela própria estrutura
do regime, mas foi abraçada por Hitler e não teria ganhado tamanha projeção se não
fosse pelo próprio “Führer”.
O esforço do texto em mostrar a
Solução Final como algo não planejado desde o início, mas como algo que foi
levado em decorrência das situações e das estruturas do regime e posteriormente
abraçado pelo aparato e pela Alta Cúpula do Partido Nazista ajuda a explicar o
modo como se desenvolveu a ideia relacionada ao extermínio dos judeus, mas
também traça um perímetro perigoso em reduzir a parcela de culpa de indivíduos
como Hitler, Himmler ou Heydrich.
Não parece ser tal pretensão do
autor, ele destaca que Himmler ou Heydrich estavam intimamente envolvidos com o
processo e embora pouco esteja documentado sobre o papel de Hitler nesse
processo, ele existia pelo menos no nível de ciência do que estava acontecendo.
Entretanto questiona-se do fato que o que os nazistas fizeram foi “ a
disseminação e a modificação do experimento soviético” que ocorreram de maneira
mais improvisada e fragmentada, de fato, embora tenha havido a inspiração das
deportações ocorridas na União Soviética, os nazistas criaram algo novo (e nem
por isso deixaria de ser nefasto) conforme as situações que se apresentavam, a
sistematização categórica da morte, isso nem na URSS existia.
É conveniente salientar que
retirando esse aspecto um tanto complicado na estrutura do texto a pretensão de
mostrar a Solução Final como um processo construído a partir dos acontecimentos
a partir de 1941 é válida e indica que o regime nacional-socialista não possuía
total controle sobre a sua estrutura ideológica e organizacional, mas que ao
antever o processo que se iniciava com os fuzilamentos compulsórios na Sérvia e
na ocupação da União Soviética, o regime demonstrou um silêncio; quando os eventos se tornaram cada vez mais
generalizados e a guerra se tornou cada vez mais complexa, a Alta Cúpula do
Partido abraçou a ideia de se eliminar de maneira categórica os judeus,
inicialmente com o fuzilamento, e o afogamento nos pântanos de Pripet, depois o
uso das câmaras de gás.
Himmler e Heydrich se tornaram
expoentes e apoiadores categóricos da Solução Final, Goebbels
e Hitler revestiram os seus discursos enfatizando que “a limpeza racial
da Europa” estaria sendo feita com a liquidação dos judeus;
Por esses aspectos, e outros relacionados, o texto atinge sua
pretensão de mostrar o processo de matança como construído e apropriado pelo
regime, que teve inspiração no que vinha acontecendo na União Soviética, mas
tomou um caráter particularmente próprio. E mostra de maneira categórica que os
nazistas não tinham um plano definido do que fazer com os judeus inicialmente.
De toda forma, os batalhões
policiais, conforme o trabalho de Goldhagen, se tornaram agentes do genocídio
durante a invasão da União Soviética em 1941, iniciando operações (inicialmente
de improviso, depois planejadas) contra as populações judaicas do interior da
Bielorrússia e da Ucrânia.
Dentre essas operações, os perpetradores (termo utilizado Robert Wistrich
para designar os membros do Batalhão 101, os regimentos SS e eventuais
auxiliares do extermínio judaico dentro da Wermarcht) selecionavam as famílias
a serem deportadas para os campos de concentração na Polônia, matavam aqueles
que não poderiam se locomover, como velhos e crianças (inclusive bebês) nas casas, e quando ultrapassavam a
cota ou muitas vezes para que não houvessem resistências, ordenavam que as
famílias judias fossem ao bosque mais próximo do vilarejo.
Ali, de forma sistemática, ordenavam
que os judeus cavassem valas (às vezes com as próprias mãos), uma operação que
levava a tarde inteira, e depois que o serviço era completo, ordenavam que os
pais ficassem nus na frente de seus filhos (o que é um tabu e uma humilhação
até hoje para a comunidade judaica) e depois atiravam contra eles na nuca.
Muitas vezes, os perpetradores erravam e os feridos acabavam se misturando aos
mortos que caíam um em cima dos outros até as valas estarem completamente
cheias.
Nisso, os alemães, embriagados,
continuavam o seu festival de horrores até a noite, quando finalmente
deixavam os corpos ao relento e
desapareciam com os seus companheiros para saquear outro vilarejo da mesma
forma. A brutalidade com o que os alemães lidavam com os judeus surpreendia até mesmo os
superiores, alguns perpetradores voltavam à Alemanha com stress pós-traumático
e outros acabavam tendo uma série de transtornos mentais, foi então que a
cúpula do Partido Nazista começou a pensar em outras opções para o extermínio.
Uma delas foi a utilização dos hiwis,
simpatizantes locais, que passaram a fazer o trabalho sujo. O antissemitismo na
Polônia e na Ucrânia sempre foi muito forte, e os alemães não tiveram muita
dificuldade em conseguir mão-de-obra para os seus projetos malignos, esses
embriagados, começaram a dar problemas e acabavam muitas vezes vazando as
informações do extermínio dos judeus para as populações locais.
As câmaras de gás, segundo Wistrich,
foram usadas pelo Batalhão 101, como uma forma impedir o contato entre o
assassino e sua vítima e assim, além de sistematizar o processo (e torná-lo
mais rápido), era um meio de desumanizar ainda mais o extermínio. As primeiras
câmaras de gás foram utilizadas em caminhões-baú, do próprio Wermarcht no front
da Rússia. Os alemães utilizavam o monóxido de carbono gerado pelo motor dos
caminhões como forma de exterminar os judeus sem precisarem disparar um rifle à
queima-roupa.
Os resultados para os alemães foram
satisfatórios, e quando Himmler autoriza a implantação disso nos campos de
concentração, o resultado foi a criação de fábricas da morte por todo o
território ocupado pelos alemães. O Holocausto (Shoah) seria sem dúvida um dos
mais cruéis genocídios que a humanidade poderia ter feito em toda a sua
história, a barbárie desses atos passaram a ser fruto de mera estatística, com
cotas sendo seguidas minunciosamente por burocratas, como Eichmann, que quando
foram presos, não sentiam remorso nem culpa. "Eles apenas seguiam
ordens".
Eis uma coisa que sempre estará em
pauta, qual a verdadeira parcela de culpa do cidadão alemão da época no
Holocausto. Hannah Arendt diria que a banalização do mal foi a verdadeira
produtora do Holocausto, que Eichmann e outros assassinos em massa eram
produtos de um regime impessoal que naturalizava o genocídio com a roupa de sua
ideologia e de sua própria burocracia, mas a verdade é que não tem como dizer
que o cidadão alemão que morava do lado desses campos não tinha conhecimento do
que acontecia ali.
Não que vazassem informações, ou deixassem
de vazar, o fato é que esses campos de extermínio deixavam rastros muito
evidentes para qualquer cidadão racional. Seja a cortina de fumaça negra dos
fornos onde os corpos eram incinerados, seja o fato de que nenhum prisioneiro
sequer voltou para dar notícia; A máquina de destruição alemã foi uma das mais
eficientes da história, produziam cadáveres na mesma medida que produziriam
automóveis depois da guerra ou remédios. Uma linha industrial sobre a morte.
Na verdade, toda essa sistematização
é a aplicação do modelo fordista, com a linha de produção, de cotas e
rendimentos de quantas pessoas iriam ser mortas e como a máquina de extermínio
iria se sustentar com o trabalho forçado dos sobreviventes e com os pertences
pessoais dos mortos.
A barbárie também se esconde na tecnologia e um aperfeiçoamento do
sistema produtivo, como o fordismo, passa a ser utilizado como meio e
força-motriz para o extermínio de pessoas. A Shoah é uma marca de todo um
sistema desumano criado pela ganância e a intolerância, pelo preconceito e
unicamente, pelo o ódio. Um sistema que alimentou uma guerra e sim, produziu
muitas riquezas para os assassinos. Caim não foi banido apenas por ter matado o
seu irmão, ele foi banido por ter se fingido de inocente.
Culpa é uma coisa que os perpetradores nunca realmente sentiram, e
agora, 72 anos depois do término da Segunda Guerra, nada além de seus ossos
restaram e a amarga lembrança que seu retorno sempre pode ser presente quando a
extrema-direita ressuscita o seu discurso de ódio contra os imigrantes e
transforma o convívio democrático em novos cerceamentos da liberdade, em nome
da "segurança",
O Holocausto não pode ser esquecido,
da mesma forma que sempre seremos obrigados a fazer uma reflexão do que o
totalitarismo pode gerar em cidadãos comuns por um conjunto de mentiras
reproduzidas ad nauseam e qual a verdadeira parcela de culpa que esses
indivíduos tinham individualmente nesses crimes. Ali nem a moral cristã, nem a
ética, ou a filosofia lhe isentaram o papel de assassinos, afinal, toda a sua
brutalidade estava amparada por um conjunto de leis.
Thomas Hobbes tem razão quando somos mais atentos, verdadeiramente "O homem é o lobo do próprio homem", mesmo que você não reconheça, mas há um lado brutal em todo cidadão comum quando se aceita a tortura como meio legítimo de coesão social e manutenção da lei. Quando se negligencia uma coisa tão grave como a fome, se institui querendo ou não uma desumanização de um indivíduo por sua condição social e diretamente cria-se o papel de carrasco com os mais vulneráveis. Quando não se reconhece direitos aos LGBTs ou mesmo aos imigrantes, abre-se o precedente para que violem os seus direitos e os exterminem indiscriminadamente como animais, nas ruas, nas escolas, nos hospitais. Já que não têm espaço, já que não podem ser tratados como iguais, banaliza-se as suas mortes.
Querendo ou não, o nazismo ocorreu sobre o julgo de um expansionismo alemão, de uma sociedade alemã que anteriormente a isso era uma sociedade democrática. Mas quando negamos às minorias o direito de serem ouvidas e de fazerem parte de nossa própria sociedade, somos tão perversos quanto os nazistas.
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