Olhando para o
céu azulado, límpido, com flocos remanescentes dos feixes do gigante Sol, um
velho, um senhor meio enrugado que andava encurvado, aparentando ser mais velho
do que era, passeava com o seu netinho no centro da cidade no Volga,
Volgogrado.
—
Aqui, meu neto, ficava a fonte Barmaley, uma fonte de pedra esculpida em torno
dessa praça para celebrar um conto infantil, escrito por um escritor russo,
Korney Chukovsky.
—
Onde, vovô? Eu não vejo nada.
—
Ficava aqui, ela ficava exatamente aqui onde estou. Era uma fonte linda,
tinha no alto seis criancinhas dançando em volta de um poderoso jacaré. Veja,
veja, tenho uma foto dela.
O
velho mostrou-lhe então uma fotografia meio envelhecida, já um pouco gasta, da
dita fonte que agora não mais existia.
— Essa é a fonte Barmaley, meu neto; Eu e meus pais costumávamos passear muito
em volta dela, e quando dava domingo, as crianças pulavam na água para se
refrescar ou mesmo se esconder no pique-esconde.
— O que aconteceu com ela, vovô? — Inquiriu o netinho curioso.
— Algo terrível, meu neto. A minha infância perdeu sua inocência ali.
O velho começou a contar-lhe uma história árdua e difícil sobre o que viria a
seguir.
— Eu tinha oito anos, eu ainda era uma criança quando vim para Stalingrado pela
primeira vez, para morar; Meu pai era violinista, o som das operetas dele
continua na minha cabeça... Korsakov, Balakiev, os grandes sabe? — O neto não
compreendeu o que o avô dissera, de certo não sabia essa parte da música — Ah!
Que estou falando, você é muito novo para entender sobre música, talvez não,
mas os grandes nacionalistas, os grandes músicos tradicionais. Com a invasão
nazista em Stalingrado, para o nosso povo, esse era um simbolo de esperança,
para os nazistas, de resistência.
— Do que está falando, vovô?
— Um dia, um dia, a Gestapo bateu em nossa casa, uma patrulha qualquer,
pensamos nós, querendo um pouco de comida, mas não era isso. Um oficial entrou
em nossa casa com toda a brutalidade, arrombando a porta bem ali, na minha
frente. Minha mãe correu em minha direção e me escondeu no armário da cozinha,
antes que eles entrassem.
— E depois, vovô? E depois?
Viktor Gadzhiev, engoliu seco, tentando lubrificar a sua garganta já um
tanto gasta, a voz lhe falhava naquele ponto... Medo ou cansaço? Talvez os
dois, mas em todo caso Gadzhiev tomou coragem e retomou sua história.
— O oficial, um oficial de olhos tão escuros que chegavam a trazer medo
ao mais forte dos soldados, com uma cicatriz no rosto, fitou a minha mãe,
gritando algo em alemão... Minha mãe não falava alemão, então levou um golpe na
cabeça e caiu no chão... Eles estavam a procura do meu pai.
O neto fitou-lhe com olhos arregalados, um tanto assombrado com a naturalidade
com que o seu avô contava-lhe aquela tenebrosa história... Uma história tão
dura, que sequer podia transpassar mais emoção do que o avô transpassava.
— Eles entraram no quarto dos meus pais, no meio da noite, procurando o meu
pai... Quando eles o encontraram, dormindo na cama, eles cortaram-lhe a
garganta sem cerimônia, eu pude ouvir da cozinha os gritos da minha mãe
chorando. O oficial voltou com os seus encarregados para a sala e
encontrou minha mãe imobilizada por um SS pelo pé, e disse em russo muito ruim:
"Agora, eu já eliminar o seu marido, vamos terminar tudo isso de uma vez,
Russiche Schein!"
O velho,
outra vez lubrificou suas gastas cordas vocais com a saliva de sua boca, mas
mesmo assim, pode-se perceber que a sua voz estava trêmula naquele ponto,
quando retomou a fala:
—
Eles cortaram, rasgaram as roupas da minha mãe, na minha frente... E eles a
estupraram, um a um, enquanto cuspiam, a xingavam, a humilhavam... Nenhum
daqueles terríveis momentos saem da minha cabeça, meu pai, morto naquela cama,
como um animal, cheio de sangue, e minha mãe, sendo violentada por aqueles sete
malditos chucrutes e sendo duramente estrangulada na minha frente depois
disso...
Gadzhiev soltou um tímida lágrima no canto do olho esquerdo, um lágrima que
passaria despercebido senão tivesse tomado um caminho tão sinuoso nas rugas do
seu rosto e caisse por fim na cabeça do seu pequeno neto...
—
Eu era uma criança, uma simples criança, eu não sabia o que era vida até aquela
hora. Eu podia ter feito algo, eu podia ter salvado meus pais, mas não eu
fiquei lá, no armário, imóvel, enquanto aqueles malditos faziam barbaridades
com os meus pais... Desde esse dia não consigo dormir sem me lembrar do que
fizeram com os meus pais.
O pequeno Anton, uma pequena criatura, de não mais que nove anos de idade,
abraçou o avô no tronco e com dificuldade ergueu seus olhos em direção ao
choroso avô.
—
Não chore, vovô, não chore, o senhor não tinha culpa. O senhor não tinha culpa.
O velho
abaixou-se e abraçou o seu querido e único neto naquela praça em Volgogrado,
Gazhiev continuava a chorar, mas não tão discretamente quanto antes, e agora
soluçava de dor, por causa das lembranças da guerra.
Conteve com
dificuldade as suas lágrimas e em seguida levantou-se e começou a caminhar com
o neto pela Prospekt (Avenida).
— Eu corri,
por essa mesma avenida, quando os alemães saíram do apartamento dos meus pais;
Corri sem rumo até encontrar aquela fonte abandonada, onde me sentia mais
seguro. Entrei nela e me escondi e foi lá que passei a noite.
Gazhiev então
voltou com o neto para o centro da praça, onde anteriormente o neto e ele
estava reunidos:
— De
manhã, quando acordei, me encontrei em meio a uma nuvem de fumaça no Céu, a
atmosfera estava meio rarefeita, meio difícil de respirar, e então me levantei;
Quando me levantei, comecei a ouvir passos pesados na Prospekt, e um rugido
pesado de motor passando pela avenida... Eu achei que fossem dos nossos, mas
quando tirei a minha cabeça da fonte, vi que não eram dos nossos... Eram
alemães.
Gazhiev então
sinalizou com a mão onde tinha visto os alemães passarem, estava meio difícil,
a cidade estava mudada, mas enfim, ele soube localizar o neto por onde o
regimento alemão passara:
— Eu
rapidamente voltei para a fonte, me arrastando para não ser percebido, quando
então ouvi tiros saírem dos canos das armas.
— Eles te
encontraram, vovô?
— Eu também pensei
nisso, mas não, parece que as nossas tropas lançaram um ataque contra os
alemães quando dei por mim, já estava tendo uma briga encarniçada logo atrás...
Tentei me esconder, de todo o jeito, tentei me esconder no que tinha na fonte...
Então encontrei um soldado, um dos nossos, ferido, totalmente ferido,
agonizando ao meu lado... Era um soldado forte, nunca julgaria que um dia
choraria igual uma criancinha, mas ele estava.
— O que
aconteceu com ele, vovô?
—
Ele foi ferido, ferido no olho esquerdo, sangrava muito, não ia sobreviver...
Foi aí que eu percebi que aquela fonte não era só uma fonte, mas uma vala para
os nossos soldados.
—
Quer dizer que...
—
Sim, eu estava no meio dos mortos... Eu conheci a morte muito cedo, meu neto.
“Quando
o ataque de nossas tropas se encerrou não sobrou muita coisa para contar. Foi a
primeira vez que eu vi um lança-chamas, os soldados eram incinerados com um
piscar de olhos e tudo que restavam eram seus gritos e o odor de carne
queimando junto com as roupas. Era um cheiro forte e enjoativo. Ainda me
recordo daquilo.
“Um
dos alemães entrou na fonte, tive pouco tempo para me esconder, arrastei um dos
corpos e me escondi debaixo dele. Prendi a respiração e segurei o choro. O
alemão segurava um rifle e com a baioneta perfurava os corpos, enquanto um
cachorro corria ao lado, farejando qualquer coisa que estivesse viva. Eu achei
que iria morrer”
“Foi
então que os alemães começaram a se dispersar, apenas aquele solitário
sentinela com a baioneta continuava verificando a fonte. O cheiro de podridão e
de sofrimento era tão grande que eu estava com vontade de vomitar. Nunca vou
esquecer aquele dia”
“O alemão olhou diretamente para os meus olhos e
naquele momento eu percebi que iria morrer...”
“Ele
meteu a baioneta por cima do corpo do soldado, e ela me feriu aqui, ainda tenho a marca, veja”, mostrou então uma velha cicatriz na parte
esquerda do abdômen. “Mas foi a última coisa que ele viu, um soldado escondido
num dos prédios atirou e o alemão caiu duro no chão”.
“Em
Stalingrado, era raro prevermos o que iria acontecer. Eu estava ali, sangrando
com um golpe de baioneta no meio de uma vala de mortos. Mas foi ali que tive a
sorte de encontrar meu salvador: Vassili Zaytsev”.
Os
olhos de Gashiev encheram-se de lágrimas nesse momento, parecia que não tocava no assunto há anos.
“Zaytsev
era um homem pequeno, de cabelo ralo e
olhos igualmente pequenos. Era nitidamente da Sibéria e frio como uma porta,
embora tivesse um sorriso amável e bondoso com os mais novos. Ele correu para
pegar a corrente do soldado alemão quando eu gritei: ‘Me ajude, camarada
soldado. Fui ferido!’ Ele tirou o rifle das mãos e afastou o cadáver que estava
em cima de mim, quando ele me viu, todo sujo e ferido, ele chorou
‘Não
é hoje que você vai morrer pequeno camarada, você tem que contar o que passamos
aqui’. Ele me pegou pelos ombros e me levou para um lugar seguro, eu estava
zonzo e acabei desmaiando em seus braços, mas a todo momento ele tentava me
acordar. ‘Na Sibéria, se você dorme o frio te congela, fique acordado, camarada
pioneiro, você vai sobreviver’.
Vassili Zaytsev |
Ele
rasgou um pedaço de pano e cobriu o meu corte. Eu estava sangrando muito, mas a
calma que ele me transparecia parecia diminuir o meu medo. Ele me deu um gole
de vodka e disse:
‘É realmente um ferimento muito feio, vocês
crianças não deveriam continuar aqui. Isso é errado, a guerra é para homens’.
Ele
cortou um pedaço de pão e me deu, ele sorriu quando me viu devorando todo o
pedaço em meio minuto.
‘Vamos esperar anoitecer, quando tudo ficar mais
calmo eu te levo para o meu acampamento e vemos o que vai acontecer’”
Enquanto
os dois caminhavam, o avô mostrou-lhe um
mercado do outro lado da praça:
“Aqui,
meu neto, existia uma casa em ruínas, na verdade era o antigo teatro de
Stalingrado, nós nos escondemos dos alemães aqui durante todo aquele dia.
Enquanto ele me contava histórias da Sibéria, Zaytsev até me explicou o
funcionamento de uma fundição: ‘Em Magnitogorsk, eu aprendi coisas incríveis,
em certa temperatura o aço, esse mesmo aço do meu capacete, se dobra e se molda
com uma facilidade absurda. E quando mais puro o aço, maior é sua resistência,
por isso tem uma quantidade certa de ar que pode entrar na preparação do aço’”
“À
noite, ele me levou para o acampamento dos soldados, perto da margem do Volga, ali conheci o comissário político Mikhalkov, que me deu
chocolate quando me encontrou, e vi pela primeira vez o grande general de
Stalingrado brigar com Zaytsev, Vassili Chuikov”
‘Não
tínhamos combinado que o ataque seria às 16 horas? Eu queria os seus franco
atiradores agindo, Zaytsev! Aqueles homens da 13° foram massacrados sem nenhuma
pena pelos alemães na Barmaley. Onde você estava quando eles foram trucidados?’
‘Camarada
tenente-general, eu estava seguindo suas ordens, nossos soldados iniciaram o
ataque no horário previsto. O que houve é que os alemães movimentaram os
blindados e começaram a nos atacar, não podemos retalhar isso sem ter o apoio
da artilharia pelo menos’
‘Só
desastres que acontecem! Agora isso e a casa Pavlov sendo tomada pelos alemães! Com o inferno todos
vocês!’ e saiu.
Zaytsev ficou em silêncio por alguns minutos e depois
me apresentou a Katia, uma das enfermeiras da divisão:
‘Cuidado
com Katyusha, ela é bastante sensível, seja um cavalheiro com ela que ela
cuidará muito bem de você’ Zaytsev saiu e foi conversar com os seus camaradas,
fiquei sentado olhando para aquela enfermeira rechonchuda e sorridente que se
maquiava na frente de um minúsculo espelho quebrado.
‘O
que foi, menino’, ela perguntou, ‘ Por que me olha tanto? Está me achando
bonita?’, sorriu.
‘Eu
estou ferido, um alemão me cortou com uma faca’.
‘Estamos
todos assim... Deixei-me ver o que aconteceu’, e saiu do espelho.
Quando
ela viu meu ferimento, ficou chocada, o golpe de baioneta cortou minha pele
como se fosse papel. ‘Você tem sorte de ter dois rins, um corte desses podia
ferrar com tudo em você. Não está certo isso, essa bandagem não vai segurar.
Vou ter que costurar.’
Ela
pegou um carretel de linha e agulha dentro da bolsa, e me serviu um pouco de
vodka.
‘Não
beba muito, não quero mais um pinguço nesse acampamento, ainda mais uma
criança, é para você não sentir o que vou fazer’
Ainda
me lembro como era acampamento, no subsolo de uma casa destruída, era realmente
um lugar muito sujo, havia ratos e cheirava a suor e a sofrimento. Ninguém tinha
tempo para tomar banho, alguns faziam as necessidades ali mesmo porque era
perigoso sair durante a noite, e outros se coçavam por conta dos piolhos. Não
era um lugar muito agradável, e a luz das lamparinas não iluminava direito os
cantos mais escuros do prédio. Era melhor assim, essa era a única camuflagem
contra os alemães, a escuridão.
Eu
fui costurado por aquela gentil enfermeira, foi uma sorte ter encontrado duas
almas tão caridosas naquele dia. Não estava mais com frio ou com fome, não me
sentia mais tão só. Fiquei com eles até o final da guerra, Vassili sempre me
dava doces quando encontrava e Katia ficava comigo quando os outros soldados
criavam problemas.
Fui
mensageiro do Exército Vermelho, passava ordens importantes por dentro da minha
camisa e corria entre os escombros da cidade. Stalingrado não tinha tempo para
a infância. Eu vi pessoas morrerem diante dos meus olhos, às vezes crianças,
mas nunca desisti de sobreviver.
Quando
a batalha acabou, o inverno estava congelando. Fiquei doente de pneumonia e
tive que ser evacuado da cidade, não pude ver a queda dos alemães. Não pude
xingá-los nem mesmo tive a oportunidade de vingar meus pais. Eu fui para um
orfanato até eu ficar mais velho, e simplesmente fugir.
Eu
lembro da minha mãe até hoje, de como ela foi morta e lembro do medo que meu
pai sentiu quando não poderia fazer nada... Stalingrado retirou uma parte de
mim. Foi bem difícil ser adulto, era década de 50, Stálin já havia morrido,
Stalingrado não existia mais a não ser em minhas lembranças, outra cidade foi
construída no lugar...
A União Soviética já era uma potência, nós enviávamos
satélites, animais para o espaço. Era novos tempos, eu era jovem e cheio de
esperanças quando conheci a sua avó. Fui para universidade e acabei me formando
em engenharia... Nunca mais tive noticias de Zaytsev ou de Katia, sei que eles
estavam vivos porque quando estava no orfanato volta e meia me mandavam cartas
do front. Mas naquele altura, já tinham se passado dez anos desde o cerco de
Stalingrado.
A
guerra é perversa, meu neto. Seja sempre ciente disso, por isso nunca romantize
algo tão ruim quanto isso. Stalingrado é uma mancha da minha infância que nunca
esquecerei”.
Depois
de um silêncio pétreo, os dois andaram até a margem do Volga, o avô ergueu
o queixo e aspirou com dificuldade a
umidade do rio do alto daquela colina. A estátua da fonte não existia mais, nem
os prédios em ruínas ou mesmo as multidões de corpos sendo devorados por ratos.
Agora, apenas ruas e avenidas largas, arranha-céus construídos na época do
Kruschiov, em concreto e cimento, automóveis e mais automóveis e legiões de
trabalhadores nos bondes indo para o serviço.
Duas
semanas depois Viktov Gashiev faleceu em seu pequeno apartamento em Moscou sem
ninguém ao seu lado a não ser algumas poucas recordações de sua vida difícil na
batalha de Stalingrado.
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