quarta-feira, 14 de junho de 2017

Lembranças de Volgogrado



        Olhando para o céu azulado, límpido, com flocos remanescentes dos feixes do gigante Sol, um velho, um senhor meio enrugado que andava encurvado, aparentando ser mais velho do que era, passeava com o seu netinho no centro da cidade no Volga, Volgogrado.

          — Aqui, meu neto, ficava a fonte Barmaley, uma fonte de pedra esculpida em torno dessa praça para celebrar um conto infantil, escrito por um escritor russo, Korney Chukovsky.
          — Onde, vovô? Eu não vejo nada.
          — Ficava aqui, ela ficava exatamente aqui onde estou.  Era uma fonte linda, tinha no alto seis criancinhas dançando em volta de um poderoso jacaré. Veja, veja, tenho uma foto dela.

          O velho mostrou-lhe então uma fotografia meio envelhecida, já um pouco gasta, da dita fonte que agora não mais existia.


            — Essa é a fonte Barmaley, meu neto; Eu e meus pais costumávamos passear muito em volta dela, e quando dava domingo, as crianças pulavam na água para se refrescar ou mesmo se esconder no pique-esconde.
            — O que aconteceu com ela, vovô? — Inquiriu o netinho curioso.
            — Algo terrível, meu neto. A minha infância perdeu sua inocência ali.

            O velho começou a contar-lhe uma história árdua e difícil sobre o que viria a seguir.

            — Eu tinha oito anos, eu ainda era uma criança quando vim para Stalingrado pela primeira vez, para morar; Meu pai era violinista, o som das operetas dele continua na minha cabeça... Korsakov, Balakiev, os grandes sabe? — O neto não compreendeu o que o avô dissera, de certo não sabia essa parte da música — Ah! Que estou falando, você é muito novo para entender sobre música, talvez não, mas os grandes nacionalistas, os grandes músicos tradicionais. Com a invasão nazista em Stalingrado, para o nosso povo, esse era um simbolo de esperança, para os nazistas, de resistência.

            — Do que está falando, vovô?

            — Um dia, um dia, a Gestapo bateu em nossa casa, uma patrulha qualquer, pensamos nós, querendo um pouco de comida, mas não era isso. Um oficial entrou em nossa casa com toda a brutalidade, arrombando a porta bem ali, na minha frente. Minha mãe correu em minha direção e me escondeu no armário da cozinha, antes que eles entrassem.
            — E depois, vovô? E depois?

            Viktor  Gadzhiev, engoliu seco, tentando lubrificar a sua garganta já um tanto gasta, a voz lhe falhava naquele ponto... Medo ou cansaço? Talvez os dois, mas em todo caso Gadzhiev tomou coragem e retomou sua história.

            — O oficial, um oficial de olhos tão escuros que chegavam a trazer medo ao mais forte dos soldados, com uma cicatriz no rosto, fitou a minha mãe, gritando algo em alemão... Minha mãe não falava alemão, então levou um golpe na cabeça e caiu no chão... Eles estavam a procura do meu pai.

            O neto fitou-lhe com olhos arregalados, um tanto assombrado com a naturalidade com que o seu avô contava-lhe aquela tenebrosa história... Uma história tão dura, que sequer podia transpassar mais emoção do que o avô transpassava.

           — Eles entraram no quarto dos meus pais, no meio da noite, procurando o meu pai... Quando eles o encontraram, dormindo na cama, eles cortaram-lhe a garganta sem cerimônia, eu pude ouvir da cozinha os gritos da minha mãe chorando.  O oficial voltou com os seus encarregados para a sala e encontrou minha mãe imobilizada por um SS pelo pé, e disse em russo muito ruim: "Agora, eu já eliminar o seu marido, vamos terminar tudo isso de uma vez, Russiche Schein!"

         O velho, outra vez lubrificou suas gastas cordas vocais com a saliva de sua boca, mas mesmo assim, pode-se perceber que a sua voz estava trêmula naquele ponto, quando retomou a fala:

          — Eles cortaram, rasgaram as roupas da minha mãe, na minha frente... E eles a estupraram, um a um, enquanto cuspiam, a xingavam, a humilhavam... Nenhum daqueles terríveis momentos saem da minha cabeça, meu pai, morto naquela cama, como um animal, cheio de sangue, e minha mãe, sendo violentada por aqueles sete malditos chucrutes e sendo duramente estrangulada na minha frente depois disso...

          Gadzhiev soltou um tímida lágrima no canto do olho esquerdo, um lágrima que passaria despercebido senão tivesse tomado um caminho tão sinuoso nas rugas do seu rosto e caisse por fim na cabeça do seu pequeno neto...

          — Eu era uma criança, uma simples criança, eu não sabia o que era vida até aquela hora. Eu podia ter feito algo, eu podia ter salvado meus pais, mas não eu fiquei lá, no armário, imóvel, enquanto aqueles malditos faziam barbaridades com os meus pais... Desde esse dia não consigo dormir sem me lembrar do que fizeram com os meus pais.

           O pequeno Anton, uma pequena criatura, de não mais que nove anos de idade, abraçou o avô no tronco e com dificuldade ergueu seus olhos em direção ao choroso avô.
          — Não chore, vovô, não chore, o senhor não tinha culpa. O senhor não tinha culpa.
         O velho abaixou-se e abraçou o seu querido e único neto naquela praça em Volgogrado, Gazhiev continuava a chorar, mas não tão discretamente quanto antes, e agora soluçava de dor, por causa das lembranças da guerra.

        Conteve com dificuldade as suas lágrimas e em seguida levantou-se e começou a caminhar com o neto pela Prospekt (Avenida).

        — Eu corri, por essa mesma avenida, quando os alemães saíram do apartamento dos meus pais; Corri sem rumo até encontrar aquela fonte abandonada, onde me sentia mais seguro. Entrei nela e me escondi e foi lá que passei a noite.


        Gazhiev então voltou com o neto para o centro da praça, onde anteriormente o neto e ele estava reunidos:
         — De manhã, quando acordei, me encontrei em meio a uma nuvem de fumaça no Céu, a atmosfera estava meio rarefeita, meio difícil de respirar, e então me levantei; Quando me levantei, comecei a ouvir passos pesados na Prospekt, e um rugido pesado de motor passando pela avenida... Eu achei que fossem dos nossos, mas quando tirei a minha cabeça da fonte, vi que não eram dos nossos... Eram alemães. 

        Gazhiev então sinalizou com a mão onde tinha visto os alemães passarem, estava meio difícil, a cidade estava mudada, mas enfim, ele soube localizar o neto por onde o regimento alemão passara:

        — Eu rapidamente voltei para a fonte, me arrastando para não ser percebido, quando então ouvi tiros saírem dos canos das armas.

       — Eles te encontraram, vovô?

       — Eu também pensei nisso, mas não, parece que as nossas tropas lançaram um ataque contra os alemães quando dei por mim, já estava tendo uma briga encarniçada logo atrás... Tentei me esconder, de todo o jeito, tentei me esconder no que tinha na fonte... Então encontrei um soldado, um dos nossos, ferido, totalmente ferido, agonizando ao meu lado... Era um soldado forte, nunca julgaria que um dia choraria igual uma criancinha, mas ele estava.
— O que aconteceu com ele, vovô?
— Ele foi ferido, ferido no olho esquerdo, sangrava muito, não ia sobreviver... Foi aí que eu percebi que aquela fonte não era só uma fonte, mas uma vala para os nossos soldados.
— Quer dizer que...
— Sim, eu estava no meio dos mortos... Eu conheci a morte muito cedo, meu neto.

“Quando o ataque de nossas tropas se encerrou não sobrou muita coisa para contar. Foi a primeira vez que eu vi um lança-chamas, os soldados eram incinerados com um piscar de olhos e tudo que restavam eram seus gritos e o odor de carne queimando junto com as roupas. Era um cheiro forte e enjoativo. Ainda me recordo daquilo.

“Um dos alemães entrou na fonte, tive pouco tempo para me esconder, arrastei um dos corpos e me escondi debaixo dele. Prendi a respiração e segurei o choro. O alemão segurava um rifle e com a baioneta perfurava os corpos, enquanto um cachorro corria ao lado, farejando qualquer coisa que estivesse viva. Eu achei que iria morrer”

“Foi então que os alemães começaram a se dispersar, apenas aquele solitário sentinela com a baioneta continuava verificando a fonte. O cheiro de podridão e de sofrimento era tão grande que eu estava com vontade de vomitar. Nunca vou esquecer aquele dia”

“O  alemão olhou diretamente para os meus olhos e naquele momento eu percebi que iria morrer...”
“Ele meteu a baioneta por cima do corpo do soldado, e ela me feriu aqui,  ainda tenho a marca, veja”,  mostrou então uma velha cicatriz na parte esquerda do abdômen. “Mas foi a última coisa que ele viu, um soldado escondido num dos prédios atirou e o alemão caiu duro no chão”.

“Em Stalingrado, era raro prevermos o que iria acontecer. Eu estava ali, sangrando com um golpe de baioneta no meio de uma vala de mortos. Mas foi ali que tive a sorte de encontrar meu salvador: Vassili Zaytsev”.
Os olhos de Gashiev encheram-se de lágrimas nesse momento, parecia que não  tocava no assunto há anos.

“Zaytsev era um homem pequeno, de cabelo  ralo e olhos igualmente pequenos. Era nitidamente da Sibéria e frio como uma porta, embora tivesse um sorriso amável e bondoso com os mais novos. Ele correu para pegar a corrente do soldado alemão quando eu gritei: ‘Me ajude, camarada soldado. Fui ferido!’ Ele tirou o rifle das mãos e afastou o cadáver que estava em cima de mim, quando ele me viu, todo sujo e ferido, ele chorou

‘Não é hoje que você vai morrer pequeno camarada, você tem que contar o que passamos aqui’. Ele me pegou pelos ombros e me levou para um lugar seguro, eu estava zonzo e acabei desmaiando em seus braços, mas a todo momento ele tentava me acordar. ‘Na Sibéria, se você dorme o frio te congela, fique acordado, camarada pioneiro, você vai sobreviver’.
Vassili Zaytsev

Ele rasgou um pedaço de pano e  cobriu o  meu corte. Eu estava sangrando muito, mas a calma que ele me transparecia parecia diminuir o meu medo. Ele me deu um gole de vodka e disse:

‘É  realmente um ferimento muito feio, vocês crianças não deveriam continuar aqui. Isso é errado, a guerra é para homens’.


Ele cortou um pedaço de pão e me deu, ele sorriu quando me viu devorando todo o pedaço em meio minuto.
‘Vamos  esperar anoitecer, quando tudo ficar mais calmo eu te levo para o meu acampamento e vemos o que vai acontecer’”

Enquanto os  dois caminhavam, o avô mostrou-lhe um mercado do outro lado da praça:



“Aqui, meu neto, existia uma casa em ruínas, na verdade era o antigo teatro de Stalingrado, nós nos escondemos dos alemães aqui durante todo aquele dia. Enquanto ele me contava histórias da Sibéria, Zaytsev até me explicou o funcionamento de uma fundição: ‘Em Magnitogorsk, eu aprendi coisas incríveis, em certa temperatura o aço, esse mesmo aço do meu capacete, se dobra e se molda com uma facilidade absurda. E quando mais puro o aço, maior é sua resistência, por isso tem uma quantidade certa de ar que pode entrar na preparação do aço’”

“À noite, ele me levou para o acampamento dos soldados, perto da margem do  Volga, ali conheci o  comissário político Mikhalkov, que me deu chocolate quando me encontrou, e vi pela primeira vez o grande general de Stalingrado brigar com Zaytsev, Vassili Chuikov”
‘Não tínhamos combinado que o ataque seria às 16 horas? Eu queria os seus franco atiradores agindo, Zaytsev! Aqueles homens da 13° foram massacrados sem nenhuma pena pelos alemães na Barmaley. Onde você estava quando eles foram trucidados?’
‘Camarada tenente-general, eu estava seguindo suas ordens, nossos soldados iniciaram o ataque no horário previsto. O que houve é que os alemães movimentaram os blindados e começaram a nos atacar, não podemos retalhar isso sem ter o apoio da artilharia  pelo menos’
‘Só desastres que acontecem! Agora isso e a casa Pavlov sendo  tomada pelos alemães! Com o inferno todos vocês!’ e saiu.
Zaytsev  ficou em silêncio por alguns minutos e depois me apresentou a Katia, uma das enfermeiras da divisão:
‘Cuidado com Katyusha, ela é bastante sensível, seja um cavalheiro com ela que ela cuidará muito bem de você’ Zaytsev saiu e foi conversar com os seus camaradas, fiquei sentado olhando para aquela enfermeira rechonchuda e sorridente que se maquiava na frente de um minúsculo espelho quebrado.
‘O que foi, menino’, ela perguntou, ‘ Por que me olha tanto? Está me achando bonita?’, sorriu.

‘Eu estou ferido, um alemão me cortou com uma faca’.

‘Estamos todos assim... Deixei-me ver o que aconteceu’, e saiu do espelho.

Quando ela viu meu ferimento, ficou chocada, o golpe de baioneta cortou minha pele como se fosse papel. ‘Você tem sorte de ter dois rins, um corte desses podia ferrar com tudo em você. Não está certo isso, essa bandagem não vai segurar. Vou ter que costurar.’

Ela pegou um carretel de linha e agulha dentro da bolsa, e me serviu um pouco de vodka.
‘Não beba muito, não quero mais um pinguço nesse acampamento, ainda mais uma criança, é para você não sentir o que vou fazer’

Ainda me lembro como era acampamento, no subsolo de uma casa destruída, era realmente um lugar muito sujo, havia ratos e cheirava a suor e a sofrimento. Ninguém tinha tempo para tomar banho, alguns faziam as necessidades ali mesmo porque era perigoso sair durante a noite, e outros se coçavam por conta dos piolhos. Não era um lugar muito agradável, e a luz das lamparinas não iluminava direito os cantos mais escuros do prédio. Era melhor assim, essa era a única camuflagem contra os alemães, a escuridão.

Eu fui costurado por aquela gentil enfermeira, foi uma sorte ter encontrado duas almas tão caridosas naquele dia. Não estava mais com frio ou com fome, não me sentia mais tão só. Fiquei com eles até o final da guerra, Vassili sempre me dava doces quando encontrava e Katia ficava comigo quando os outros soldados criavam problemas.

Fui mensageiro do Exército Vermelho, passava ordens importantes por dentro da minha camisa e corria entre os escombros da cidade. Stalingrado não tinha tempo para a infância. Eu vi pessoas morrerem diante dos meus olhos, às vezes crianças, mas nunca desisti de sobreviver.

Quando a batalha acabou, o inverno estava congelando. Fiquei doente de pneumonia e tive que ser evacuado da cidade, não pude ver a queda dos alemães. Não pude xingá-los nem mesmo tive a oportunidade de vingar meus pais. Eu fui para um orfanato até eu ficar mais velho, e simplesmente fugir.

Eu lembro da minha mãe até hoje, de como ela foi morta e lembro do medo que meu pai sentiu quando não poderia fazer nada... Stalingrado retirou uma parte de mim. Foi bem difícil ser adulto, era década de 50, Stálin já havia morrido, Stalingrado não existia mais a não ser em minhas lembranças, outra cidade foi construída no lugar...

A  União Soviética já era uma potência, nós enviávamos satélites, animais para o espaço. Era novos tempos, eu era jovem e cheio de esperanças quando conheci a sua avó. Fui para universidade e acabei me formando em engenharia... Nunca mais tive noticias de Zaytsev ou de Katia, sei que eles estavam vivos porque quando estava no orfanato volta e meia me mandavam cartas do front. Mas naquele altura, já tinham se passado dez anos desde o cerco de Stalingrado.

A guerra é perversa, meu neto. Seja sempre ciente disso, por isso nunca romantize algo tão ruim quanto isso. Stalingrado é uma mancha da minha infância que nunca esquecerei”.

Depois de um silêncio pétreo, os dois andaram até a margem do Volga, o avô ergueu o  queixo e aspirou com dificuldade a umidade do rio do alto daquela colina. A estátua da fonte não existia mais, nem os prédios em ruínas ou mesmo as multidões de corpos sendo devorados por ratos. Agora, apenas ruas e avenidas largas, arranha-céus construídos na época do Kruschiov, em concreto e cimento, automóveis e mais automóveis e legiões de trabalhadores nos bondes indo para o serviço.


Duas semanas depois Viktov Gashiev faleceu em seu pequeno apartamento em Moscou sem ninguém ao seu lado a não ser algumas poucas recordações de sua vida difícil na batalha de Stalingrado.

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