sexta-feira, 16 de junho de 2017

Memórias da América



As representações latino-americanas acerca de datas importância nacional como o quincentenário da América, ocorrido em 1992, mostram um continente rico, ainda com uma história muito sangrenta e cheia de rupturas. Mémoires em Devenir (de GUERRA, François-Xavier (org.) Mémoires en Devenir. Amérique latine XVIe-XXe siècle. Bordeaux, Maison des Pays Ibériques, 1994) é um texto elegante que não se atém ao compromisso de analisar a América Latina sob uma análise monocausal do que vem a ser a memória construída em todo continente, pelo contrário, ele pincela porções de narrativa sob um prisma singular e porque não sensível sobre como se constrói essa identidade em formação dos latino-americanos.

Observando por exemplo os mais diferentes casos nas representações latino-americanas em datas comemorativas, ficamos obviamente intrigado com as necessidades históricas de determinados estados em consolidar o poder central como poder de fato, que para Guerra não é uma coisa fácil de se lidar, porque desde o período colonial o poder político real não corresponde ao poder imediatamente pensado.

Para Guerra a memória é invariavelmente seletiva e parcial, mas “falar de escolha e significação implica que a memória pessoal, a mais pessoal das memórias, já é uma reconstrução individual e social do passado”[1] e não podemos nos incair apenas no reducionismo de que a memória é uma porção restrita ao indíviduo ou a um segmento social, pois ela invariavelmente passa a ser transmitida nem que seja pela oralidade. A questão é o discurso que foi posto no plano da hegemonia.
Quando pensamos nas grandes construções memoriais temos que estar cientes de que as construções não são dissociadas de seus atores, que no caso dos cinquentenários da independência são os estados-nacionais em construção, e que invariavelmente constroem identidades que são ditas como verdades indiscutíveis e universais, às vezes atuando como referências culturais e de comportamento.
No caso venezuelano isso parece ser evidente como uma maneira de diferenciar-se identitariamente e culturalmente da Colômbia e da memória da Grã-Colômbia,  o resgate de Símon Bolivar no cinquentenário com a vinda dos restos mortais dessa figura respondia aos anseios políticos diretos daquele país em conflito. Entretanto a despeito do volume das comemorações do cinquentário tanto na Colômbia como na Venezuela serem dignas de nota, a presença do elemento indígena é completamente esquecida em prol de uma ideia de civilidade europeia, católica e progressista, conforme os anseios liberais da época. Por vezes a memória hispânica é tomada como uma bandeira identitária da própria elite acostumada com o seu papel de topo dos segmentos sociais.

Ao Peru e Chile fenômenos dissociados da ideia de hispanidade ocorrem, em virtude da guerra de ambos os países contra a antiga metrópole. Mas em virtude dos acirramentos no contexto regional e subconsequentes conflitos entre os dois países pela posse das minas mineradoras de salitre, as comemorações de ambos os países são um indício de consolidação da identidade nacional frente à outra nação beligerante ou potencialmente beligerante, os dois países tomam partido na criação de mitos nacionais, e o caso peruano é mais emblemático pelo garbo de suas comemorações com a realização de uma exposição aos moldes europeus em Lima no ano de 1871. 

Os fenômenos europeus são implantados pelas elites locais de tradição liberal em diferentes países do continente, seja o translado do corpo de Simon Bolivar um ano após do retorno das cinzas de Napoleão à Paris, ou a exposição do centenário de independência de Lima que estava em diálogo com a Feira Mundial de  Paris realizada no mesmo intervalo temporal. A suntuosidade das comemorações, com o uso de arte efêmera é de tal detalhismo que demonstra a riqueza peruana no período da exploração do salitre.


Na Argentina, a despeito do caráter mais modesto das comemorações quando comparadas ao Peru, ela se tornou um marco político portenho sobre as outras províncias do interior, um símbolo da nova consolidação política de Buenos Aires sob a coação dos territórios interioranos (com a eliminação dos caudilhos) e a expansão argentina ao território patagão. A celebração na Praça de Maio com a construção do obelisco é um símbolo de um novo país nascente e economicamente galopante após Mitre e a Guerra do Paraguai. A memória argentina estava atrelada à ideia de progresso e desenvolvimento econômico numa identidade francamente emprestada dos europeus (sobretudo dos ingleses e franceses) de um novo estado que despovoaria as terras platinas dos gaúchos para colonizá-la com imigrantes europeus.

Ao Brasil, o que podemos dissertar é que a modéstia das comemorações está atrelada não à existência a  problemas políticos, afinal o Brasil monarquista de Pedro II vinha vitorioso do conflito da Tríplice Aliança. A inflação e as contas públicas do conflito eram elementos econômicos para dissociar a ideia de comemorações suntuosas do Império, ademais, Pedro II possui uma preocupação mais evidente na questão do ensino, financiando pessoalmente o Colégio homônimo com suas finanças pessoais.

Entretanto, não podemos incorrer em dada injustiça ao menosprezar as comemorações brasileiras, afinal de contas o culto aos irmãos Andrada respondia aos anseios da Monarquia como forma estável de governo, de maneira que o Partido Liberal se beneficiaria do culto a José Bonifácio.

Verificamos então o caso norte-americano, se nas comemorações do cinquentenário observamos uma dissociação da identidade inglesa, sobretudo em virtude da tensão ocasionada com a guerra contra a Inglaterra em 1810, e uma extensão dos ideais revolucionários a outros países do continente.
Em 1872, as comemorações do centenário respondem a outro circunspecto político, afinal é a data em que as últimas fronteiras americanas são consolidadas no Oeste, após uma sucessão de conflitos com os mexicanos e anexações de territórios mediante negociações, a mais recente é o caso do Alasca em 1869 com o secretário de Estado Seward. Mas também é a época da expansão do capital do Norte mediante à ferrovias e industrialização acelerada após o recente conflito com os estados confederados na Guerra de Secessão.

A fratura norte-americana e, sobretudo, na identidade americana mantém-se nas comemorações do centenário de maneira que os estados sulistas não acompanham as celebrações da mesma maneira que o Norte, os ressentimentos  e a humilhação da guerra tornam a reconciliação cada vez mais difícil. A administração de Ulisses Grant é marcada por sucessivos escândalos, assim como o governo anterior, de Andrew Johnson sofreu com mais instabilidades após o hiperendividamento da União, a inflação resultante da Guerra e o rombo aos cofres públicos na Compra do Alasca.
A morte de Lincoln é um marco do desarranjo norte-americano que se estabilizará apenas quando a grande crise de 1870 for superada no mandato de Rutherford Hayes. Grant, entretanto, em 1872,  promoveu a maior exposição das Américas, na cidade de Philadelphia.
No ano dessas comemorações consolida-se a ideia da consolidação da Corrida para Oeste, na qual o próprio presidente inaugura a ferrovia para o Pacifico. A visita de chefes de Estado, incluindo Pedro II, é uma das cartas triunfais dos americanos como  uma nação respeitada internacionalmente que anseia ser reconhecida. Os republicanos passam a ser atores na reconstrução americana e incentivam cada vez mais a ideia de Progresso e da consolidação econômica do Norte.

Na Feira de Philadelphia, evidenciam-se as novidades da indústria norte-americana, seja o culto  às ferrovias (com a existência de linhas de ferro no interior do parque de exposições), mas também inventos primorosos e recentes: Como o telefone de Graham Bell e a máquina de escrever Remington. O espelho norte-americano mirava a ideia progressistas de desenvolvimento tecnológico e de prosperidade, a despeito dos evidentes problemas internos; Dez anos depois, os Estados Unidos consolidam-se como nação imperialista ao iniciar uma rápida guerra com os espanhóis, resultando na vitória dos anglo-americanos.

Nesses cinco casos evidenciam-se as finalidades e aspirações de diferentes governos e países na sua consolidação identitária e superação de dilemas internos. A construção de imaginário nacional é festejada com a criação de mitos pátrios, resgates identitários e a franca esperança na fé e no Progresso. Não podemos nos imiscuir que na variedade entre a permanência e a variedade, os duros embates em torno da memória saem com segmentos perdedores. No caso dos países platinos, a identidade indígena, que é trucidada com as sucessivas guerras contra os mapuches, no caso brasileiro, as identidade negra (assolada pelo fantasma da escravidão) e indígena, no caso setentrional da América do Sul está o resgate à hispanidade como um elemento de identificação nacional. No caso americano é ainda mais complexo, é sobretudo o sufocamento da identidade sulista (perdedora do conflito recente), dos indígenas (trucidados nas corridas para o Oeste), dos hispânicos (remanescentes dos conflitos com o México) e dos negros (marginalizados na nova União consolidada após a morte de Lincoln).
O elemento da imigração é um dos fatores a serem considerados em diferentes casos, sobretudo no caso argentino, chileno e americano, mas não é conveniente esquecer um dilema da identidade construída e reforçada pelas comemorações da independência: A construção identitária nas Américas respondem a inquietação colonial da ruptura da identidade com a metrópole  e ela está construída através do alicerce da discórdia mútua contra os seus vizinhos.
Há casos não abordados que merecem citação, como o cinquentenário de independência do México dado no período conturbado de sua história, onde o próprio país, fraturado com as sucessivas guerras contra os americanos, e tomado por intrigas internas é invadido por uma potência europeia (a França) com a implantação de uma monarquia estrangeira Habsburgo.O México sofre um duro revés em sua própria memória e identidade, embora não tenha se negligenciado totalmente a sua própria memória da independência.
O outro caso não abordado é o Paraguai. Desolado e destruído pela Guerra da Tríplice Aliança, o estado em construção sofre a fratura da humilhação e da dissociação do poder com a queda de Solano Lopez, os paraguaios não tem condições políticas nem sociais para manter as comemorações, embora consolidem o seu revanchismo contra os portenhos e  brasileiros durante os governos colorados até 1904.
Sem mais delongas, no avançar do texto de Guerra encontramos paradigmas indiciários que respondem algumas indagações imediatas sobre os cenários permeados pela memória e a representação. A segmentação identitária acompanha a criação de uma história nacional, com criação de mitos pátrios, e de anseios das elites detentoras do poder.  A isso compreendemos a valorização de Bolívar, o trabalho de Mitre em escrever uma história da Argentina ou a realização de uma grande exposição feita no Norte dos Estados Unidos.
Submetidos a essas condições podemos analisar de forma mais adequada aos dilemas da questão das comemorações nas Américas.




[1] Pág. 1.

O antissemitismo (um vocábulo)



            O conceito de antissemitismo não se caracteriza só pela “hostilidade em relação aos hebreus”, pois afinal de contas esse conceito varia conforme a época em que ele é empregado, de modo que não se pode comparar o antissemitismo antigo, medieval ou moderno com o antissemitismo relacionado ao aparecimento do próprio nacionalismo.
            O antissemitismo não pode, por essa visão, ser tomado como algo único, mas algo que se modifica, caso contrário poderiam se chegar a conclusões “a-históricas e aberrantes”. Entretanto, uma característica tão absurdamente estúpida não se modifica ao passar do tempo, quando se trata de antissemitismo, o ódio aos judeus. Mais ou menos escancarado com o passar do tempo, ele se mantém por “n” razões diferentes o qual o texto não busca abarcar. Afinal, além da época, o que difere o antissemitismo moderno do antissemitismo da Alemanha Nacional-Socialista? Em verdade, os elementos sociais e culturais que embasaram esse sentimento de aversão aos judeus, o modo como tais sentimentos de aversão se demonstram cada vez mais presentes;
            É de fato que o Ortona caracteriza que o ódio aos judeus não é só algo relacionado à fé ou sua questão identitária, mas as classes sociais as quais os hebreus foram relacionados: como os comerciantes e os usuários. Entretanto pode-se questionar se essa concepção é correta, afinal de contas, os judeus estavam presentes em diferentes escalões da própria sociedade.
            Para Ortona, o fato de os judeus fazerem parte de uma fração de uma burguesia nascente na Prússia, bem como no Leste Europeu, bem como seu aspecto de não assimilação à cultura local teria levado ao surgimento de tensões sociais.
            O antissemitismo costumeiramente é confundido com outros vocábulos como antissionismo e a oposição de um governo judeu, isso é incoerente, pois não necessariamente se é antissemita quando se advoga contra a formação de um Estado exclusivamente judeu no Oriente Médio;
            O autor acredita, de forma bastante responsável, que o antissemitismo sim é uma manifestação de hostilidade à comunidade judia, caracterizada pela sua própria religião e origem étnica. Contudo, o antissemitismo não pode ser enquadrado em outras realidades onde se faziam valer disputas internas por poder, como na Idade Média.
            O antissemitismo ganha força no século XIX, quando membros da comunidade judaica começam a se inserir de maneira cada vez mais sólida na economia e na sociedade (o que é discutível); Entretanto até meados do aparecimento do cristianismo, os judeus enfrentavam pouca perseguição no interior do Império Romano, mas quando o cristianismo começa a ganhar força, os judeus começam a ser hostilizados por sua questão religiosa, de modo que esse processo fica evidente quando se observam períodos posteriores do domínio cristão sobre a política ocidental, e os judeus são vistos com certo olhar de inferioridade frente aos cristãos.
            Durante a Idade Média, o judaísmo conheceu sua Idade de Ouro onde mais se produziu sobre o próprio judaísmo, embora nos conflitos decorrentes da própria ótica da sociedade corporativa, usa-se o fator do judaísmo para enfraquecer os oponentes; Embora os judeus tenham conhecido um momento de grande excedente de capitais, é equivocado dizer que eles tinham o monopólio do comércio com o Médio-Oriente, mesmo que eles tivessem realmente capital acumulado para disponibilizar na forma de empréstimos. Na verdade, não se pode dizer que os judeus possuíam um monopólio sobre as atividades econômicas existentes e de repente foram jogados para escanteio, isso é uma concepção muito generalizante, afinal de contas, na ótica da sociedade corporativa a dinâmica não era tão simples no meio das relações clientelares.
            O antissemitismo começa a crescer com o advento da Peste Negra, da qual os hebreus foram acusados de ter responsabilidade sobre a doença. São isolados da sociedade e hostilizados, retirados do comércio e retiram-lhes também a capacidade de fazer empréstimos. A sua marginalização veio acompanhada de uma piora da sua situação econômica e jurídica existente, embora também não fosse muito melhor anteriormente.
            O antissemitismo medieval caracterizar-se-ia por uma aversão aos judeus por sua condição social de propagadores de “um capitalismo” à partes mais distantes da Europa, sob a égide religiosa e do medo. Criam-se comunidades profundamente aversas aos judeus na Europa Ocidental.
            O antissemitismo moderno, para esse autor, caracteriza-se não mais por uma aversão a um “povo-classe”, mas por um processo em que o judeu é inserido no mercado de trabalho sem exclusividade ou monopólio de uma profissão, de modo que concorre com os trabalhadores de outras formações culturais. Esse antissemitismo é “pequeno-burguês” por essência, por ter sido fundamentado pelo temor de que os judeus tomassem todos os postos de trabalho. A isso se voltam muitas vezes às tradições, vitimizadoras, das quais culpar os judeus pelas mazelas sociais parece ser um argumento bastante perene e recorrente nessa sociedade.
            O advento do nacionalismo coloca a questão em cheque ao colocar os judeus como uma nacionalidade à parte da local, de modo que se caracteriza como um povo sem terra, que de certa maneira era tido como “desleal”. Assim intelectuais e membros da pequena elite europeia promovem o aparecimento de um esforço generalista contra os judeus para não trazerem maiores inseguranças e temores sobre a questão hebraica.
            O surgimento de uma teoria dita “científica” da biologia fundamenta o preconceito histórico a essas comunidades ao inventar o conceito de “raça” de maneira que após 1918 essa conceituação toma caminhos tão perigosos que desembocariam no aspecto mais trágico do antissemitismo, a eliminação física sistemática de judeus. O aparecimento de uma modalidade de discurso que culpava os judeus pelos problemas da Alemanha associada ao surgimento do movimento Nacional-Socialista levou a esse tipo de acontecimento. Embora na Alemanha já existisse um antissemitismo enraizado, é claro que não da mesma forma que viria a aparecer na década de 1930.
            A supressão do caráter nacional do judaísmo, bem como da cultura, representada pela política de alguns governos de banir o yiddish resulta como parte desse esforço antissemita que surgiu em meados do século XX.
            Ortona acredita que após o horror da guerra, o antissemitismo tenha perdido força devido ao impacto da opinião pública decorrente do Holocausto, de maneira que é mal vista a posição de alguns grupos da direita de atacar os judeus. O antissionismo da União Soviética tenta não se confundir com um antissemitismo, mas parece bastante reducionista acreditar que o antissemitismo tenha acabado como o autor dá a entender, ele se faz presente todos os dias e não desaparece mesmo após os mais diferentes acontecimentos relacionados aos judeus. O antissemitismo está vivo hoje no Oriente Médio, dessa vez, ocasionado pela política estúpida de Israel de oprimir os seus vizinhos. De qualquer forma a definição temporal proposta por Ortona parece ser interessante por nos lembrar que há momentos diferentes para o antissemitismo, mas também nos leva ao risco de acreditar que o antissemitismo como característica de pura aversão aos judeus teve um caráter brando em algumas épocas, o que não é inteiramente verdade.


A Máquina da Destruição: A diplomacia das armas (1870-1914)

        Não, a culpa não é da Alemanha. Está mais do que comprovado, a Primeira Guerra Mundial foi culpa de todos os países envolvidos, ali, naquele castelo de cartas, não havia inocentes a não ser os soldados mandados para a guerra. 

        Mas um dos elementos que germinaram a tensão de 1914 foi a unificação alemã e o revanchismo francês depois da perda da Alsácia-Lorena. A diplomacia europeia e a Pax Britannica caíram quando o sistema de Bismarck fracassou em manter o equilíbrio de um mundo cada vez mais industrializado e imperialista. A combinação explosiva de ferrovias, excesso de população, ganância por mercados e nacionalismo, tudo isso iria ser um pavio de pólvora que destruíra para sempre a Europa Vitoriana.

      “Após sua unificação, a Alemanha se tornou o país mais forte do continente, e foi crescendo em força a cada década, assim revolucionando a diplomacia europeia”[1], o problema que a ascensão da Alemanha como potência no cenário europeu desestabilizou o equilíbrio do poder no continente, exarcebando ainda mais as tensões, de maneira que a Alemanha tentou proteger a si mesma com a formação de coalizões, “le cauchemar des coalitions”, de maneira que no concerto europeu havia dois blocos constantes de tensão: Alemanha com a França, bem como o Império Austro-Húngaro com a Rússia.
            As movimentações diplomáticas alemãs se pautaram na tentativa de se impedir uma guerra de duas frentes, de maneira que a sua busca por parceiros no cenário político resultava numa tentativa de autoproteção, assim a Alemanha não tinha pretensões nos Bálcãs, mas desejava a preservação do Império Austro-Húngaro como meio de ainda manter um importante aliado, mas também não era desejoso à Alemanha ter a Rússia como inimiga.

            No concerto diplomático, a Alemanha encontrava o seguinte caso: A Grã-Bretanha isolada em si mesma preocupando-se apenas com os seus interesses na África e Ásia; a crescente hostilidade dos franceses por conta da Guerra Franco-Prussiana. Os embates entre austríacos e russos para esfacelar o Império Otomano. A aliança construída por Bismarck entre esses dois últimos e a Alemanha parecia ser a “chave para a paz na Europa”[2].
            Embora a Grã-Bretanha agisse pontualmente como mediadora dos conflitos no cenário europeu, isso não reduzia o bloco de tensão entre Rússia e Áustria, bem como Alemanha e França. “Contudo, muitos líderes britânicos, com exceção de Disraeli, não viam razão para se opor a um processo de consolidação nacional na Europa Central, que para os estadistas britânicos foi bem-vinda por décadas, especialmente quando sua culminação ocorria como resultado da guerra em que a França tinha sido tecnicamente o agressor”[3].
            A Grã-Bretanha tinha o status de protetora da ordem na Europa, mas cada vez mais a Alemanha tomava esse papel. “Bismarck foi portanto a figura dominante da diplomacia Europeia até ser demitido do gabinete em 1890”[4], sua política visando a paz e a afirmação da Alemanha como potência seguia os preceitos de não enfrentamento com nenhuma nação europeia, mas também instituiu uma política de isolar a França da Rússia e Áustria para evitar justamente o perigo de uma guerra em duas frentes. A aliança com a Rússia deveria ser feita sem hostilizar os britânicos, devidos os constantes atritos entre esses dois atores na Ásia e no Oriente Próximo.
            Retomando a Santa Aliança de Metternich, mas com um matiz próprio de sua Realpolitik, Bismarck acreditava que não havia grandes motivos para uma corrida colonial em direção à África e Ásia, porque isso poderia elevar os ânimos contra a Alemanha, causando tensões maiores com a França e a Inglaterra. A aliança com esses dois impérios autocráticos era um meio de manter a proteção do próprio regime político prussiano, bem como dar rigidez ao escudo da política externa alemã.
"Se as pessoas soubessem como são feitas a política e as salsichas, não iriam consumir nenhuma das duas"

            As crescentes tensões nos Bálcãs ameaçavam a ordem que a diplomacia prussiana tentava construir de maneira que conforme a falta de solução para as questões dessa região desembocaria nos trágicos eventos da Primeira Guerra Mundial, mas a princípio a política de conter os ânimos revanchistas da França isolando-a da Áustria e da Rússia resultou em resultados imediatos para a segurança da Alemanha, bem como o não enfrentamento com a potência dos mares, a Inglaterra. O papel moderador da Alemanha nas questões balcânicas agia nos limites do possível, mas com a demissão de Bismarck da Chancelaria e a ingerência do novo Kaiser nos assuntos externos abria-se o caminho para a solução mais belicosa para as questões no cenário europeu.

       A ingerência da Alemanha na solução nas tensões no concerto europeu apresentou vários desdobramentos que levariam a um cenário do equilíbrio do terror, ou “A política da Máquina da Destruição[1]. Com a demissão de Bismarck da Chancelaria, o novo kaiser traduziu a sua política externa por meios mais militaristas. Numa corrida colonial agressiva e num armamento crescente da Marinha e do Exército alemães.
            A política de contenção da França e do não enfrentamento à Inglaterra construída por Bismarck  foi ignorada por essa reviravolta na política externa alemã, de maneira que a tensão crescente na Europa fez a própria Inglaterra, que até o momento estava voltada para o seu “isolamentismo esplêndido”, voltar os olhos para a Alemanha.
            Com o arrefecimento das tensões entre Áustria e Rússia, num dado momento, discordando do rearranjo político com relação ao Oriente Próximo e ao “namoro” da Alemanha com o Império Otomano na construção da ferrovia Berlim-Bagdá, a Rússia abandona a Aliança e posteriormente se alia à França e à Inglaterra.
            “As nações da Europa transformaram o equilíbrio do poder em uma corrida por armamentos sem entender que  a tecnologia moderna e a conscrição em massa tinham gerado a guerra total, a maior ameaça à sua segurança, e à civilização europeia como um todo”.[2]
            Assim, embora a Alemanha na época de Bismarck tenha se tornado uma potência militar, ao contrário da Prússia de Frederico, o Grande, ela tinha tomado uma postura de moderação para não gerar maiores inquietações aos seus vizinhos, entretanto a moderação foi deixada de lado  quando os estadistas alemães ficaram “obcecados com o poder nu” das armas, coisa que “em contraste a outros estados-nação, a Alemanha não possuía nenhuma estrutura filosófica integradora”[3]. A Grã-Bretanha possuía o liberalismo como estrutura filosófica, a França tinha os apelos pela liberdade universal da Revolução Francesa, a Áustria um “benigno imperialismo universalista” e a Rússia tinha o amparo de libertadora dos povos eslavos e a ideia de descendente do Império Bizantino, assim para Kissinger a Alemanha a falta de norteadores intelectuais era a principal causa da política externa alemã sem um único foco.
            O aspecto militarista da sociedade alemã conscurpou “a sábia e comedida política” de Bismarck que havia prevenido o perigo de inseguridade da Alemanha se esta tomasse medidas agressivas. Construíram-se alianças permanentes com outras nações, coisa que foi bastante evitada pela Realpolitik de Bismarck, que acabaram atando a Alemanha a interesses diferentes dos que ela pretendia. A busca do Kaiser pelo reconhecimento da Alemanha por reconhecimento internacional encorajou uma Weltpolitik (política global), de maneira que a política externa alemã, com o “vácuo intelectual” adotou uma linguagem truculenta sem um princípio norteador.

            Kissinger acredita que se a Alemanha tivesse sido sábia e responsável, integrando o seu poderá ordem internacional existente teria tido uma tarefa árdua, mas seria melhor do temor que a Alemanha criou no plano internacional ao combinar uma mistura de personalidades explosivas com uma política externa sem consciência.
            Assim a mudança de racionalidade na política externa alemã e o abandono da Realpolitik de Bismarck acentuaram as turbulências existentes no interior de Europa e agravaram a situação da Alemanha frente aos seus vizinhos, de maneira que a política agressiva e sem princípio norteador dessa potência auxiliou a criação de um bloco antagônico ao Império Alemão que viria a ser mais cristalizado durante os fatídicos eventos que desembocariam na Primeira Guerra Mundial.

Die Deutschland krieg




[1] KISSINGER, Henry. Diplomacy. New York: Simon & Schuster Company, 1994. Pág. 137.
[2] Idem, ibidem, pág. 139.
[3] Idem. pág. 145
[4] Idem, ibidem.
[1] No original, “A Political Doomsday Machine”, provavelmente um conceito retirado com base o episódio de Jornada nas Estrelas homônimo.
[2] KISSINGER, Henri. Diplomacy. New York: Simon & Schuster Company, 1994.pág. 169.
[3] Idem, ibidem.

Videogames: A escola virtual

Jogar é uma das atividades humanas mais antigas que se tem notícia, desde a consolidação da espécie humana como ser racional, bípede e caçador, a atividade do jogo fazia parte de suas interações sociais como meio de distração. Nossos parentes primatas, estabelecem até hoje jogos e brincadeiras com pedaços de madeira e objetos, mas apenas o ser humano consegue dar um valor virtual e esboçar histórias e realidades a partir de histórias.
Antes de mais nada, um jogo normalmente é uma convenção social em que todos os jogadores aceitam as regras conforme foram definidas anteriormente, e se policiam muitas vezes para que aja um cumprimento igualitário por todos os jogadores, mesmo nos jogos onde existe o elemento da trapaça. O fato é que o jogo deve ser plausível, sustentável, e muitas vezes realista. São microrealidades e narrativas que criamos para serem o mais fiéis possíveis, não é a toa que o teatro também pode ser interpretado como uma modalidade de RPG e vice-versa;

O jogo na História possui diferentes composições, primeiramente era utilizado como mecanismo de treinamento e ensino entre os mais jovens, e na sociedade espartana os jogos passavam a ter um cunho bélico, em que cada criança era obrigada a lutar contra outra criança para se destacar como guerreira (mas nesse caso, ainda não havia o distanciamento entre o que era esporte e o que era jogo).
Os romanos foram os primeiros a levar a sério o caráter funcional dos jogos, no período republicano os jogos de tabuleiro tinham um certo destaque na formação de generais e de estratégias contra os opositores, sobretudo nas Guerras Púnicas. Mas os romanos iriam se aperfeiçoar em outros jogos (novamente a fronteira com o esporte não havia sido delimitada), a política do pão e do circo. Os jogos como elementos de entretenimento são tão antigos quanto a roda, e os romanos obteram a coesão social e manter uma estrutura imperial com a presença de esportes, no caso lutas de gladiares até a morte. 

De toda forma, os jogos de tabuleiro surgiram provavelmente no Médio Oriental, há quem diga que na Babilônia, outros dizem que sua origem remonta à China. De todas as formas, os jogos mais importantes de tabuleiro eram de certa forma associados a táticas de guerra e a conjuntos filosóficos bastante, antigos. Nesse caso falarei a respeito do Goo:

 Contam os mais diferentes relatos que o Goo era ministrado pelo próprio Mao Tsé-Tung, a fim de que seus generais apreendessem táticas de guerra a partir desse jogo... Na verdade, até me lembro que os fins do Goo são perfeitamente aplicados nos paradigmas de Sun-Tzu.

            O objetivo do Goo é isolar os seu oponente com o menor número de peças e impedir o seu avanço, a partir de seu próprio avanço... É um objetivo simples, mas se considerarmos que o Goo é um dos mais antigos jogos da Humanidade, isso parece ser bastante perspicaz.

            Outro jogo de igual importância e de idade extremamente avançada é o gamão, muito embora, no gamão mais se baseie a sorte do que um estratégia propriamente dita..  E por falar em estratégia, por que não falar também no xadrez? Esse jogo em que brilhantes mentes se dedicam em desarmar o seu oponente a fim de que ele acabe sem peças, encurralado... Sim, o xadrez.

            Conta a lenda que bons generais jogam xadrez, e um desses exemplos foi o próprio Napoleão Bonaparte, por meio de relatos de seus oficiais, jogava esse jogo de maneira tristonha e muitas vezes trapaceava. O caso que o xadrez era uma febre que contaminou a Europa bem antes dos jogos multiplayer, era um meio inclusive de estabelecer relações diplomáticas entre países distantes.
             O caso mais notável era das partidas de xadrez por correspondência entre Ivan, o Terrível e Elisabeth I da Inglaterra, o que querendo ou não iniciou a abertura dos dois países diplomaticamente, sendo construída primeira embaixada estrangeira em Moscou justamente a embaixada da Inglaterra. Pelas cartas, os dois soberanos davam detalhes de seus movimentos e falavam de temas políticos, econômicos e filosóficos. Ivan o Terrível numa dessas epístolas supostamente teria pedido a rainha Elisabeth em casamento.
               O fato é que os russos desde essa época era apaixonados por xadrez, tão apaixonados que o próprio Ivan, o Terrível morreu no meio de uma partida de xadrez de um ataque cardíaco. O fato do xadrez ter se tornado uma febre é algo bastante curioso, porque muitas das redes de interação se davam através dos correios, com cientistas e filósofos se correspondendo por cartas e muitas vezes dando movimentos do jogo através de correspondência. É a primeira vez que temos os registro de um jogo entre dois jogadores a distância (muito antes da internet). Conta-se que inclusive a rainha da Suécia, Cristina, por muito tempo jogou xadrez à distância com René Descartes através de cartas.


            Enfim, em todo caso, não será enfoque desta discussão o papel dos jogos de tabuleiro no ensino de inúmeras atividades do saber humano, mas sim o grande desafio do século XXI, os jogos de computador e como eles podem ser utilizados como meio de redes sociais e de desenvolvimento dos jovens em períodos-chave de aprendizado.

          Para isso devemos observar que jogos de certa popularidade normalmente narram sucessões de  eventos e narrativas históricas, como Call of Duty, Red Dead Redemption ou mesmo o próprio Far Cry. São jogos que no final de contas têm histórias verossímeis, têm uma ideologia manifesta e embora não tenham compromisso com a realidade, tentam ser o mais verossímeis possíveis. Isso é mais comum em videogames do tipo shooter, mas também ocorre com jogos de estratégia, ou mesmo com jogos de esportes. Inclusive os jogos de RPG, que tentam tomar uma ambientação em universos fantásticos, mas muitas vezes se ambientam no período medieval, e reproduzem visões do que seria a sociedade (inglesa muitas vezes) nas Dark Ages, utilizam-se de lendas e de fábulas para criar alegorias que seduzam o jogador ao entretenimento.
           Dentre os jogos de RPG que acredito que sejam manifestamente populares está The Witcher, baseado nos populares livros de Andrzej Sapkowski, sobre o bruxo Geralt de Rívia que na verdade vivencia um mundo obscuro cheio de criaturas mágicas e cruéis na Europa Oriental durante a Baixa Idade Média. Os gráficos e a plataforma de mundo aberto tornaram o jogo extremamente popular, chegando ao mesmo nível de popularidade de outro jogo consolidado, Skyrim.
The Witcher
          Mas a verdade que The Witcher é uma história da Polônia, com suas guerras, invasões, é a parte bárbara de um país que um dia foi dividido em vários reinos e principados, vilarejos e que se tornou unificada e uma potência no século XV com a República das Duas Nações.
             Red Dead Redemption já é outra categoria, sendo um jogo de plataforma aberta, notabilizou-se por mostrar um lado mais perverso do Velho Oeste que os filmes do Clint Eastwood. A história desenvolvida pela Rockstar mostra a vida de John Marston e sua caçada pelo Mid-West do bando do Dutch (Holandês). A recriação do deserto e da vida de cowboy é minunciosa e John Marston é um personagem que acaba invariavelmente te conquistando, seja na sua campanha contra o Fort Mercer, ou o período em que se envolveu na Revolução Mexicana.
Red Dead Redemption, by Rockstar Games
             O período temporal de Red Dead Redemption é uma das coisas mais sedutoras, a primeira década do século XX, onde introduzem-se tecnologias no faroeste, como o automóvel, a energia elétrica e o cinema, os últimos bandos armados estão desaparecendo e o Exército norte-americano se prepara para invadir o México e caçar Pancho Villa sob o comando do general Pershing. É possível inclusive ler jornais dentro do próprio jogo sobre  a situação da Europa antes da Primeira Guerra Mundial, assistir filmes sobre debates da época (como o uso indiscriminado da indústria farmacêutica de cocaína e o movimento sulfragette). Mas o mais curioso é a presença de indígenas, bandos armados e mexicanos em toda uma tensa fronteira dos estados do Sul dos Estados Unidos.

             A Rockstar obviamente tinha um histórico de sucessos com GTA e LA Noire, o primeiro jogo de detetives a ter reconhecimento facial de ponta. Sobretudo La Noire mostrou um lado da sociedade norte-americana nos anos 40 que foi pouco divulgado, o boom econômico com a criação de largas avenidas e espaços residenciais em Los Angeles, a cultura do jazz e o consumo indiscriminado de drogas como a morfina por soldados traumatizados com a Segunda Guerra Mundial, isso num mundo em que ainda operava a Máfia e existia uma Guerra Fria em nascimento. La Noire é interessante porque mostra um passado de Los Angeles em toda a sua constituição impecável da cidade, dos automóveis e dos pontos turísticos, até mesmo a rádio dos automóveis possuem transmissões da época sobre conflitos contemporâneos como a Revolução Chinesa e a Guerra da Coreia  e as músicas são de sucessos da época.


             Isso e o sucesso Call of Duty e Medal of Honor. Medal of Honor ainda foi mais revolucionário em mostrar a crueza que foi a Primeira Guerra Mundial (normalmente havia apenas jogos da Segunda), mostrar uma guerra feita ainda a cavalo, dentro de trincheiras, com dirigíveis e aviões. Com tanques pesados e incrivelmente lentos, a campanha de Medal of Honor é uma das melhores reproduções fieis que possuímos de  uma guerra de cem anos atrás.

            Todo jogo, inevitavelmente, terá falhas, seja de tabuleiro ou eletrônico, mas em tudo isso devemos frisar que o jogo em si apresenta parcialidades... Que diriam os antropólogos, se por ventura disséssemos que os “bárbaros  são naturalmente inimigos de sua civilização e se dedicam apenas a acabar com o seu jogo”?  eles ficariam certamente horrorizados,  e os historiadores também, mas em certos jogos encontramos isso. Existem valores morais que às vezes extrapolam o conteúdo dos jogos, seja Red Dead Redemption, você fazendo ´parte do massacre contra populações indígenas, seja a tortura que é praticada em GTA V. Na verdade, o jogador não costuma se preocupar com o aspecto moral do jogo, ele se preocupa em jogar.

            Nos jogos de RPG, qual é o papel da servidão e da vassalagem? “Será que os  camponeses lutavam ou não por seus senhores?”, “Qual o papel dos ‘feiticeiros’ nessa sociedade onde a cristandade se misturava com elementos ‘pagãos’?”.

            Os jogos não devem ser interpretados como um documento histórico, tal como os romances, mas ambos produzem historicidades e abrem um canal para discussões bastante construtivas, os jogos em si podem ser usados como elementos para explicação, mas o seu próprio emprego deve ser feito de maneira responsável  e consciente, tal como observaremos a seguir inúmeros casos onde foram empregados testes do uso em sala de aula.


            São poucas palavras introdutórias quanto a esse tema, mas uma questão importante deve ser frisada... O que é jogo?

Jogar é uma das mais antigas atividades do homem, não é uma atividade totalmente apolítica, ou mesmo neutra, pois ela acarreta também significados políticos e educativos que extrapolam com toda a certeza o simples de “diversão” (basta citar os jogos produzidos com fins propagandísticos pelo Partido Nazista na Alemanha na década de 30 e 40).

“A palavra ‘jogo’ evoca por igual às ideias de facilidade, risco ou habilidade. Acima de tudo, contribui infalivelmente  para uma atmosfera de descontração ou de diversão. Acalma e diverte. Evoca uma atividade sem escolhos mas também sem consequências na vida real. Opõe-se ao caráter sério desta última e, por isso, vê-se qualificada como frívola. Por outro lado, opõe-se ao trabalho, tal como o tempo perdido se opõe ao tempo bem empregue. Com efeito o jogo não produz nada(...) Os jogos a dinheiro, apostas ou lotarias, não são exceção. Não criam riqueza, movimentam-na”[1].


           Como já fora mencionado, o jogo é um fato antigo, mais antigo até que a cultura. Por mais que associamos a ideia de que o jogo a uma ideia de brincadeira, de algo mais descontraído, e sem grande seriedade,  os jogos envolvem os jogadores em completa imersão e concentração quanto a seus objetivos, e tal imersão e concentração pode servir de porta para um desenvolvimento de um aprendizado paralelo e auxiliar da própria ideia de jogar.

            O jogo é uma atividade que deve ser levada a sério, mesmo que caracteriza-se  por “ser livre, de ser ele próprio liberdade. Uma segunda característica, intimamente ligada à primeira, é que o jogo não é vida ‘corrente’, nem vida ‘real’. Pelo contrário, trata-se de uma evasão da vida “real” para uma atmosfera de atividade com orientação própria”[2], o jogo abre uma porta para algo que pode ser muito instrutivo.

            Assim se uma criança está jogando um jogo de RPG pelo computador, ela sabe que um org não vai saltar a tela do computador, ou se ela está jogando um jogo do tipo shooter (como Call of Duty), ela sabe que quando ela diz: “Morri” Ela realmente não morreu.
     Afinal,  se nós perguntarmos agora como é um cavaleiro, ou qual a localização de St. Lô.,  ou como era o soldado alemão na Segunda Guerra Mundial, ela terá  uma noção, mesmo que um pouco parcial, sobre tais interrogações.

            Esse é um dos motivos do jogo, como atividade lúdica, ter interessando pedagogos e estudiosos de uns tempos para cá, talvez pela explosão da Onda dos Jogos que assistimos desde o início dos anos 2000, e agora cresce o interesse em se estudar a inserção dos jogos no próprio ensino, afinal, os jogos atingem um público alvo: as crianças e os adolescentes.


            Vivencia-se uma grande questão: Como ensinar uma criança com oito ou nove anos lições de Geografia, Línguas e História a partir dos jogos?

Essa  grave questão vem aos poucos sendo solucionada pelo próprio jogo em si, mesmo assim, alguns educadores tentam se manter alheios a isso, ou transformar o jogo em algo educativo demais que se torne entediante, mas esquecem uma coisa: O jogo,por via de regra, deve ser divertido. Essa é a única regra sem exceção.

            Mesmo assim, devemos destacar o papel pioneiro de alguns pensadores, como Johan Huizinga, em 1938, ou mesmo antes com a educadora Montessori, que começaram a pensar aplicações dos jogos quanto à educação e ao ensino.

            Vigotskii, o grande nome da educação que parece estar em moda com os educadores, fez estudos com alunos cegos a partir da aplicação de jogos em sala de aula (mas com fins de sociabilização entre os alunos).

            Admirável também é o fato de que alguns estudiosos se dedicam a aplicação de jogos em sala de aula, notavelmente estudiosos americanos: como Kurt Squire, que fez um estudo sobre a aplicação de um jogo de computador, Civilization III, (que é uma história geral da civilização) em uma classe com alunos marginalizados numa escola da periferia nos Estados Unidos e mostrou os resultados de seus estudos num texto acadêmico.


            É verdade que ainda engatinhamos, nós brasileiros, quanto a uma possível aplicação dos jogos no ensino regular, mas esta base de artigos e análises tem como objetivo auxiliar os demais educadores quanto ao uso dos jogos como instrumento de ensino de História, com enfoque maior quanto à Idade Média.

            Embora possa parecer fácil a aplicação de um jogo em sala de aula, assim como se pensa que seja fácil a de um filme, as duas situações possuem complicações e tais complicações se mostram  relativamente diferentes uma da outra, e dessa maneira não se pode se apressar quanto a isso.

            Para fins dessa breve discussão, não é o jogo que se torna uma lição, mas é a lição que se torna um jogo.




[1] CALLOIS, Roger. Os Jogos e s Homens: a máscara e a vertigem. Tradução de José Garcez Palha. Lisboa: Cotovia, 1990. pág.9
[2] HUIZINGA, Johan. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, 2000. Pág 5

quarta-feira, 14 de junho de 2017

Por que Sense8 não foi renovada?


      A Netflix aceitou a ideia das irmãs Wachowsky de iniciar uma série global, tal como tinha sido Marco Polo. Era uma série sobre oito pessoas em diferentes locais do mundo, de diferentes classes sociais e realidades. A proposta é muito boa inclusive, ao criar um panorama de que toda a humanidade é supranacional, que todas as ligações humanas como amor, obstinação e reconhecimento são maiores do que o preconceito,a miséria e a intolerância.

       Sense8 foi o projeto mais inovador e mais ambicioso da Netflix dentre vários sucessos consolidados. A Netflix se firmou como uma plataforma de streaming quando passou a fazer suas próprias séries e patrocinar conteúdo independente.

      Sem dúvida, os 19,90 mensais que você paga todos os meses valeram a pena. Sobretudo quando você acompanhou as maratonas de House of Cards, assistiu Sherlock sem constrangimentos de comerciais e viu o Jogo da Imitação entre um ou outro capítulo de How I meet your mother. Walking Dead, The Americans, 12 anos de escravidão e A viagem. Antes de massacrarmos a Netflix, vamos conversar?









      Sinceramente, eu me apaixonei logo de início com a história da Nomi, a menina transgênero que era obrigada pela mãe a ser internada num hospital e que teria que fazer uma cirurgia  cerebral que poderia causar a sua morte. A história de Nomi foi uma das histórias mais interessantes de Sense8, todo o seu sofrimento e os preconceitos, tornaram essa uma das personagens que moldaram a série sob uma temática LGBT, inclusive sendo associada ao ativismo dos direitos civis.

Nomi, a musa de Sense8




















      Wolfgang foi o segundo personagem com quem eu tive afinidade, não por ser o esteriótipo do machão revoltado que acaba com tudo, nisso existem filmes do Stallone pra isso, pelo contrário, Wolfgang está metido em toda uma geopolítica de intrigas e negociações entre os grupos mafiosos que dominam Berlim, e o mundo do crime, pós-queda do Muro. Wolfgang é produto de uma sociedade alemã oriental que foi inserida num contexto de economia de mercado de forma muito abrupta e sua associação com o mundo do crime foi inevitável com o seu passado familiar, em todo caso ele é um ser humano tentando fazer o máximo possível para fazer as escolhas certas no ambiente errado.
Wolfgang prestes a esfaquear algum executivo da Netflix depois do cancelamento da série


      Sun foi a terceira personagem que me fez interessar pela série, no caso por ser engmática, não por ser uma exímia lutadora de artes marciais. Filha de um grande empresário sul-coreano, ela, uma das diretoras financeiras é obrigada a assumir um escândalo financeiro milionário para salvaguardar a firma, e o nome de seu irmão (nesse caso herdeiro do império), ela assume um crime que não cometeu com um código de honra que só os orientais conhecem,mas eis que seu pai foi assassinado e o seu irmão deu um golpe para assumir a empresa. Ela na cadeia corre com sua vingança.

        Sun é a personagem mais introspectiva de toda a série e acredito que isso faça com que ela seja uma das melhores figuras, todas as suas histórias, junto com as do Wolfgang, são boas e a interpretação dos dois atores é impecável.

        Agora temos três personagens espalhados em países em desenvolvimento, um deles que eu sempre tive simpatia foi Capheus, o motorista de ônibus de Nairobi. Ele perdeu o pai, líder sindical, ainda criança numa intriga política e tribal no Quênia, foi obrigado a imigrar para o interior onde a sua mãe foi estuprada e contraiu HIV, nisso, Capheus cresceu com a convicção de cuidar de sua mãe a qualquer custo. Em Nairobi, o custo de vida realmente alto os obrigou a viver numa favela e ao motorista batalhar todos os dias como "Van Damne" pelo sustento da família.

        Numa dessas lutas, seu ônibus é assaltado e levam os remédios de sua mãe. Capheus inicia sua briga contra as gangues locais de Nairobi e é tomado como herói local, se tornando uma das lideranças políticas de sua comunidade posteriormente. Houve uma troca de atores em Sense8 no papel de Capheus devido a  discordâncias entre o primeiro ator e Lana Wachowsky(com denúncias de homofobia inclusive por parte do ator), posteriormente na segunda temporada ele foi substituído.

       O outro personagem é o Lito, um ator de filmes B mexicano que esconde sua homossexualidade para o mundo em nome de sua carreira, ele tem um parceiro chamado Hernando e os dois dividem um apartamento na parte nobre da cidade do México. Contudo, Lito na sua luta para se afirmar acaba se envolvendo com vários problemas, sendo chantageado e inclusive entrando em crises de consciência. Pessoalmente eu não simpatizei com o personagem em si por achar sua história muitas vezes confusa, e na segunda temporada, quando ele saí do armário, muitos dos seus trechos e cenas pareceram meio forçados.

      De toda forma, o personagem para mim mais sem graça de Sense8 é a Kala, a farmacêutica indiana que é obrigada a se casar num casamento arranjado com um grande empresário de Mumbai, ela no antagonismo do tradicionalismo da sociedade hindu e de sua tentativa em se afirmar como mulher livre e independente acaba reprimindo a sua própria sexualidade, se podando muitas vezes pelo pudor e a personalidade. O fato é que a personalidade de Kala não exprime uma presença tão forte em Sense8 e fico com a sensação de que ela ficou negligenciada apenas a ser o par romântico de Wolfgang.

        O par romântico Will Gorski e Riley Blue  sempre foi para mim o elo mais fraco da narrativa, não só por ser o clássico "mocinha e mocinho" lutando contra o vilão, Sussurros, como a própria história de Gorski é completamente chapa branca, um policial que investiga um crime e acaba se tornando o chefe dos Sensates de vez. Numa relação entre o resquício da corporação da polícia de Chicago e um escândalo de segurança nacional sob um suposto terrorista chamado Jonas, Will é obrigado a fugir quando acaba sendo rotulado como terrorista em sua investigação.

        Nisso entra a trama sense8, de que os sensates fazem parte do ramo evolutivo da humanidade, homo sensorialis, um suposto ramo da humanidade em que a comunicação se da por sentimentos e telepatia em vários locais do mundo, criando uma atmosfera transcendental de experiência, criando um "ubermensch", com o tempo, a trama vai desenrolando e mostra que existem outros grupos de sensates e que eles estão sendo caçados por organismos governamentais à procura do seu controle e eventual extinção (na verdade, Sussurros utilizará  depois Sense8s como armas de guerra).

        O problema é que Sense8 era uma série bastante promissora, mas ao invés de solucionar algumas lacunas criou apenas mais lacunas. Não desenvolveu explicações sobre como surgiram os sense8s, e de como as organizações governamentais instituíram a caça aos homo sensorialis, nem tampouco desenvolveram a história de Sussurros ou mesmo da mãe dos sensates, Angelica.

       Para piorar, a trama da segunda temporada desenvolveu-se de forma bastante devagar, o Especial de Natal ficou aquém das expectativas e a fuga de Sun, bem como sua vingança tiveram um capítulo final decepcionante, sem falar do final em que não se explica o  que acontece com Wolfgang.

This is the end... My only is a friend is the end


      Sense8 perdeu um nexo narrativo e um desenvolvimento da sua própria história ao ficar muito preza ao lado pop da série, de ter se tornado uma série jovem, com uma temática global e lgbt, ao invés de darem desfechos para a narrativa, Sense8 caiu no aspecto Matrix, de deixar ainda mais lacunas a serem resolvidas. As próprias produtoras, Lana e Andy Wachowsky não estavam conseguindo manter a qualidade do roteiro de Sense8 e a interpretação de alguns personagens falhou.

     O orçamento de Sense8 é um dos mais caros de toda Netflix e o retorno financeiro pode não ter acompanhado às ideias dos executivos da firma, já que Sense8 era uma série de um público específico, branco, escolarizado, jovem entre 18-25 anos, provavelmente universitário e que fosse sensível aos dilemas do século XXI. Não foi pelas orgias de Sense8 que deixaram a série se perder, não foi porque a série era particular demais, é porque a proposta é muito recente e a produção de Sense8 demorou demais. Dois anos entre uma temporada e outra.


     Sense8 era uma série do século XXI para pessoas que pensam o século XXI, com todos os seus desafios e dilemas. É uma série jovem e atual, que se perdeu por não ter acompanhado as expectativas de seu próprio público Então, é triste ela ter sido cancelada, mas ela foi cancelada por não dar mais o retorno esperado à Netflix, mas o mínimo que poderiam ter é um episódio final que resolvesse os dilemas, mostrasse o que aconteceu com Wolfgang e uma verdadeira vingança de Sun, porque foi triste o desfecho dos dois últimos episódios da segunda temporada.

Contos Moscovitas



Prólogo

            Na linha de frente do campo de Borodino desenrolava-se preguiçosamente uma extensa e estreita vala por sobre a terra dura e um pouco encharcada. Ali, uma extensa trincheira cortava o seio do barranco por onde Mikhail Kutuzov e Napoleão Bonaparte se digladiaram há cento e trinta anos atrás.
            Cento e trinta anos e outra guerra aparecia. Com o fracasso das linhas de defesa Molotov, perto da Grande Cidade de Novgorod e a linha de defesa Stálin frente ao avanço feroz das tropas fascistas, as longas e vastas planícies da Sarmácia ficaram a mercê da audácia hitlerista, bem como as florestas da Ucrânia e da Bielorrússia.
            Felizmente ira implacável do clima russo agiu mais cedo, a rasputitsa controlou o avanço alemão que poderia ter sido fatal nesses dias negros, dando tempo para que se desenrolasse uma linha de defesa na grande capital, o centro da Mãe-Rússia. Moscou.

            Com as  tomadas de Kiev, Kharkov, Sebastopol e Novgorod, a situação se mostrava bem clara que tinha sido um erro ter confiado no pacto de não-agressão com os alemães, de maneira que Leningrado resistiria bravamente enquanto Moscou teria que se levantar mais uma vez.

            Moscou inteira foi mobilizada, pelas avenidas, pelos becos e ruas, tudo o que se via era a mobilização de homens para lutarem na frente, com rifles em falta, resistindo como podiam ao rigor do Inverno de 1941-42, que vinha sendo o mais rigoroso até então. As crianças saíam das escolas para cavar trincheiras na terra endurecida pelo Inverno, as mães iam às fábricas para construir o armamento usado na guerra, enquanto os pais, esses sim se agrupavam nos batalhões de voluntários no Bairro Operário.
            O medo quase irracional da derrota contaminou o seio da sociedade soviética, de maneira que Moscou era o único grande baluarte que ainda poderia resistir na Europa em ocupação, de maneira que introjetam-se até hoje os medos e as desconfianças da guerra na sociedade russa atual.
            São dias difíceis em Moscou; dias que não podem ser esquecidos, mesmo sob o esforço inconsciente de nossa parca memória de trair nossas lembranças. Afinal, quem se lembrará da multidão faminta clamando por pão na rua Gorky? Que se lembrará da Central de Alistamento na Arbat? Tão poucos.
            Mas quem poderá esquecer o desespero e o medo nos olhos? E o frio, sobretudo o frio. São dias difíceis em Moscou, bem difíceis.




Conto I

            São dias negros na planície moscovita, nesse barranco junto ao rio Moskva desenvolve-se o sagrado Kremlin de maneira tão imponente nesses difíceis meses de guerra. A cidade está cada dia mais fria e melancólica, a neve cai diante os nossos próprios olhos enquanto vagamos vagarosamente na fila por um pouco de pão.

            O frio corta-nos os ossos, o vento siberiano agride nossas têmporas tão gastas enquanto a úlcera corrói nossos estômagos vazios. O oficial da Gosplan olha para nós com desprezo, mantém-se insensível diante os constantes apelos das mães por um pouco mais de pão.

            Sensibilidade é uma palavra que foi varrida do dicionário, foi expurgada tal como o pessoal dos processos da década de 1930. Compaixão é outra palavra tão perigosa que nem merece ser citada. Ela é tão perigosa que pode levar a morte.

            São dias tenebrosos desde que os fascistas alemães invadiram traiçoeiramente nossa pátria e varreram tudo o que estava à sua frente em questão de semanas;  Ninguém, da Ucrânia aos Urais, consegue passar uma noite de sono tranquilo sem se lembrar que os alemães podem um dia aparecer e destruir tudo o que temos mais direito: nossas vidas.

            Ouvimos todas as noites o barulho dos aviões inimigos sobrevoando nossa capital; Ouvimos o modo como a nossa Força Aérea e as brigas anti-aéreas tentarem inutilmente digladiar contra os inimigos da nossa Pátria. A correria, os gritos. Todos desesperados tentam se proteger no metrô, de maneira que as estações ficam apilhadas de pessoas.

            Descobri essa manhã que os alemães criaram uma rádio em russo divulgando notícias falsas para nos enganar. Hoje pela manhã divulgaram que o Kremlin tinha ido ao chão após o maciço bombardeio alemão. É claro que eu não acreditei nisso e tive que olhar pela janela. Mesmo que o nosso exército não seja invencível, especialmente agora, desde   que a Rússia é a Rússia o Kremlin sempre se manteve de pé; Napoleão nunca conseguiu por abaixo algo que estava em nosso espírito.
            Entretanto, mesmo com essa série de mentiras, até que a rádio toca umas músicas boas. Hoje mesmo tocou Stravinsky. Mas quando começa a parte do noticiário a gente coloca na Rádio Moscovita.
            Acredite bem em mim quando eu digo que são dias difíceis, dessa fila, em meio ao inverno moscovita, segurando a minha ushanka para que não se perca junto ao vento, voltando sujo de graxa da fábrica, eu digo que eu sinto um peso no coração quando eu lembro que tudo que a guerra produz é frio e fome. Isso na Rússia só faz crescer o nosso medo da morte.
            Queria poder chorar, mas lembro de que nesse frio cortante minhas lágrimas iriam escorrer pelas minhas rugas, e também pela minha barba, e terminaram por congelar tudo em volta, principalmente o meu coração.
            Desolação — tudo que eu vejo ao andar por essas ruas. Os balões meteorológicos descendo pela rua Kirov, os batalhões de milicianos marchando para fora da cidade velha.

Ali no descer da rua Tverskaia, pode-se encontrar o Café Pushkin fechado. Não há ninguém que se possa olhar nessas ruas. Tudo o que eu vejo são cadáveres ambulantes: mulheres esquálidas, crianças doentes e jovens soldados indo ao encontro da Morte.
Esses mesmos soldados ontem brincavam junto ao bairro operário, na Krasnaia Presnia prospekt, na rua Barricadnaya ou mesmo na área do porto na Krasnopresnensky. Esses meninos outrora formaram gangues nas ruas, órfãos de pai e mãe muitas vezes não tinham mais nada a fazer do que cometer alguns delitos. Hoje vão todos esfarrapados nas carrocerias dos tanques e dos tratores dos Kolkozes  locais. Marcham lado a lado nas fileiras de aço para o moedor de carne.

Vês como é triste presenciar tudo isso? O pânico que se respira em meio ao frio. Ontem mesmo houve distúrbios na rua 1905 a. por mais pão, o NKVD respondeu por sua própria sutileza, à bala.
Um oficial do NKVD, um jovem rapazola de uns vinte e poucos anos de idade, que nem tinha barba direito, fuzilou a todos com os olhos e praguejou enquanto atirava para o alto:
“— Não têm vergonha? Que querem que façamos? Que entreguemos tudo para os alemães? Vocês são agitadores, sabotadores e inimigos do Povo. Já estamos fazendo tudo que é possível, mas vocês devem entender bem  a mensagem do camarada Stálin, essa uma luta até o final e em lutas assim acabam-se fazendo sacrifícios. Ele continua em Moscou enquanto muitos de vocês pensam em sair. O que há com vocês?”
Um velhinho de aspecto um pouco sombrio, pela velhice e pela fome também, se aproximou do oficial e olhando-o de aspecto tenro e humilde, como se fosse o seu próprio pai, disse em um tom particularmente fraco:
— Nós temos fome, camarada tchequista. Nós só temos isso. Dê-nos um pouco mais de pão, pois sem isso não podemos fazer nada.
O oficial não expressou  nenhuma mudança de expressão e aproveitando-se do tumulto no meio da multidão fuzilou à sangue-frio o velhinho com a sua pistola Nagant. O velhinho caiu de joelhos no chão e olhou sem acreditar no que o rapaz tinha feito. Cuspiu um pouco de sangue e desabou no asfalto com o chute no rosto que levou do tchequista.
— É isso que vocês querem? Continuem a trair a nossa Mãe-Pátria e será isso que acontecerá a todos vocês.
O corpo tremelicou um pouco com o frio, mas depois de alguns minutos ficou inerte, ao contrário da multidão que demorou a ser contida por cinco ou seis tchequistas armados até os dentes.


São dias negros em Moscou, eu disse que eram. Jovens matando os velhos, mães implorando por um pouco mais de pão. Medo, dor, desespero, sofrimento, e sobretudo... Frio, muito frio.

Haber e o uso da ciência para o "bem" e para o "mal"

A figura mais controversa pra mim na história da Ciência não é Oppenheimer (pai da bomba nuclear), nem Alfred Nobel (criador da di...