Para a desgraça do povo ucraniano a relação de um país dividido em dois mundos trouxe reverberações cada vez mais dramáticas. A Ucrânia assim como boa parte do leste europeu é uma terra em que tudo o que não existe é unanimidade, sempre há discussões acaloradas, seja sobre os rumos do país, seja quais serão os papéis que os ucranianos devam desempenhar no mundo e o que esperar do futuro. A Ucrânia tem um longo passado, que remonta o século IX, um passado de relação tênue com a Rússia.
Mas os eventos dramáticos conduzidos pela relação com a Rússia levaram ao crescimento de um pensamento russofóbico, fundamentalmente assentado com as medidas conservadoras e repressivas de um Império em decadência, seja os pogroms realizados no sul da Ucrânia na época dos Romanov, seja as coletivizações forçadas dos soviéticos.
Os ucranianos são um povo normalmente conhecido por sua humildade, afinal boa parte da população ucraniana surgiu do campo, e o seu sofrimento é algo que sempre foi extravasado seja por sua cultura de danças, músicas e gopak, com o auxílio de uma religiosidade incrustada a valores campesinos. Os ucranianos sempre tiveram que lidar de alguma forma com as invasões de outros povos, seja poloneses, teutônicos, franceses ou alemães. Os russos sempre tiveram uma presença muito forte na região conforme seus valores culturais semelhantes e a língua.
Para os ucranianos não é tão fácil viver numa situação tão submissa em relação à Rússia ou à Europa, as terras ucranianas sempre foram vistas como um campo de trigo cheio de riquezas para ambos os lados, e a Ucrânia sempre sofreu pela condição de ter as terras mais férteis do mundo. Por isso, há interesses imediatos da União Européia em tornar a Ucrânia em um celeiro da Europa.
Para a Ucrânia uma eventual entrada na União Européia resultaria numa melhoria do padrão de vida dos cidadãos ucranianos, que participariam dessa forma da comunidade europeia, mas isso resultaria também num aumento do desemprego que é relativamente alto. A indústria ucraniana não é competitiva frente às indústrias da comunidade européia e com a revogação das taxas alfandegárias, boa parte acabaria fechando as portas frente a competição acirrada de outras empresas.
Além disso a comunidade européia exige nesse dado momento um plano de contenção de gastos de cada um dos membros para a superação da crise de 2008, isso inclui redução dos gastos públicos e dos programas de seguridade social. O que para alguns setores acostumados com o legado da União Soviética é impensável, além disso, grupos ligados à corrupção, tráfico de drogas e de mulheres seriam tratados com maior rigor (trazendo assim problemas à Máfia ucraniana).
A Ucrânia está na balança de pêndulo. A Rússia tinha oferecido uma proposta diferente, de manutenção da indústria ucraniana atrelada à também indústria obsoleta russa, uma abertura de mercado entre os dois países e um fornecimento mais barato do gás russo (do qual a Ucrânia é dependente), entretanto em fins práticos a Ucrânia só reafirmaria a sua dependência histórica da Rússia.
O medo de alguns setores ucranianos e de boa parte da União Européia é que a União Euroasiática de Putin reverbere para uma aliança que ponha em cheque algum dia à União Europeia para a sua expansão para a Europa Oriental (e não a retomada da União Soviética como diriam alguns menos informados).
Os ucranianos passaram por aquela crise institucional com a queda de Yakunovich e a intervenção russa em Sebastopol, assim a crise financeira resultante da inflação e dos efeitos de 2008 na economia ucraniana se agravou, o povo passou a lutar nas ruas de Kiev por uma liberdade do "jugo russo" e o "sonho europeu", essas pessoas querem ser consideradas ocidentais, querem consumir do bom e do melhor, e não estão erradas.
A despeito do paradigma de lutas, em que alguns ucranianos se veem mais temerosos com o que a União Europeia oferece e por isso se voltam para a esfera de influência russa, ainda tem um problema crucial, há um número alto de russos que permaneceram na Ucrânia em decorrência da queda da União Soviética, são cidadãos russos que forçosamente ou não ficaram em outros países e não são vistos com a mesma condição que os cidadãos locais.
O caldeirão cultural da Europa Oriental sempre foi motivo de grande dor de cabeça, principalmente para as proposições generalizantes dos países ocidentais, e a rigor, os ucranianos são vítimas de um processo de esfacelamento identitário, não só porque estão perdendo seus vínculos tradicionais, como estão sendo divididos em duas identidades: Ucranianos pró-Ocidente e Ucraniano pró-Rússia.
Essa divisão traz resultados que só poderão ser observados a longo prazo, é uma "nova separação da Alemanha" só que sem um muro de Berlim, a retórica de ambos os lados não auxilia muito:
A União Europeia acusa a Rússia de ferir a autodeterminação dos povos ao intervir militarmente na região da Crimeia (que não é tradicionalmente uma região ucraniana) e de incentivar o movimento separatista da Ucrânia Oriental, e a Rússia acusa a UE por incentivar um bloqueio econômico contra a sua economia, financiar grupos neonazistas e ter propiciado um golpe ao governo eleito de Yakunovich.
Os dois lados estão certos e errados ao mesmo tempo. A situação insustentável que a Ucrânia foi levada não teve outro resultado senão uma nova guerra civil, e a ilusão falsa que tivemos de uma nova Belle Epoque dos anos 90 até 2008 se encerrou com a constatação máxima que acumulamos 20 guerras civis desde 2007.
A capacidade que o ser humano tem em se autodestruir por ideias é impressionante, os massacres no aeroporto Sergei Prokofiev, em Donetsk, onde o exército ucraniano e rebeldes levaram a um morticínio sem fim nas veredas do asfalto da pista, com corpos se acumulando entre carros e ambulâncias de socorro paradas. Franco-atiradores, milicianos e ataques aéreos numa região que anteriormente estava carregada de turistas para assistir a Eurocopa de 2012 (a de reconciliação entre a Polônia e Ucrânia).
Os desvios, o turismo sexual e os protestos que emanaram do Femen já mostravam que as coisas na Ucrânia já não estavam muito boas em 2012, mas chegaram ao cataclismo dramático de mortes e atmosfera balcânica que se respira nos bosques e nas ruas de Kiev, Kharkov e Donetsk.
Os jornais ocidentais e os governo anglo-franceses elegeram a Rússia como a grande vilã ao status-quo europeu e exerceram um bloqueio à "tirania ultrajante de Putin", Obama se enfiou no meio da briga para a procura de status junto à sua queda de popularidade cada vez mais dramática desde sua eleição em 2008 e Putin desejoso em se manter como um líder inconteste da Rússia pós-Yeltsin articulou-se com a Igreja Ortodoxa e setores conservadores o édito contra os homossexuais na Rússia, bem como os incentivos aos grandes magnatas russos na economia de petrodólares após a queda da URSS.
É terrível o que essa falta de comunicação entre a diplomacia europeia produz aos ucranianos, e depois dos massacres em massa, com verdadeiros pogroms promovidos em praça público pelos neonazistas ucranianos, ou mesmo pelo próprio Exército Ucraniano a seus cidadãos, Angela Merkel veio conversar em bom russo com Vladimir Putin na cerimônia para celebrar os 70 anos do Dia D, que ocorreu na França no dia 6 de junho, onde Putin também conversou com Obama.
Provavelmente a crise ucraniana na parte diplomática pode estar se resolvendo, mas do ponto de vista humanitário não, a cultura política do país foi esfacelada, pessoas foram literalmente trucidadas em praça pública e os ódios e revanchismos demoraram para serem apagados, e tudo por um jogo de interesses hipócrita que controlou a mentalidade de enfrentamento tenaz comum aos povos eslavos.
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