O hospital de Prestígio, um desses pequenos recantos perdidos no
interior do Brasil, era uma construção deprimente de três pavimentos na avenida
central da cidade. Muito longe de um hospital de renome, era uma construção sem
graça que não se destacava dentre as outras. Na minha vida eu tive a
oportunidade de ver vários edifícios, arranha-céus, casarões, palacetes e
torres, mas esse hospital foi algo que gravou-se em minha memória.
Rebocada e pintada de branco, com telhas portuguesas meio
escurecidas, a construção tinha uma fachada semi-destruída que lhe assemelhava
a uma velha corcunda, pequena e de touca. Ali em frente tinha um desgastado
jardim na entrada onde a terra vermelha tecia redemoinhos diante da ação do
vento parado. Na verdade tudo naquela cidade era meio parado.
As persianas do hospital sempre estão fechadas, afinal para os
moribundos que vão ao encontro da morte qualquer fonte de luz é dispensável
frente a dor de toda sorte de moléstias. Não se abrem as janelas pois os
pacientes não podem sentir o ar fresco sem chorarem de tristeza. E o restante
da humanidade se agrada com um pouco mais de ignorância.
Ignorância afinal era algo que não compartilha o doutor Reinaldo
Peixoto, o jovem médico que tentava dar um pouco de ordem ao lugar onde os funcionários
públicos são peritos em se coçar. Era estranho que aquele jovem rapaz tenha
vindo para um lugar tão esquecido no meio do nada. No verão, o local é tão
tórrido e abafado e no inverno tudo fica ligeiramente viciado e cheio de um
completo tédio, isso era bem diferente do calor pulsante da capital, dos cafés,
restaurantes e boates. Das paqueras, das viagens e de toda aquela sorte de
gente que pensava em algo maior que um simples reumatismo.
Mas estranhamente Reinaldo gostava de trabalhar naquela clínica de
interior, de paredes de azulejos meio sujos e uma atmosfera causticante de água
sanitária de hospital. Os doentes, todos ligeiramente velhos, agonizavam de dor
num canto e noutro esperando os últimos suspiros no Hospital. Reinaldo era o
único médico no hospital, os outros se cansaram daquele lugar entediante e
foram para outro canto no estado.
O salário era um assassinato, todos os dias tinha que contar as
moedas para um cafezinho, a prefeitura não pagava em dia e volta e meia faltava
aspirina, mas ele estranhamente não reclamava, viver num hospital de interior é
conhecer pessoas como simples pessoas.
Numa dessas tardes, o clínico-geral estava sentado na emergência,
sem nada para fazer. Apenas observando a segunda fileira de pacientes enquanto
puxava um trago de seu cigarro; Os pacientes só apareciam cada vez mais, só
naquela manhã ele tivera que atender o velho Gurgel, da mercearia, que
novamente teve um ataque de pressão:
“Manere no sal, seu Gurgel”, disse
enquanto tirava a sua pressão.
Teve que atender Dona Maria que
tinha uma dor nos quadris e a velhinha logo se dedicou a mostrar fotos de seus
cinco netos:
“Esse é o Albertinho, ele é tão
inteligente que chega a parecer com
você, doutor. Ele já sabe a tabuada de cabeça,
nunca vi criança mais inteligente. Pena que passe muito tempo no
computador, nessa coisa; Feice, feice, Feicebouk, sabe?”
Ainda teve que atender a filha do
delegado Nogueira que estava com uma virose pesada:
“Sua garganta está toda inflamada,
menina, você está cheia de pus aqui na altura da laringe. Vou receitar uns três
antibióticos para ver se isso resolve.”
E por fim teve que aguentar a
pregação da beata Joana:
“O sangue de Jesus tem poder, se não
fossemos imperfeitos frente ao senhor não teríamos doenças ou moléstias, estaríamos
junto deles no paraíso cuidando de nossa felicidade. Não precisaríamos de
remédios ou esparadrapos”
“Pois é, sem remédios ou
esparadrapos você pode encontrar-se com ele mais cedo, então? Topa?” — troçou.
Mas de repente, não mais que de
repente, ele parou e foi fumar o cigarro. Seus olhos enrugaram rapidamente e
ele olhou para a segunda fileira, seus olhos reviraram, mas não tinha ninguém
especial ali, apenas Dona Silvana e sua filha Mariana. Sua respiração parou,
ele afastou o cigarro, inclinou-se para frente e... atchim. Espirrou como vocês
mesmo perceberam, não há nada errado em espirrar, do gari ao presidente da
República todo mundo espirra, é quase um vocabulário universal dos doentes. Mas
um médico não pode pensar em espirrar.
Reinaldo nem por um instante ficou
embaraçado até encontrar o filete de catarro verde escorrendo de suas narinas,
rapidamente encolheu o lenço com vergonha sobre o nariz, mas já era tarde todo
mundo na segunda fileira tinha visto.
Reinaldo deu uma tossidinha para o
lado e tentou fazer um charme, mas o estrago já estava feito. Continuou a
atender a todos normalmente, mas toda vez que olhava para a segunda fileira,
dona Silvana tecia um olhar de nojo e Mariana sorria.
Mariana era sua companhia quase
todos os dias, ainda jovem, era uma morena levada com jeito de moleca que
sorria do jeito rigoroso de doutor Peixoto, não que tivesse rostos novos todos
os dias em que ia trabalhar, mas Mariana era uma figura diferente. Não era
bonita, nem feia, também não era tão especial quanto parecia ser, era apenas
uma menina de interior que tinha uma paixonite pelo doutor.
Doutor esse muito profissional, que
não podia pensar em sair com a filha de suas pacientes, ainda que fosse jovem.
Dona Silvana era uma pessoa visivelmente séria que depois da descoberta de seu
câncer de colo de útero ficou mais séria ainda, quase não conversava com outros
pacientes e ficava impaciente quando ia fazer os exames na capital.
— Como vai doutor? — apertou-lhe a
mão.
— Bem, dona Silvana. O que posso
fazer pela senhora, hoje? — E apertou a mão de Mariana, que ainda aos risos, também o cumprimentou — Como
vai, Mariana?
— Nada em especial, vim trazer o
resultado daqueles exames.
— Ah, sim, vamos ver isso...
Pegou o papel das mãos da senhora e
foi até sua mesa tentar ler mais um pouco, dona Silvana o acompanhou com os
olhos, ainda com o olhar de nojo; Mariana continuava sorrindo.
— Bom, deixe-me ver... — Começou a
ler — O câncer parece estar regredindo, o tratamento de quimio está dando
efeito, isso quer dizer que demos a sorte de identificar o câncer cedo.
— E quanto ao órgão? — Disse meio
constrangida.
— Pelo que eu vejo, não precisa
retirar. Vamos ver nos próximos meses.
— Ah, obrigado, doutor. Você não
sabe o quanto isso me deixa tranquila agora.
— Sim, foi uma sorte. O grau do
câncer está baixando, ainda assim vamos ter que continuar com o tratamento de
quimio. A sua filha pode continuar te acompanhando? Você sabe que a partir de
agora você vai ficar mais debilitada, com os corticoides e toda a química.
— Sim, doutor, eu compreendo.
Reinaldo continuava estranhando o
comportamento das duas, em todo caso não fez muito caso da situação, até que de
repente, dona Silvana ao sair comentou:
— Doutor, que mal me pergunte: Mas por que o
senhor está sem suas calças?
Mariana teve um ataque de risos na
hora e a mãe também teve que se conter. Quando Reinaldo olhou para baixo e
percebeu que estava sem suas calças tentou se cobrir com a camisa com as maçãs
do rosto vermelhas que nem um tomate.
— Ora, mas que coisa inconveniente!
Como isso aconteceu?
E suas calças tinham saído quando
tinha espirrado.
Foi quando acordou e se encontrou
dormindo em cima do divã da sala de espera.
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