sábado, 20 de julho de 2013

Lembranças de Volgogrado



        Ninguém poderia dizer que havia um  céu tão límpido e azulado quanto naquela tarde. Preguiçosamente alguns flocos remanescentes dos feixes do gigante Sol batiam na fronte desse pequeno velho que agora anda calado; era um senhor amável, de aspecto meio bexiguento que caminhava um tanto encurvado, aparentando ser mais velho do que era. Era talvez como o seu avô, mas não tinha um único sorriso enquanto caminhava naquela praça  com o netinho.

          — Aqui, meu neto, ficava a fonte Barmaley, uma fonte de pedra esculpida em torno dessa praça para celebrar um conto infantil, escrito por um escritor russo, Korney Chukovsky.
          — Onde, vovô? Eu não vejo nada.
          — Ficava aqui, ela ficava exatamente aqui onde estou.  Era uma fonte linda, tinha no alto seis criancinhas dançando em volta de um poderoso jacaré. Veja, veja, tenho uma foto dela.

          O velho mostrou-lhe então uma fotografia meio envelhecida, já um pouco gasta, da dita fonte que agora não mais existia.
"Essa é a fonte Barmaley, meu neto"

            — Essa é a fonte Barmaley, meu neto; Foi aqui onde eu beijei a minha primeira namorada, eu tinha mais ou menos a sua idade quando tudo aconteceu; Eu lembro que quando dava domingo, as crianças pulavam na água para se refrescar ou mesmo se esconder no pique-esconde e os namorados compravam uma casquinha de sorvete bem ali naquele bosque.
            — O que aconteceu com ela, vovô? — Inquiriu o netinho curioso.
            — Algo terrível, meu neto. Ela se perdeu junto com a minha infância.

            Deixou um filete de água cair dos olhos, o idoso não teve a coragem de enxugar as lágrimas, tampouco esconder os seus olhos tão inchados. Com um aspecto meio sombrio começou a contar uma história para o netinho.

            — Eu tinha oito anos, eu ainda era uma criança quando vim para Stalingrado pela primeira vez. Estávamos saindo do campo para tentar uma vida melhor; Meu pai era violinista, o som de suas músicas dele continua a tocar na minha cabeça... Korsakov, Balakiev, os grandes sabe? — O neto não compreendeu o que o avô dissera, de certo não sabia essa parte da música — Ah! Que estou falando, você é muito novo para entender sobre música; talvez não  refletiu, afinal, que criança hoje em dia saberia quem foi Rimsky-Korskov ou Mily Balakiev? — Os grandes compositores nacionalistas, os nossos músicos tradicionais. Com a invasão nazista em Stalingrado, para o nosso povo, esse era um simbolo de esperança, para os nazistas, de resistência.
            — Do que está falando, vovô?
            — Um dia, um dia, a Gestapo bateu em nossa casa; uma patrulha qualquer, achavamos que só queriam um pouco de comida, mas não era isso. Um oficial entrou arrombou a nossa casa, eu estava brincando na sala quando eu vi ele, parado bem ali na porta. Sorriu para mim com um aspecto diabólico. Minha mãe correu em minha direção e me escondeu no armário da cozinha, antes que eles me encontrassem de novo.
            — E depois, vovô? E depois?
            Viktor  Gadzhiev, engoliu seco, tentou inutilmente lubrificar a sua garganta já muito gasta: a voz lhe falhava naquele ponto... Medo, cansaço? Talvez os dois, mas em todo caso Gadzhiev tomou um pouco de coragem e retomou sua história.

            — O oficial tinha olhos tão escuros que chegavam a torcer sua alma, e o aspecto vitríneo da cicatriz em seu rosto até hoje me apavora nos meus mais terríveis pesadelos. Eu lembro do modo como fitou a minha mãe, e gritou alguma coisa em alemão... Minha mãe não falava alemão então levou um golpe na cabeça, eu só pude ver o modo como eles a arrastaram como um animal para o divã da sala... Ela devia saber que estavam à procura do meu pai.
            O neto fitou-lhe com olhos arregalados, estava assustado com a naturalidade que seu avô contava aquela história... Gadzhiev não esboçava nenhuma emoção em seus lábios e tinha perdido toda a cor de seu rosto, estava mais pálido que um cadáver. Pergunto eu se depois dessa história ele não queria ser um cadáver.
           — Eles entraram no quarto dos meus pais,  procurando o meu pai, e quando eles o acharam, dormindo na cama, cortaram a sua garganta sem cerimônia; Eu pude ouvir da cozinha os gritos da minha mãe chorando — Um soluço tomou sua voz nesse momento   O nazista voltou com os seus encarregados para a sala e de um sinal para o SS que a segurava contra o sofá. Com uma tranquilidade absurda, disse em um russo muito ruim: "Agora, eu já eliminar o seu marido, vamos terminar tudo isso de uma vez, Russiche Schein!"
         Sua voz estava trêmula naquele ponto,  mal conseguia segurar a emoção que de tal magnitude fazia com que tremelicasse suas mãos :
          — Eles cortaram, rasgaram as roupas da minha mãe, na minha frente... E eles a violentaram; um a um, enquanto cuspiam,  xingavam e a humilhavam... Nenhum daqueles terríveis momentos sai da minha cabeça. O modo como o meu pai foi morto, como um animal, tomado pelo sangue de suas próprias cordas vocais, e a minha mãe, sendo violentada por aqueles sete malditos "fritzies" e depois estrangulada para que não contasse sobre tudo aquilo...
        

          —  ...Eles reviraram tudo, tudo que pudesse ter valor foi levado e logo em seguida atearam fogo em tudo  Gadzhiev soltou um tímida lágrima no canto do olho esquerdo, uma lágrima que passaria despercebida senão tivesse tomado o aspecto delgado de suas rugas — Eu era uma criança, uma simples criança, eu não sabia o que era vida até aquela hora. Eu podia ter feito algo, eu podia ter salvado meus pais, mas não eu fiquei lá, no armário, imóvel, enquanto aqueles malditos chucrutes faziam aquelas barbaridades com eles... Desde esse dia não consigo dormir sem me lembrar do que fizeram com os meus pais.

           O pequeno Anton abraçou o avô no tronco e com dificuldade ergueu seus olhos em direção ao choroso avô.

          — Não chore, vovô, não chore, o senhor não tinha culpa. O senhor não tinha culpa.

         O velho abaixou-se e abraçou o seu querido neto enquanto soluçava baixinho, Gazhiev num dado momento não conseguiu se controlar e já chorava à plena voz enquanto alguns transeuntes olhavam para a cena perplexos. Gazhiev soluçava de dor,  era a guerra. A guerra contra si mesmo, a guerra contra a culpa e o sofrimento.

        Com dificuldade as  lágrimas se secaram e em seguida levantou-se para caminhar junto ao neto pela Prospekt .

        — Eu corri  por essa mesma avenida há setenta anos atrás. Esperei os alemães saírem da casa dos meus pais; Fui sem rumo até encontrar aquela fonte abandonada, onde me sentia mais seguro. Entrei nela e me escondi e foi ali que eu passei a minha primeira noite na rua.

        Gazhiev estava estranhamente sério e sua voz estava mais clara do que nunca:

         — De manhã, quando acordei, encontrei  uma nuvem de fumaça no Céu; o ar estava meio difícil de respirar foi quando me levantei e ouvi passos pesados na Prospekt, e um rugido asqueroso de motor passando pela prospekt.. Eu achei que fossem dos nossos, mas quando tirei a minha cabeça da fonte, vi que não eram nossos irmãos... Eram alemães. 

        Gazhiev apontou para onde os nazistas passaram, num entroncamento de ruas bastante pacífico hoje no centro de Volgogrado. A cidade estava mudada, mas ele conseguiu localizar  por onde o regimento alemão tinha passado:

        — Voltei para a fonte, e fui me arrastando para não ser percebido, foi então que ouvi tiros por todo lado, me fingi de morto na hora. Morto de medo ou não. Bem isso não importa.
       — Eles te encontraram, vovô?

       — Eu também pensei nisso, mas não... Eram nossas tropas,  um grande ataque suicida contra os alemães, quando dei por mim já estava rolando sangue... Tentei me esconder, de todo o jeito que podia , tentei me esconder no que tinha na fonte... Então encontrei um soldado, um dos nossos com certeza. Estava ferido,  agonizando bem ao meu lado. Não sabia como agir, era um homem  forte, nunca julgaria que alguém como ele poderia  chorar que nem uma criancinha, mas ele estava.

— O que aconteceu com ele, vovô?

— Ele foi ferido na perna,  não ia sobreviver... Foi quando  percebi que aquela fonte não era só uma fonte, mas uma vala para os nossos soldados.
— Quer dizer que...
— Sim, eu estava no meio dos mortos... Eu conheci a morte muito cedo, meu neto.

"Sorte a minha que quando tudo acabou eu pude desaparecer dali entre os mortos. Nunca imaginei o que poderia ter acontecido comigo se não tivesse saído dali, talvez eu teria sido morto, talvez os nazistas teriam me pegado e eu estaria morto nos fornos de Auchwitz, o fato é que nada me fará esquecer daqueles dias, meu neto. Nada"

— Aqui foi onde o soldado Akaki Akakiev me encontrou vagando pelas ruas de Stalingrado. Ele me levou pro QG e eu fui evacuado para o outro lado do Volga junto com outras crianças. Descobri mais tarde que Akakiev morreu com estilhaços de bomba à caminho de Berlim, mas que sempre lembrava de como tinha salvado um garotinho em Stalingrado.

"Vês tudo isso? Vês, meu neto? Isso, esses prédios não escondem o que aconteceu aqui. O modo como vi os corpos se multiplicarem bem naquela fonte, ou o modo como os nazistas mataram os meus pais. Aqui, esta cidade, tudo isso aqui está repleto de histórias. Toda a vez que venho para essa essa cidade, tenho lembranças, boas ou ruins, da minha infância. Daquela fonte onde beijei minha primeira namorada, ou daquela mesma fonte onde vi o sargento Iagin morrer diante os meus olhos. A guerra é uma coisa asquerosa, toda vez me lembro disso quando venho aqui. Essas são minhas recordações, as quais não desejo para você".


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