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sábado, 28 de fevereiro de 2015

Um homem chamado Leonard Nimoy

      Vivemos uma época tão trágica onde nossos ídolos morrem mais rápido do que os nossos próprios inimigos. Nossos sonhos desaparecem sob a penumbra da noite e sozinhos na escuridão tomamos consciência que o farol que devemos seguir não é a tela branca de um computador.


        Tratar de um ídolo sempre é uma experiência particular, principalmente quando tratamos com familiaridade, Esse é o caso de Leonard Nimoy. Hoje eu choro a morte de um amigo distante, o qual nunca vi pessoalmente. Nunca o olhei de perto e mesmo assim me  ensinou bem mais do que a erudição dos livros ou as pancadas da vida. Jornada nas Estrelas é uma religião e Spock era seu profeta. "I have been and always shall be, your friend... "


        Falar de Leonard Nimoy nos leva inconscientemente a falar do Senhor Spock. Mas Nimoy foi muito além de Jornada nas Estrelas. Ele é um exemplo do desafio de crescer num mundo repleto de medos e incertezas.   


          Leonard Nimoy nasceu numa família judia de Boston numa época em que os judeus começavam a ser perseguidos na Europa. Seu pai era um judeu ucraniano que fugiu da Revolução e se estabeleceu com muita dificuldade nos Estados Unidos, Nimoy vivenciou o preconceito e os anos difíceis da Depressão, até conseguir ser contratado como barbeiro quando adolescente. Serviu o Exército em 1953, e se inseriu no teatro e no cinema a partir da década de 50,


           Isso é a parte preliminar de uma carreira de ouro, quando criança ele ia à sinagoga com os seus pais e via os rituais chassidistas com particular curiosidade, como judeu asquenazim, era comum viver com rabinos de barbas longas e telefins pretos na cabeça.  Aos oito anos viu às escondidas uma benção estranha feita com a mão direita, na qual dois dedos se separavam do outro. Nem imaginava que isso  seria sua marca.

           Nimoy começou a fazer pontas em seriados importantes como Man of UNCLE, Get Smart e o piloto "The Cage", em que contracenou com o astro dos westerns Jeffrey Hunter, onde apareceu pela primeira vez o personagem Spock. The Cage é o piloto de Star Trek, e como disse Gene Roddenberry, era um filme de cowboys no Espaço, só que tinha uma temática muito intelectual para um seriado no início dos anos 60. 


           Foi a primeira vez que Nimoy usou suas orelhas de Metistofeles e a maquiagem verde. Um diretor de maquiagem da MGM foi quem lhe salvou ao fazer um molde de gesso de uma orelha de duende, caso contrário seria o fim prematuro de Spock. Spock era um personagem diferente dos demais, que a despeito de tudo, sorria.

        Mas Spock deixou de sorrir quando a série foi rejeitada. Ele e Gene Roddenberry construíram uma amizade sólida que reverberou quando foi contratado para uma viagem de cinco anos em Star Trek, onde contracenou com William Shatner, Deforrest Kelley e James Dohan. Se tornou um astro da televisão americana, e tentou seguir carreira de cantor com o sucesso da série. Mas a viagem foi cancelada depois de três anos.


             Teve problemas em lidar com o ego de Shatner inicialmente, assim como teve problemas com membros da própria tripulação da Enterprise. Nimoy reclamava do salário que era um "assassino", mas trabalhava num ambiente informal onde o seu filho o visitava no meio das cenas e aparecia para olhar o Senhor Spock na ponte de comando.


              Preso ao papel do vulcano Spock, ele passou a ter uma crise de identidade com o próprio personagem que o levou a escrever dois livros: I am not Spock (um fracasso editorial) e I am Spock. Com os filmes, passou a ter de novo a fama que lhe era merecida, onde fez sucesso com Star Trek: The Motion Picture e o espetacular The Wrath of Khan, com tamanho sucesso ele passou a dirigir o filme Star Trek: The Search for Spock. 



        Com o fim da série dos filmes e envelhecimento dos atores, era natural que Nimoy passasse apenas a fazer parte de convenções de Star Trek e alguns pontas na televisão, como foi no caso de Fringe. Ele estava mais dedicado em sair do cinema e  fazer trabalhos como fotografo, do qual nunca abriu mão. 


          Inovador e desvencilhado de preconceitos com as tecnologias, Leonard fazia desde comerciais até coisas elaboradas, como poemas, Mas o ponto alto de sua adaptabilidade  foi ser convidado para narrar o jogo Civilization IV e desempenhar um papel tão inusitado para os olhos dos fãs, mas crucial para o desenvolvimento de um jogo.


          O trabalho em Fringe lhe deu a chance de participar das refilmagens de Star Trek I e II com JJ Abrams, Deforest Kelley e James Dohan estavam mortos, enquanto Shatner estava envolvido com Boston Legal. Spock estava sozinho. Nimoy saiu de sua aposentadoria e passou a ser a ligação entre a série original e os remakes... 




             Seu envelhecimento e abatimento foram notáveis, principalmente com o passar dos anos. A saúde delicada provinha dos pulmões castigados por tanto tempo de gravações e cigarros tragados. Morou com  a esposa Suzan até os últimos dias e viveu longamente como todos os fãs esperavam. Nimoy era um homem diferente dos demais, assim como Spock. Ele era humano, demasiadamente humano. Humilde, sempre se ofereceu para dar autógrafos aos fãs sem qualquer tipo de cerimônia. Preocupava-se com alguns de seus fãs cuja saúde não estava boa e tentava seguir uma justa e judia. Vegetariano por opção. aberto a ideias, esse era Nimoy.


           Hoje morreu uma parte da minha juventude movida à aventuras, fantasias e emoções num futuro que não existiu, mas num passado que sempre me acompanhou, O exemplo de um ser mais humano que os próprios humanos, que nunca realmente existiu, mas se movia pela honra e a lógica. Nimoy era o verdadeiro Spock, embora ele negasse, porque a despeito da falsa lógica da dramaturgia construiu um personagem tão imortal e tão singelo apenas com a mera interpretação. Mas hoje Spock entra para a eternidade, graças ao gênio de Leonard Nimoy, Leonardo da Vinci da Califórnia.


        Spock é a humanidade dentro da modernidade e do mundo cada vez mais materialista que prossegue enrustida em sua humanidade, mas tem demonstrações diretas de emoções. Lealdade e honra, Spock sabe o valor da amizade o que o mundo contemporâneo destruiu e foi exemplo de construção de cidadãos que buscam um futuro melhor em meio à incerteza. Soluções rápidas, práticas e lógicas. Esse Spock tornou-se a raiz de uma filosofia de vida diferente das demais.


        Não é o culto à Razão Suprema de Robespierre, pelo contrário é o culto ao pacifismo, ao otimismo e ao progresso. Spock como desajustado socialmente representa um mundo de pessoas incapazes de expressar sentimentos, ou simplesmente sorrir, mas suas virtudes sempre foram levadas à sério.



         Nimoy fazendo ponta em Get Smart (Agente 86) https://www.youtube.com/watch?v=r_zowFvPgp8



       
         Nimoy como fotografo:
 



         Leonard Nimoy narrando Sid Meier's Civilization IV https://www.youtube.com/watch?v=XZlWmYe8HM4


Funny joke

         http://trekcore.com/specials/rare/ks_ultimatecomp.jpg


       
Lendo a MAD do outro lado da Galáxia




       
Momento no almoço



         Esse homem não tão distante de nós, que apenas com a representação de um personagem que nunca existiu e talvez nunca existirá no futuro trouxe um tanto mais de esperança num mundo tomado de medos e incertezas. Quando vozes se calam, outras se pronunciam. A ideia de Nimoy como uma pessoa notável na mesma proporção que a imortalidade de Spock. Um homem simples, demasiadamente humano. Esse era Leonard Nimoy.




                                                         Goodbye, mister Nimoy

domingo, 7 de dezembro de 2014

Garis

       Há muito tempo que meus dedos não massacram as letras com sua fugacidade, Crisálida envelhece a cada dia, escondida atrás de sua pequena pasta verde de plástico escovado. A velha Olivetti Lettera 82, 1963 está cada dia mais empoeirada sem que seu dono negligente tome nota de sua preciosidade embutida no escritório recém bagunçado. Os livros se acumulam ao seu redor e a poeira também.

        O rádio não toca mais há algum tempo e não há mais whisky debaixo do esconderijo. As ideias fugiram com o passar dos dias e a preguiça associada à inércia levaram o desaparecimento das palavras. O academismo sufocou a livre iniciativa, mas vamos há um conto negligente de dezembro.


        Como podem ver no céu, e no recanto de sua janela, Brasília chove quase a todos os dias. Chove de forma não programada, pegando a todos desprevenidos. Dessa vez fui eu. Atrasado, corria atrás de um ônibus que se tornou um fantasma em meio à mais uma greve de coletivos. Estava vestido como um inglês, mas de inglês não tinha nada, porque tinha esquecido o meu guarda-chuva.

        Fui à banca de jornal, coisa corriqueira e banal. Como comprar chicletes e colocar crédito no celular. Gotejava um pouco lá fora, minha capa me protegia, mas minha mochila me preocupava. Era a segunda vez que enfrentávamos a chuva e a primeira não foi muito animadora. Meu livro do Georges Simenon ficou todo empapado, junto com meu caderno de rascunhos e minha caixa de canetas.

        De fato, mesmo as nuvens estando carregadas. Cinzentas, mais cinzentas do que o concreto e o asfalto. Não dei muita confiança à tempestade; Devia ter me precavido porque "O inferno está deserto e os diabos estão aqui".

       Os ipés vermelhos coloriam os jardins de minha quadra, enquanto os carros corriam de farol alto diante a neblina. Não vi pedestres ou ciclistas e as poucas almas penadas que vi eram feitas de açúcar pois fugiam correndo de algumas gotas de chuva. A garoa estava ligeiramente fria e refrescante, fazia dias de calor, mas começava a engrossar.

       Encontrei um cachorro, meio asno, que correu em minha direção achando que eu era seu dono. Ele reconsiderou quando um trovão caiu bem perto de nós num descampado. A chuva estava cada vez mais forte e meus cabelos, antes desgrenhados, se pentearam pela a água que ensopara toda a minha cabeça e o meu casaco. Apressei o passo e a chuva tratou de se apressar também.

      Na rua as goteiras se somavam e pintavam o asfalto com tons cada vez mais enegrecidos e aquáticos. O reflexo das poças d'água criava pequeno espelhos de ângulos desconhecidos do meu semblante apressado. A mochila, como eu imaginei, já estava ensopada e meu humor também. Encontrei com segurança a parada de ônibus, toda revestida de vidro fumê e plástico que para a desgraça do arquiteto, era profundamente ineficiente e tinha goteiras.

        Duas pessoas se escondiam ali, encolhidas no frio com que o vento violento ceifava as almas mais esperançosas. Um, era um velho que apenas caminhava e foi surpreendido pelo aguaceiro e a outra pessoa era uma doméstica, essa sim estava empenhada em chegar em casa. Eu só queria esperar a chuva passar e ir trabalhar. Eram 15:00 da tarde.

       Numa sexta feira, encontrar um ônibus à tarde é um sacríficio. Imagine quando há greve. Fitei os carros que corriam no vazio do asfalto, enquanto os filetes graúdos de chuva engrosssavam. Ao acompanhá-los com os olhos, encontrei um carrinho de mão com ferramentas de jardinagem. Um aparador de grama, uma foice e uma tesoura de ponta. Um caminhão do Sistema de Limpeza Urbano estava estacionado bem próximo da parada, inaudido à percepção de todos. A chuva era a maior preocupação na hora.


      Um trovão desabou num gramado bem em frente de nós, prenunciando um mal presságio. A chuva violenta vinha do Norte e sua violência correu de uma só vez para os pobres indefesos que estavam na parada de ônibus. Como eu previa, o  vidro daquela instalação vagabunda não foi pensado para uma tempestade e o vento ameaçava retirar o vidro fora. A água começou a entrar no abrigo, e a molhar nossas cabeças debaixo do teto.

      Nós três ficamos reféns da boa vontade celestial. Os ventos me forçaram a sair da parada e me esconder atrás dela, visto que a chuva estava partindo de frente àquela estrutura. Gotejava e a fragilidade daquela estrutura não parecia inspirar conforto. Quem andasse naquele vendaval poderia ser perfeitamente arrastado. Um tufão ou algo parecido.

         Um dos garis gritou de dentro do caminhão-baú, olhando todo nosso sofrimento. Gritou e acenou:

     "EI! VENHAM PARA CÁ!"


      Desconfiados, as duas companhias que tinha entreolharam entre si. Mas num impulso sai correndo tentando me proteger. A chuva estava cada vez mais forte e daqui a pouco era a parada que sairia voando, junto com vacas e casas por aí. Apenas eu tomei coragem e subi no parachoque e depois na caçamba do caminhão.


        Lá dentro, com os cabelos pingando e a capa toda ensopada agradeci ao gari que retrucou olhando em direção à chuva:

       "Eles não quiseram vir, bom, o problema deles. Pode ficar até a chuva passar."

        "Obrigado"

         Eram 3: 23 segundo o meu relógio, que estava igualmente ensopado. Ali dentro percebi que não havia só um , mas vários garis. Sentados em torno de uma roda, eles esperavam a chuva passar. Alguns jogavam dominó, outros apenas jogavam conversa fora. Muitos nem sequer dignaram a me cumprimentar, eu não reclamei, eu era um intruso em seu ninho.

         Aqueles semblantes cansados e simples denotavam a dureza de seu serviço, que era capinar a grama todos os dias e garantir que as arvores e as folhas continuassem impecáveis. Funcionários da NovaCap, provavelmente receberiam tão pouco para operar um trator ou cortar um quilômetro de gramado. Eles discutiam o atraso do serviço:

         "Todo dia chove. A gente começa de manhã, e aí começa a chover. Aí a gente para, quando a chuva dá um tempo. A terra tá tão molhada que chega atrapalha. Quando dá pra cortar a grama, chove de novo"

         E a chuva batia cada vez mais forte na lataria do caminhão. A atmosfera era quente e acolhedora, bem melhor que o frio que fazia lá fora. Úmido e deprimente. Aquele ambiente não chegava a ser confortável. Havia poucas cadeiras e o chão estava sujo de terra que sentia-se o odor campestre dentro do caminhão. Fosse fertilizante ou a terra mesmo. O suor também figurava ali, das roupas e dos rostos. As ferramentas estavam dentro de um armário, junto à uma mesa onde tinha café.

        O gari que me convidou ao abrigo, me ofereceu o café. Eu aceitei. Senti o gosto amargo descer quente por minha garganta, mas era o máximo de cordialidade que poderia esperar. Aqueles semblantes me olhavam desconfiados e eu sabia o porquê. Eu estava bem vestido demais e parecia esnobe aos olhos de muitos. Fiquei olhando para o chão, calado enquanto a chuva corria lá fora. O trovão cortou meus ouvidos e o olhar de censura levou-me um pouco do meu orgulho.

        "Bucha de seis! Você morreu com uma bucha! Seu imbecil" Brandiu um jogador ao parceiro enquanto batia as pedras na mesa.

        Aquele grupo de garis de longe estava mais preocupado em voltar ao trabalho do que eu a sair daquela chuva. Discutiam quanto tempo levaria para fazer todo o serviço estipulado. Vez ou outra comentavam sobre a chuva, ou da família. Mas não demorou muito para que ficassem silenciosos sob minha presença.

        Fiquei ciente disso, e desconfortável, esperava aquela torrente de água passar. Mas não, ela só piorava. Na parada via as pessoas que tinham se recusado a ir no abrigo ficarem tão molhadas que poderia-se fazer uma sopa, era ridícula a ideia de tomarem um segundo banho vestidas, apenas por orgulho. De fato, o céu cinzento não me parecia promissor, mas a imagem de nenhum ônibus passar também não era muito reconfortante.

            Tentei me enxugar com um pano que tinha na mochila e conclui que estava ensopada de novo. Outro livro estragado!"Maldita cidade, passa seis meses sem chuva e quando chove parece que vai cair o dilúvio", disse um dos garis.

           O vento bateu mais forte, movendo a lataria do caminhão de forma preocupante, embora as chances de capotar pelo vento fossem pequenas, o veículo nem por isso deixou de balançar. Foi aí que passou o meu ônibus, não tive tempo de correr para pegá-lo, nem os outros passageiros que agora se acumulavam na parada. Tinha perdido e iria chegar atrasado, já era 3:56.


            O tempo demorou a melhorar. E mesmo olhando de longe a chuva se dissipar e os filetes de chuva se esfarelarem numa garoa fina, ainda demorei a tomar coragem para sair. O olhar curioso e desconfiado de um dos garis me deu forças para me despedir. Foi então que eu percebi, que era uma das raras vezes que não tinha nada a ver com as pessoas ao meu redor. E eu era um estranho na matilha.

           Agradeci com sinceridade o abrigo, e fui tratado com uma educação polida pelos demais. Saltei do caminhão e não ouvi os comentários maldosos que possam ter feito de mim. Na parada, os que ficaram me olharam com censura por estar seco enquanto eles estavam com as roupas completamente coladas no corpo. O tempo passou... A chuva continuava e mesmo assim nada do ônibus. Os desistentes se convenciam que todo aquele esforço fora inútil, e iam a pé para as suas casas.

        Fui o último a ficar na parada. Percebendo que só eu estava ali em pé, porque os bancos estavam molhados, também fui o último a desistir e a voltar para casa. A grama estava verde, as flores estavam vermelhas e o asfalto bem escovado e transparente. Contudo, não me esqueci o modo como aquele gari, na sua simplicidade me acolheu na chuva e me ofereceu um pouco de café, e também não esqueci o olhar desconfiado com que me olhavam os demais naquela cena tão estranha, tanto para eles quanto para mim.


        Esse fosso é bem mais fundo do que a gente imaginava. É bem mais fundo do que o Mar Vermelho.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Um último conto de novembro

         Meu avô era um homem do interior, nascido e criado no calor dos sertões brasileiros; era um homem de simples. Honesto e trabalhador, não era homem de muitas palavras e quase nunca sorria. A despeito de sua simplicidade como pessoa, era alguém de valor e estima, mais esperto que muitos intelectuais hoje.

         Por algum tempo ele trabalhou com o contrabando de cachaça, saía todas as noites a cavalo carregado de produtos para não ser pego pelo fiscal da prefeitura que sobretaxava as bebidas. Mas de manhã tudo o que fazia era vender sacos de açucar no Recife. Valente, um dos poucos homens de fibra que ainda resistiam em seu tempo, enquanto os homens andavam de brilhantina, meu avô andava de espingarda.

        Bebia cachaça num só gole e fumava mais que uma chaminé. Vivia contando histórias de suas viagens para os amigos quando voltava do interior, mas o que mais se ressentia, a despeito de ser aventureiro. De ter perdido seu pai tão cedo. Meu avô sentia faltava de seu pai às vezes, quando falava de meu bisavô seus olhos enchiam-se de lágrimas.  Nunca soube como meu bisavô morreu, nem tampouco meu avô se esforçou a contá-lo. Vovô não gostava de contar de sua vida pessoa, mas adorava contar várias histórias de suas aventuras.

        Certa vez brigou com ladrões de cavalos no interior, atirou a espingarda, a primeira vez na sua vida e conseguiu salvar um carregamento inteiro de cachaça no caminho. Mas na segunda vez, não teve sorte porém, teve que entregar o cavalo caso contrário seria morto. Desde então passou a subornar os bandidos para que não o atacassem tanto durante a noite. O Brasil que ele vivia era diferente do Brasil atual, os bandidos ainda tinham cordialidade.

       Contudo, mesmo sendo um homem que poderia muito bem ter vivido no século XIX ou no faroeste americano, meu avô ainda era homem de seu tempo. Ficou sabendo pelo rádio a aclamação de Juscelino e mais do que isso notícias da construção de uma nova capital, no interior do Planalto Central. A TV ainda não tinha chegado ao interior, mas imagino o choque que fez meu avô sair de sua vida nos arredores de Recife e decidir enfrentar a estrada até o Goiás. Ele tinha vinte e três anos, pouco mais velho do que eu.

       Imagino o choque que foi encontrar os arranha-céus gigantescos e suntuosos de Oscar Niemeyer na Esplanada dos Ministérios ainda sob a forma de esqueletos de concreto armado. Para quem só era acostumado com casas de alvenaria muito antigas, para ele aquilo devia ter saído de outra realidade. 

       Meu avô nessa época escrevia tão pouco e tampouco lia como as pessoas leem hoje, mas era desnecessário naquela época. Ele era um operário do sertão, um candango, muito mais trabalhador empenhado do que um pobre miserável como eu que fica brincando de poeta-proletário.


        Em Brasília, as barracas de lona montadas na Cidade Livre e na vila IAPI era a evidência que o Brasil de JK ainda era um Brasil feudal a despeito da modernidade aparente. À noite, as crianças morriam no frio do inverno. De dia rolavam mortes e assassinatos por dívidas de jogo ou mesmo só pela bebedeira. Ainda assim Brasília era a primeira vez que ele veria uma cidade moderna.


        Canteiro de obras na terra vermelha. Meu avô trabalhou, seja nas obras no Ministério do Planejamento, Itamaraty, nas quatrocentos ou duzentos. Meu avô trabalhou. Trabalhou como pode no Hospital Militar e nas obras do Aeroporto, mas isso não lhe serviu para que fosse trabalhar na NOVACAP. Trabalhou tanto em Brasília, mas nem chegou a conhecer JK, apertar sua mão , bater no seu ombro e dizer: "Trabalho feito, presidente. Aqui está o novo Brasil". Ele mal conseguiria reconhecer o presidente da época agora, Jânio Quadros, com o seus ternos cheios de caspa e os óculos fundo de garrafa.


        Contudo, meu avô sabia reconhecer a beleza no meio do calor de homens suados correndo de um lado para outro com vergalhões de aço nas costas. E assim conheceu minha avó.

          Olhos azuis, cabelo negro.e o toque lusitano. Minha avó ainda hoje é um poço de inocência, uma criança no corpo de um adulto, ou melhor de uma velha. Suponho que fosse mais inocente na época, e mais bonita. Por isso acho bem provável que meu avô tenha se apaixonado por ela.


         E os dois passaram quarenta anos juntos, se não estou errado. E duvido que tenha partido deslizes do meu avô no meio do caminho (embora eu não possa afirmar categoricamente nada). O problema é que o amor de meu avô era compartilhado com a bebida e o cigarro, todas as vezes que ele voltava de sessões de bebedeira, passava a ser uma pessoa agressiva. Batia na minha avó e nos filhos. Entretanto, nenhum casamento é um mar de flores, e de fato, eles tiveram vários filhos: incluindo minha mãe, que não é exemplo pra nada.

         Meu avô começou a trabalhar num ótica na W3 Sul. E com muito sacrifício conseguiu construir uma casa num terreno muito espaçoso, o qual eu chamava deliciosamente chácara do vovô.   Ali tinha pés de tomate e chuchu, que minha avó usava para fazer suas comidas sem gosto. E também bananas verdes que davam no pé, cana de açucar que era cortada para a gente (os netos) comerem em lascas. 

        A "chácara de Seu Manel", me lembra muito verde e da época que brincava com meus tios de pique-esconde e jogar bola. Como também as brigas que tinha com meus primos e dos dias que saia de casa e ia dormir na casa de meu avô por causa dos conflitos constantes de minha mãe com o meu pai.



         Por muito tempo, meu avô era meu pai. E sim, foi ele que me criou a despeito de tudo. Vovô passou por muitas provações na vida, mas era um homem forte. A maior de todas elas foi não ter conseguido salvar meu tio dos braços das drogas, e isso o marcou profundamente nos últimos anos. O tornou um tanto mais amargo, o fim triste do meu tio, tornou-o outra pessoa.

          Os filhos passaram a ser um engodo para o meu avô. Sazonalmente há brigas de famílias graves e discussões tão banais que tornaram tudo mais difícil para uma pessoa de idade como o meu avô. Entretanto, apesar disso, a vida dele mostrava uma força de vontade alicerçada na fé. Religião pra mim é uma franca alegoria, mas para ele era uma coisa francamente séria.

          De fato, meu avô era um homem diferente de outras pessoas. Um homem corajoso, que depois de muito tempo se submeteu a enfrentar o cigarro e a bebida e tornar-se um indivíduo mais familiar. Era um homem silencioso ao mesmo tempo que sábio, e hoje entendo a razão de seu silêncio e falta de sorrisos. A vida é muito curta para ser desperdiçada com falácias;


          Só sinto pena de meu avô porque nem os seus filhos, nem os seus netos chegaram perto de sua pessoa, principalmente os filhos, que se tornaram tão mesquinhos por suas rixas sem importância através dos anos.  Quando fui vê-lo pela última vez eu pensei justamente nisso e me apiedei de não ter sido o melhor dos netos nos últimos anos.


          Hoje, dia 7 de novembro. Meu avô entrou na UTI, com um quadro de desnutrição e desidratação em decorrência de seu câncer terminal. A despeito de sua fragilidade nos braços, e a dor em seu rosto. Os cabelos caídos e suas rugas cada vez mais profundas. Esse homem que hoje descansa no leito, sem qualquer suporte dos médicos, senão umas poucas palavras reconfortantes (e mentirosas) é um herói para mim. Um herói que nunca será lembrado pela História, porque nunca foi político, ou mesmo cientista ou artista. Mas apenas um cidadão brasileiro.
         
. Correção: Hoje pela manhã, recebi a notícia que ele faleceu em decorrência do câncer. Ao contrário do que ele tanto desejara, não lhe foi ofertada a opção de morrer em casa. Descanse em paz, vovô. Você merecia bem mais

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Réquiem ao dias dos namorados

             Talvez em toda a minha vida eu tenha amado de verdade uma única pessoas, uma única pessoa que tenha me prendido toda a minha atenção. Eu sempre fui meio inconsequente, devia ter pensado que era mais fácil ser sozinho no mundo do que procurar uma cara metade. Mas eu mesmo assim procurei.

            Me perdi muito nesse mundo, fui muito maltratado. Procurei em algumas pessoas um amor que eu não tinha por mim mesmo, nunca dei o devido valor que eu devia ter. Minha paixão era o conhecimento pelo conhecimento, não que não tivesse outras coisas para buscar, mas o que eu queria era ser inteligente. Bonito também queria, mas não me foi dada essa sorte. E ser rico ainda não é um objetivo perdido.

           Em todo caso eu lembro com amargura as coisas que eu presenciei, o amor não correspondido que eu tive, o amor sociopata que me deram, o desleixado amor sem emoções, a enganação de um amor à minha carteira e agora o simples uso do meu corpo para um autossatisfação pessoal. Eu tive que conviver com tudo isso, eu não pude confiar muito nas pessoas desde as respostas que me foram dadas aos dramas emocionais. Talvez a única pessoa que tenha me amado tenha sido minha mãe, ou talvez minha irmã.

          Poderia talvez me dar por satisfeito? Não sei se posso dizer. É meio trágico pensar em como as pessoas podem ser tão mesquinhas e infantis para procurarem o amor e quando o encontram terem medo. Eu hoje tenho um medo absurdo de me apaixonar, eu tenho medo de acabar me deixando ser usado de novo pelo sadismo tautológico das pessoas e por isso é mais fácil me fechar para esse mundo cada vez mais sombrio.

          Não que eu não tenha desejos, não que as vezes não me dê vontade de dormir abraçado a alguém ou aninhar um cabelo, mas é tecnicamente mais fácil não tornar público nada e se fechar por completo do que dividir a vida com outra pessoa. As pessoas são difíceis e não são nem um pouco confiáveis, elas nos traem na primeira oportunidade por uma ninharia, seja por dinheiro, seja por prestígio.

         Eu queria dizer que eu achei minha cara metade, mas não, até hoje não achei. Eu amo de verdade uma pessoa a ponto de querê-la longe de mim, bem longe, eu não me sinto capaz de fazer alguém feliz depois de tantas coisas que eu vi e fiz. Prefiro ficar cada vez mais só e os meus objetivos de vida serão restritos a meu foro íntimo.

         Não que eu não confie nos meus amigos, em alguns eu confio como se fossem meus irmãos, mas não há nada mais filedigno do que esperar confiar apenas em si mesmo. Saber se virar é uma virtude que eu sempre tive desde criança, então eu olho para as pessoas sem um olhar passional. Às vezes sou bem cínico, outras vezes eu me importo de verdade, acho mais fácil assim.

         Eu escrevi muitos rascunhos que secretamente guardo junto ao peito, alguns romances de bloco de viagem, que escrevo só para mim sobre um destino perdido que é o procurar um pouco de carinho no amor de uma mulher. Não que me sinta bem nessa condição, mas eu estou bem nessa fase de adaptação em pensar em ninguém quando escrevo essas palavras.

         O dia dos namorados é uma pressão social em parecer ser feliz num mundo cada vez menos amistoso. A infelicidade é uma companheira cada vez mais constante na vida de várias pessoas, não só porque felicidade é um exercício diário do qual nem todos estão aptos a praticar, como também é um custo primoroso para quem não pode pagar. Por isso para muitos o dia dos namorados é um funeral, era pra mim a dois anos atrás, hoje eu nem me importo.

       E que maneira esse enterro se desenrola é de cada um, alguns bebem até seus rins começarem a reclamar, outros escrevem novelas no papel velho carregado de tinta, alguns choram no Facebook enquanto outros correm para o primeiro prostíbulo para retirar sua necessidade emocional. Todos esses falham, o dia dos namorados é só uma data, como outra qualquer, uma data sem um significado prático: quem mudança haveria se o dia dos namorados fosse hoje ou no domingo? O mundo deixaria de girar?

          Eu me arrependo amargamente de ter perdido tempo procurando alguém quando na verdade a única pessoa que devia procurar era a mim mesmo. Sei que isso é muita arrogância de minha parte, mas é completamente válido quando observamos a realidade;

           Sanar suas necessidades em outras pessoas é doentio, nenhuma forma de amor é completamente espontânea. Eu acreditava que amor era algo espontâneo, mas amor está nas pequenas coisas que fazemos no dia a dia. Perguntei a minha mãe se ela amava meu pai e ela não soube me dizer. Não, as pessoas realmente estão cada vez menos aptas para amar as pessoas como elas deveriam.

             Cada vez menos propenso, cada vez mais complexo, a única coisa que as pessoas realmente amam e respeito cada vez mais é o capital. Eu antes achava isso um absurdo, julgava o capital um negócio traiçoeiro, mas só depois de muito tempo compreendi que esse fetichismo tinha um sentido embutido. É mais fácil ver o material do que o abstrato, é mais fácil querer o dinheiro do que querer o amor, pois sem dinheiro você não sobrevive, você não pode comprar comida, ou sobreviver, enquanto sem amor é possível viver.

            E esse é o motivo desse réquiem pois boa parte dos que namoram realmente não amam, apenas são comodistas e querem sanar suas necessidades com outras pessoas, compram presentes para demonstrar que amam, mas na realidade, nas pequenas coisas da vida pouco amor existe entre si.

          Dia dos namorados é um festival doentio do qual espero nunca mais fazer parte, os que verdadeiramente amam fazem todos os dias o dia dos namorados.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Diálogos de um marxista

           A imagem de um campo descoberto de tamanha consternação traz um medo da própria figura da tranquilidade cínica de um céu mais límpido que a água e o ar que adentra em nossos pulmões, a falta de nuvens nesse límpido céu de meio de ano conversa com o vazio minimalista de um gorro japonês.

         O limoeiro acaricia de forma negligente minhas próprias vistas, meus olhos castanhos tornam-se um tanto esverdeados quando tomo no peito alguns poucos versos românticos de Casimiro de Abreu.

"Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida,
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!"


               O meu coração de estudante lateja com esse romantismo que toma nossas mentes ainda em formação, a paixão indolente, o verso inconsequente e mais do que isso a forma com que as letras agradecem a forma sedutora de mulher de ângulos fabuloso desenhados na pena do arquiteto. 

                 Penso que nada é mais perfeito do que ser desenhista, do que acreditar em ser um beijoqueiro da obra da vida e aceitar a mera ideia de um isolamento desdenhoso em se apaixonar pela natureza. Quando eu era político eu tinha dificuldade de aceitar a posição de isolamento que o cargo impunha, um isolamento autoimposto por você não poder confiar em ninguém:

               Devemos ouvir a todos, devemos falar com muitos, esperar demais de nós mesmos e ter a sombra da esperança de não esperar nada. Ser político é ser um mero desgraçado que está propenso a ser deixado de lado a qualquer momento, e eu me senti feliz por não acariciar algo assim. Poder é perigoso.

              Lênin nos disse certa vez através de sua voz de martelo, seu semblante nervoso e sua calva tez que se desfazia no suor dos discursos apilhados de gente humilde na pátria dos sovietes que deveriamos acreditar em nossos sonhos, desde que tenhamos a capacidade e a vontade de realizá-los. Eu não tinha muitos sonhos e saí com menos sonhos ainda.

             Eu tinha sempre essa imagem na cabeça de racionalizar meus  sonhos para torná-los realidade e como comunista que fui eu vivia com esse sopro de esperança junto ao peito, seja quando se tocavam os rincões da Marselhesa, seja o baluarte vibrante da Internacional. Hoje me sinto enriquecido por ainda ser bem marxista na minha maneira de pensar, não objetando ter deuses e ter apenas essa ideologia como guia. O sonho de Marx e Lenin e o velho partido comunista.

                 O problema que sou um marxista de botina que não acredita nessa apropriação fajuta do marxismo tradicional, sou quase um marxista histórico, já que a bandeira ilustre da causa bolchevique, a estrela vermelha, o estandarte dos trabalhadores e camponeses foi comprometido pelo discurso demagógico de alguns  facínoras que se passam por comunistas.

                  Felicidade? Eu não sou feliz e nunca virei a ser, o mísero sopro do meu peito é muito byroniano para acreditar nessas coisas, a corrosão de meus pensamentos é uma corrosão que acompanha a esquerda desde o final da União Soviética, e embora os ecos da Marselhesa ainda retubem em alguns cantos do globo, é um vazio ideológico que a gente assiste.

                Os traidores da bandeira comunista são muitas que acabam rasgando os firmes alicerces que foram pendurados sob à esfinge da águia negra do Reichstag na Berlim de 1945, o neonazismo, o fascismo e a onda de conservadorismo que se alastra pela a Europa, as guerras civis e os morticínios em massa só tornam mais imperativos os ideais comunistas. Eu tinha minhas dúvidas com a evolução do socialismo, mas cada vez o vejo como necessário. E é por isso que admiro a simplicidade do tão pouco, é possível ser feliz, sendo pobre? sim, mas sua vida será tão difícil, pois felicidade é um exercício diário de todos os dias.

               A felicidade do homem era a maior ideia dos pensadores liberais, desde Locke, Adam Smith e os revolucionários franceses, que se traduziu erroneamente felicidade com a satisfação pessoal por meio da apropriação de objetos e não a capacidade em conviver e interpretar seus sentimentos.

                De sentimentos não vive o homem, de pão  sim; eu até entendo os motivos para levarem a uma visão tão material do mundo na ideia de acumulação,  mas acumulação ´só por acumulação não leva a nada, só talvez mais sofrimento, como diriam as leis do budismo, e se for pra  sofrer prefiro ler Werther.

                É por isso que o Mujica parece uma figura interessante de ser estudada, o seu modelo quase tolstoiano de construir uma humanidade cada vez mais desvencilhada do seu aspecto de mera acumulação. Uma pessoa simples de um país pequeno e pobre ensinou a um segmento da esquerda mundial que a revolução não se faz só com o sangue (na verdade hoje nem com sangue se faz), mas com ações cada vez mais cotidianas, pensamentos e ideias. 

                  O problema são os aproveitadores que surgiram com a queda da URSS e do Muro de Berlim, que se escondiam entre os rejuntes e argamassas dos tijolos do muro e despertaram com sua queda. Esses com a firmeza de seus discursos vazios carregados de falsa liberdade, cada vez menos pensados formam falsos governos trabalhistas imbuídos de um populismo disfarçado para sustentar o seu ridículo cinismo.

                   Devo caminhar cada vez mais devagar nessa crise do marxismo onde os discursos e palavras cheias de floreiros podem esconder um toque de reacionarismo ou mesmo de estupidez. 


                Eu posso ser um bêbado, camarada, um fumante incessante que esconde seus vícios  e fraquezas na ponta de uma caneta, mas acredito que você me ouvirá dizer que essa construção marxista é falha em sua própria natureza, pois nunca achei que o socialismo fosse ciência, mas fosse algo movido pelo coração.

                E o medo à liberdade é o maior empencilho para a escolha de novos projetos, não temos mais a União Soviética, Cuba ou China, não temos mais o mundo bipartido, ditaduras ou o império do medo, mas mesmo assim não agimos conforme o esperado, agimos conforme os padrões antiquados de uma sociedade carregado de um puritanismo vitoriano e um caráter cada vez mais solidário de sua composição social.

                Os filtros dementes de ações impensadas trazem pequenas ilusões de falsa liberdade e essa é o maior sintoma da Crise do Marxismo.

domingo, 11 de maio de 2014

A incógnita da escrita

A maior incógnita da vida de um escritor é o papel branco, pois nada é mais tentador, nada  é mais vazio que o pedaço de folha limpo sem ranhuras em sua superfície, disso, achamos que podemos criar mundos mirabolantes, realidades da existência louvável, grandes digressões e paradigmas cada vez mais indiciários de abstrações filosóficas.

Um escritor é um arquiteto de histórias, cujos imensos tijolos são as palavras, cuja a argamassa são as vírgulas, travessões, pontos-vírgula e outros cógnitos gramaticais e a grande planta é imagem filosófica e narrativa que surge sobre sua cabeça.

Escrever é imaginar antes de tudo, é ter sua mente aberta a observar um mundo para criar um outro completamente diferente, ou mesmo criar um mundo dentro desse mundo existente. Um bom escritor é um pintor que desenha a realidade numa tela de A4 apenas com palavras e uma caneta de pena.



Quem escreve está fadado a ser meio solitário, pois escrever exige bastante tempo. Mas quem escreve também será um sábio antes da hora, pois o ato de escrita exige muita leitura, exige pensamento rápido e raciocínio e mais do que isso, exige ter emoções ao pé do ouvido. Escrever é a arte de amar ser sentido. Amar escrever e calejar as mãos de tanta escrita.

Quem escreve  não pode por ventura ser vazio em intelecto, mas pode ser vazio em existência. Um escritor é normalmente uma pessoa muito triste e melancólica pois quando olha o mundo ao seu redor tem uma imagem ligeiramente aguçada do que a realidade proporciona. Por isso muitos escritores são ativistas, outros apenas querem se esconder no seu pessimismo clerical.

A escrita exige esforço, mas também inspiração. Cuja habilidade ultimamente me falta, e por isso normalmente um escritor é um cara frustrado quando não consegue produzir; Queria ser mais ameno nesses termos, mas a verdade deve ser dita sem ignóbeis mentiras. Meu ato de escrita vem sendo cada vez mais piorado a medida que vou envelhecendo, pois as responsabilidades crescem e negligentes como nós somos, acabamos nos convencendo que não temos mais forças para escrever grandes romances. Estamos completamente errados, estamos sempre prontos para escrever algo de novo, mas não sabemos.


Amar o que faz é o que define um escritor de qualidade, pois ele vive amando linha por linha do seu texto, e se cuidando para amá-lo cada vez mais. Ele ama lê-lo depois de ter feito cinco ou seis correções. Um texto é um pedaço de carvão a ser moldado, com as condições ideais de temperatura e pressão ele poderá virar um lindo e bem polido diamante, mas se for mal feito continuará a ser apenas um pedaço de carvão.

Amar à escrita é se apaixonar pelos livros, abraçá-los como se fosse sua própria mulher, beijá-los como se fosse seus próprios filhos e lê-los como leria aos seus netos. Ah! A escrita, ler, ler e ler, fora da leitura não há salvação. Já dizia meu professor, pois sem leitura não se tem ideias e não se escreve metade do que se deve escrever quando se está inspirado.



Como disse, o papel branco é a maior incógnita, e não é resolvida pela mera matemática. Muito pelo contrário, a matemática busca respostas que a literatura não provém e de maneira que essa estrutura narrativa se mantém é muito difícil escrever algo que não tenha um encadeamento lógico tradicional. A pequena redação de um livro pode ser um plágio de outro existente sem querer.

Queria ser mais virtuoso em dizer que a escrita é um ato fácil a todos os que se dedicam, mas não é verdade, era fácil para mim quando era mais novo, mas hoje, é algo cada vez mais urticante quando penso que não levo meus livros até o final, por isso acabo escrevendo contos ou poemas, que são menores e mais fáceis de se fazer. E como poeta sou tristonho.

Floreios não são inteiramente necessários quando começamos a escrever, pois a escrita é um ato de fé antes de tudo, e cada vez mais que escrevemos temos a consciência que nossos prazos e prazeres não se findam. A verdade é que escrever é uma fé na gramática e sobretudo da linguística em abarcar as suas ideias num campo semântico cognitivo eficiente, e nem sempre isso é possível.

Por isso eu acho mais fácil fazer cinema, ou mesmo uma tela, pois as emoções se inauguram a partir da combinação de cores e imagem, enquanto na escrita não há nenhum nem outro. Um escritor é um psicólogo amador, é um cronista social e um jornalista sem jornal. É um pesquisador e um bon-vivant sem um centavo trocado.



Escrever define o ser, define uma realidade e um personagem. Alguém que inexiste no plano concreto, mas pode existir no plano real. Pode ser uma pessoa que você conheceria se andasse mais pelo mundo, ou mesmo uma entidade que morreu anonimamente sem que ninguém a lembrasse. Um detetive que morreu numa caçada, um operário que caiu de um andaime, um professor que foi atropelado, ou um casal de velhinhos que morreu juntos para sempre.

Às vezes nem isso, as vezes só escrevemos uma parte de uma vida. Às vezes nem descrevemos a vida cotidiana, vamos recorrer ao tempo, como ao romance histórico e escrever um antepassado que nunca existiu, ou ao futuro para escrever um descendente que provavelmente nunca existirá. Somos deuses na curvatura de uma folha de A4, e num rincão tecnológico de um Word ou da mera caneta ou máquina de escrever.

Sabemos tanto de História, geografia, ciência, desenho, psicologia, antropologia, e filosofia, e ao mesmo tempo não sabemos nada. Um escritor é um ser diferente, porque tenta conciliar vários campos numa só obra.  Quisera eu que todos tivessem esse dom de redigir textos com facilidade como eu fazia, mas se todos fizessem isso, eu estaria desempregado.





A incógnita do papel branco se mantém, porque no início eu não sabia o que iria escrever, mas o final resultou num texto muito bem encadeado. Essa é a constante dúvida de um escritor em processo de criação e espero que isso ajude a alguém que pense um dia em escrever.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Fumaça do tempo

      Não creio que a chuva apague as pegadas na terra nua ou tampouco molhe meus cabelos tão rápido a ponto de ficar completamente encharcado, pois na tez mais sinistra  das noites em claro que vivencio tenho divagações tão introspectivas que assusto-me com a mínima ideia de me perder nos meus próprios pensamentos.

      As metas são inúmeras e não creio que sejam poucas a ponto de ser negligente com noites em claro, de fato nem desejaria momentos tais de insônia, mas é algo que os olhos meramente sintéticos abusam de meu cansaço e não me permitam dormir novamente; Queria saber tais motivos que rondam tamanha inquietação, mas sob o pêndulo de um relógio, a verdade é que a feiura com que a existência humana se preenche corrompendo as palavras, os mínimos vocábulos transilvanianos, melindrando apenas verbetes de natureza pouco ortodoxa.

       De fato, os encontros consonotais, os hiatos com que a vida nos prega deixa-nos cada vez mais impacientes a cada minuto, o dia encerra-se de maneira cada vez mais demorada, o pôr-do-sol, que antes era um companheiro de reflexão, hoje só é um engodo, pois me lembra das noites em claro que vivo me remexendo na cama, com a consciência um tanto pesada ou mesmo preocupações futuras. A insônia corrompe-me por dentro e a fumaça do tempo não se esvai rapidamente, muito pelo contrário, a sua lentidão cada vez mais trágica constitui um obstáculo ao meu subconsciente cada vez mais complexo e transtornado de tantos traumas e contratempos.

     A valsa corre em uma frequência de três para um, assim como a frequência de um batimento cardíaco pode variar de 80 batimentos por minuto a 120, nada comparado com a frequência por exemplo das microondas ou os raios gama. Raios gama, tão cancerígenos que chegam a queimar nossa pele, adentrando em nossa alma, todos os dias tenho a sensação de estar me expondo a um bombardeamento de neutrinos no interior de um reator de fissão nuclear, obliterando uma cisura junto ao meu peito cuja abrangência corta-me por inteiro, irresponsabilidade minha é claro comparar-me a tal iniciativa, mas sinto que é um desabafo deveras conveniente ao ritmo de estafa com o qual estou sendo submetido de forma arbitrária pela vida.

      E de quebra, eu não consigo dormir. Há maior maldição que isso? Duvido sinceramente.

      E com minha falta de sono, não produzo nem uma sombra de versos, nem uma centelha de palavras, e como bon vivant que sempre fui, tenho medo de perder minha habilidade em tocar o alaúde em honra de meus antigos e novos amores desafinando minha voz e minhas rimas. Entretanto o padrão ternário da música ocidental apresenta um aspecto bastante convicente sobretudo na dita música de orquestra, quando observamos músicas compostas por Lintz, Beethoven, ou mesmo Chopin, isso não é comparável às batidas do fox-trote ou do samba de raízes que são tocados em harmônia com  as batidas de um coração sofrido e apaixonado.

      Noel Rosa juntamente com Carlos Gardel, cada um a sua maneira, remontam uma construção nacional consolidada a partir da música, entretanto Noel Rosa se difere pela crítica social contundente em versos e palavras com um humor carioca carregado, típico de Vila Isabel, enquanto Carlos Gardel é romântico em demasia ao chorar suas dores de uma Argentina patriarcal, romântica e vitoriana. O samba é coisa de cabra trapaceiro, malandro da melhor esquife, enquanto tango é coisa de cavaleiro platino, gaucho das pradarias, choroso com um mate e um bom chimarrão.


       Isso não produz senão maiores divagações epistemológicas de um indivíduo cuja insônia transtorna sua capacidade intelectual, que sempre foi uma medida muito questionável. Mas esse cérebro cansado de muitas noites tenta abandonar o seu apego ao sono e se esforça cada vez mais ao trabalho, mesmo não produzindo nem uma centelha no papel armado, Curioso, até, pois o lapso criativo que corrói as vísceras desse escritor há meses não lhe tira a capacidade de divagar sobre o vento, de modo que um texto nasce de uma simples necessidade de dormir.

       Infértil no campo das ideias e no campo amoroso, estanque em sua concepção materialista sobre a aula, o velho marxista cansado continua a circunscrever ideias sobre a mente do corpo ainda jovem de duas décadas, e de maneira tão distante, há pelo menos noventa anos, estão as concepções lógicas desse rapaz.

        Ele não dorme, e continua transtornado, tentando inutilmente se esforçar a ler um livro, ou meros versinhos que gostaria de escrever a um amor platônico que nunca se esforçará a vê-lo, de modo que cada vez mais amargurado se inscreve na penumbra da noite que adentra sobre o cômodo fechado. As estrelas pintam aos poucos o céu pela janela de ferro branco, corrompendo a mente já cansada com ideias cada vez mais utópicas:

       " A Terra é o berço da Humanidade, mas não se pode viver no berço eternamente"

       E como seria belo lançar-se ao Espaço numa nave-estelar, mapeando o desconhecido como um Vasco da Gama ou um Cristovão Colombo, conhecer novos mundos, estudar novas formas de vida e novas civilizações, indo, audaciosamente indo, onde nenhum Homem jamais esteve. Esse homem moderno e ainda assim antigo, tendo o poder da física nas suas mãos, a internet nos seus dedos, mas ainda bastante selvagem para controlar seus impulsos.

       Os sonhos aparecem mesmo com os olhos abertos e escancarados, e eu desisto de perguntar a razão para tão pouco vontade de dormir, pois meus olhos sonham abertos e minha mente sonha com minha alma, de toda a forma a fumaça do tempo não me fará esquecer o quanto eu estou preso de corpo e alma a esse coração primaveril que não decide em parar de se apaixonar.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Minha matemática

       Descobri que sou um matemático cru em vestes de poeta mal-arrumado, com o sorriso safado e olhos chorosos, pensando sempre de maneira linear nas leis da Matemática; Minha vida tão binária parece ser um tabuleiro de xadrez, tão complexa em sentido, mas tão vazia de horizontes.

      Queria pensar mais do que simplesmente em caixas de lugares-comuns, apesar disso a linearidade dos meus pensamentos me enganam de tão maneira que me sinto cego em tamanhas situações, como pessoa e como escritor de guardanapo de botequim.

      Não consigo por exemplo a mim mesmo, o que eu sinto quando sobe-me o calor sobre o peito, os resultados da endofina, inflarem ainda meu coração deveras juvenil, pois de fato sou meio garoto na vida e desenho as palavras de maneira pouco ajeitada como desejaria que fossem, minha completa cisura filosófica não condiz com a criatura congênita que é a fenomenologia dos fonemas vocálicos.

     Também é meio difícil descrever com sinceridade aquelas pessoas que amo, pois cego de olhos peno a pena mais para o lado do coração, de modo que como matemático cru eu peco por subverter as leis da matemática. Leis essas que não podem ser descritas sem o amor pela normatização metódica de uma vida sem rodeios.

     Se é feliz pensar assim não é o caso, mas essa matemática espiritual explica quem eu sou e como venho agindo, de modo que os movimentos abrutos e sem pensamento embasado são erros de um matemático inconsolável, porque em vias de regra, era para ser poeta e não matemático.

Reflexão no meio do papel

      Sou tão arrogante que acredito ter no poder das minhas mãos a capacidade de personificar pessoas, de escrever suas histórias e descrever seus fatos, seus ditos e suas ações. Eu acredito que possa falar de qualquer um e de todos, em todos os sentidos e matizes.

      Consigo falar de economia, esporte, política, História, amor e sentimentos, mas no fim não consigo falar sinceramente sobre mim mesmo, e essa é uma capacidade que eu tenho em esquecer quem eu sou: um escritor sem a menor importância no centro da periferia do Mundo.

      Cada vez que eu olho  6 meses para atrás eu percebo como eu era estúpido, e há 6 meses eu devia ser ainda mais estúpido e daqui 6 eu provavelmente direi que "Caramba, como eu era realmente estúpido 6 meses atrás ".

            O ponto é que no fim eu sou invariavelmente estúpido e arrogante em achar que tenho controle sobre a vida de personagens do cotidiano cuja intensidade não consigo descrever, nem sequer a de uma fatia de pão.


É uma coisa estranha a ser preso por essa possibilidade, de modo que sentirei saudades da época em que me achava inteligente e capaz de  moldar a realidade


Cansado dessas discussões metafóricas e de tentar descrever uma parcela da realidade, eu desejo no fundo do coração não ser alguém que precise de tanto, mas uma pequena criatura livre que consiga viver sozinho no profundo deserto virtual que é a vida sem preocupações, pois o meu ego é a maior prisão que consegui me submeter.


Tenho que ser cauteloso com meus desejos, pois os meus prazeres tautológicos podem me subverter na essência. E eu tenho um forte desejo de me livrar de tudo que  esvazia  a minha vida, mas o domínio pleno dos desejos, me faz ser tão medroso que tudo o que quero é apenas ficar aqui.



Quero recuar do meu instinto natural de querer ser diferente, mas a verdade é que sou indiferente à vida, e indiferente na arte de escrevê-la, por isso não me convenço que estou agindo da melhor forma possível, senão por lembrar a dor dos calos na mão de tanto martelar as teclas já tão desgastadas de minha máquina de escrever

Tudo o que me resta é uma sombra, na mente mesmo que lacera meus pensamentos e me traz dor de cabeça, me ajuda a manter a insônia, cuja dor marca o mais profundo sentimento cego de vista  do meu coração. Pois continuo a atravessar a estrada de como eu sou estúpido e não quero uma razão para não enxergar o pleno senão pelo olho direito.

Pois no fim das contas acho que sou meio esquizofrênico em achar que possa ter sorte numa vida cuja existência desconsidero todos os dias e que traduzo de forma cada vez mais leve e batida em meras palavras, pois as histórias narradas não podem ser descritas apenas com uma imagem mental, mas com um contexto como um todo.



E no controle sistemático dos fonemas e vocálicos monolíticos tive medo de me manter sinceramente calado, mas no fim nada mais sou do que uma sombra do passado. Quero pensar que a escrita é escrita e o defeito sou eu, tal como fui eu todas as vezes por ser tão idiota e arrogante em me achar especial por ser nada a não ser um escritor fracassado sem aptidão para ser contador de histórias.


segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Um homem com um livro

     Quando ainda morava no interior todas as vezes que saía pela  praça da cidadezinha um velho senhor sentado num banco branco meio enferrujado daqueles de praça; Era um banco bem localizado, sobre a sombra das castanheiras e dos grandes carvalhos daqueles bosques tão perdidos da minha infância, havia algumas mangueiras talvez, ou será que eram macieiras? Não sei dizer, mas o que importava que todo dia que ia à padaria comprar pão, ele estava lá; quando ia à escola ele estava lá; Quando ia ao barbeiro, o velhinho estava lá.

       Não era um simples andarilho que adotara do desconfortável banco a sua casa, pelo contrário, o chapéu e a capa escura denotavam que ele tinha vivido muitos anos e não era largado à própria sorte; As crianças brincavam ao redor dele, faziam troça e plantavam diabruras, mas ele não ligava, continuava sozinho sentado naquele banco com suas rugas tão bem cortadas, os bigodes grisalhos de bode e os olhos cansados de catarata.

       Meu pai dizia que era só uma estátua, alguém sem importância que tomara o banco por companheiro. Minha mãe sempre tinha medo de passar perto dali, achava que talvez o velhinho fosse louco; Todo mundo comentara nas primeiras semanas na primeira cidadezinha sobre aquele velhinho, nos bares, na Igreja, nas fofocas de pé de janela. Todo mundo queria saber quem era aquele simpático velhinho, talvez não fosse ninguém, mas era alguém que trazia um novo ânimo na cidade, nas conversas e na paisagem. Nunca em trinta anos aquela cidade fora tão badalada quanto agora;

      O padre de batina e bíblia na mão, cheirando a vinho estragado quis prestar a palavra de Deus à conselho das beatas desocupadas de interior. Não deu muito resultado, na primeira linha do livro Êxodo, quem foi embora foi o padre. O velho deu pouca importância ao Antigo Testamento, seu companheiro de velhice, que agora daria menor importância ao novo.

     Os manés pinguços de botequim sorriam nos bares e dedicavam grandes quantidades de cachaça ao velhinho da praça; Quem sabe ele se juntaria aos outros no calor do interior e tomaria uma gelada?  Não deu certo também

      O delegado num certo dia, incomodado com os boatos e fuxicos da redondezas saiu à procura de respostas, mas voltou com o quepe nas mãos e uma dúvida na cabeça: Quem era aquele velho e porque ninguém conseguia falar com ele.

      O velhinho era enigmático, tinha olhos de um tom escuro bem penetrante e uma barba tão longa que podia-se dar um nó. O aspecto envelhecido de sua pela, os ossos fracos e os olhos perdidos fizeram com que todos tivessem compaixão por ele. Ninguém sabia quem era, mas meu avô duvidava: "Esse homem perdeu alguém que amava na vida".

      Meu avô era um homem sábio, ele tinha razão; Aquele homem perdera a voz no dia que perdeu alguém importante, tudo que tinha era a roupa do corpo e um livro no colo. 


       As pessoas se apiedavam dele; Vez em quando o padeiro trazia alguns pãezinhos pela manhã, o dono do bar trazia um prato de churrasquinho de gato à tarde, e quando era nos finais de semana era o pipoqueiro que se tornava bom samaritano; Ele comia por inércia, mas olhava em agradecimento. Ser velho é ser triste.

        Todos sorriam de volta, e de repente o velhinho passou a ser uma figura da cidade. O prefeito pensou em removê-lo para uma pensão, mas a população olhou isso com desagrado: "Se ele queria ficar ali, era pra ele ficar ali". Quando os casais de namorados passeavam à luz fraca da penumbra do Sol das quatro, cumprimentavam o velhinho.

        O pessoal do dominó também tinha um enorme respeito por ele.Até os pombos que sempre foram meio travessos e porcalhões  não brincavam em sujar propositalmente o velhinho da capa escura. Tinha um tom amargo em sua vida que não lhe fazia enxergar os dias e as noites.

       Não sei como ele fazia para ir ao banheiro ou beber água, acho que ninguém sabia. Duvido que fosse a um hidrante. Tudo que eu sabia é que quando ia para a escola eu me deparava todos os dias com aquele velho e o seu livro. Que livro seria?

       Um dia minha professora resolveu conversar com esse senhor. Ela era uma jovem simpática, era das campinas de São Bórgia, tinha olhos glaucos de alemã e cabelos negros de italiana, bonita e irresistível a qualquer criatura com um pouco de coração, trazia ela uma pastinha e uma régua de madeira que sempre levava consigo.

        — Bom dia, senhor.

        Tinha uma voz doce a minha professora, a tia Jaqueline, ela era um poço de amor no mundo sujo de cidade de interior. Não se metia em confusões, estava longe das fofocas, fugia dos pretendentes que faziam fila em sua casa e apenas sabia ser amiga dos seus alunos. Dizem que ela sofria de alguma coisa, um amor perdido ou uma desilusão, mas não imagino quem em sã consciência faria isso com uma pessoa tão boa.

      — Vejo que o senhor não é muito de falar, tudo bem. Me chamo Jaqueline, sou professora nessa escolinha perto da prefeitura, vim saber como o senhor estava.

      O velhinho olhou para ela um tanto incrédulo, não emitiu nenhum som, mas era um avanço ver que ele mudara o foco dos seus olhos perdidos; O velhinho tinha cabelos brancos, grisalhos pelas areias do tempo, uma cabeça esculpida em pedra e revestida de carne para formar feições tão rudes, a pele morena de tantos sóis e um bigode e cavanhaque brancos, tinha um nariz de batata também, mas o resto não convém mencionar.

      — Sei que sua vida é um assunto seu, respeito isso, mas se precisar de ajuda estou aqui  para ajudar. Todos aqui nessa cidade querem saber de você, estão curiosos eu sei. O senhor tem uma família?

     Os olhos vermelhos da catarata encheram-se de lágrimas, mas o velhinho era forte demais para chorar. Engoliu o choro junto à glote; Minha professora entendeu que aquele era um ponto sensível e pediu desculpas. Pensou em ir embora, em vez disso ficou.

    — Eu imagino a dor que você esteja sentido. Deve estar sendo duro. Quando perdi meu pai foi assim, eu era muito jovem sabe? Meu pai era um homem assim como você, forte e de poucas palavras, mas eu sabia que ele gostava de mim.Era um advogado, um dos melhores lá em São Borja, o pessoal brincava para gente tomar cuidado senão São Borja acabaria trazendo "outro Getúlio Vargas". Felizmente meu pai nunca foi para a política; Minha mãe morrera quando eu nasci, e todo amor dele foi para mim... até que um dia ele morreu, ataque do coração fulminante. Nunca me senti tão triste na vida  — Tentou conter a lágrima junto às maçãs do rosto, mas a lágrima escorreu. O homem puxou um lenço do sobretudo, minha professora aceitou e quando devolveu, percebeu que o velhinho também ficara abalado;  — Foi a primeira vez que percebi que tinha ficado sozinha, eu estava na faculdade, aí tive que decidir entre trabalhar ou viver me lamentando, eu estava na porta de casa, matutando por duas horas, quando percebi que tinha que me levantar. Prestei o concurso para a fundação de cá e quando fui aprovada, eu vim; Isso tem cinco anos. 

       O velho olhava com uma estranha ternura para a menina, digo menina, pois ele parecia prestar atenção nela como se fosse uma garotinha sardenta do interior. A tia Jaqueline pensou que o velhinho estivesse a confundindo com alguém, mas continuou:

       — Eu consegui com muito esforço minha casa. Amo meu trabalho e adoro lidar com crianças, os adultos sempre têm algo de maligno dentro deles, por isso não me envolvo com gente grande, mas as crianças são puras; o choro de uma criança é um choro sincero, pode ter certeza.

       Minha professora notou que o velhinho tinha um livro em cima de seu colo. Um livro de cara de couro marrom, de folhas já amareladas pelo tempo e curiosa para saber o porquê daquele velhinho ser tão agarrado ao livro, perguntou:

        — Posso ver o seu livro? — Disse em tom delicado, o velhinho, com lágrimas nos olhos, meneou positivamente com a cabeça e tia Jaqueline pegou calmamente o livro em suas mãos.

        Era um livro antigo de 1962, dizia que era um livro do Sebo da Glória com um carimbo de março de 1963 na contracapa. Tia Jaqueline pegou o livro com bastante cuidado, segurando a base com a mão direita e folheando as páginas com a a ponta dos dedos. Era uma relíquia.

      As primeiras páginas estavam mais gastas que jornal velho, mas quando folheou a terceira página ela encontrou o título em letras de forma bem pronunciadas: "O VELHO E O MAR, por Ernest Hemingway. Editora Brasil, 1962". Foi então que tudo começou a fazer sentido, ela tinha lido esse livro quando era mais jovem, seu pai o tinha em sua biblioteca e lembrou o que ele dizia: "Um velho pode ser destruído, mas nunca derrotado".

       A emoção foi forte, suas mãos começaram a tremer e lágrimas rompiam de seu rosto, tia Jaqueline começara a ficar um pouco mais vermelha de sangue. Tentou se acalmar e leu um recado antes do Preambulo da edição brasileira:



       "Querido papai, eu queria lhe dizer nesse dia que tudo ficará bem. Sei que será difícil de agora em diante, o senhor perdeu a mamãe e agora está me perdendo. Não sei por quanto tempo durará a minha quimio e se dará grandes resultados. Ricardo está preocupado, ele tem medo de não suportar tudo. Ele é uma boa pessoa, ele é o ótimo marido e vem sendo um ótimo pai para nossos  filhos, espero que seja um ótimo genro para o senhor.
         Tenho medo de deixá-lo, papai, tenho muito mesmo, mas isso está além de mim. Por favor, me perdoe.
                                                                                                                       De sua filha,                                                                                                                                   Catarina"
                     

                                                                                                         
         O velho começou a chorar descontroladamente, começou a tremer de tanto nervosismos e abriu a boca com tanta força que Jaqueline achou que ele fosse gritar... Mas não gritou, os pulmões não tinham tanto ar quanto achava, mas ele emitiu o primeiro som desde que chegara era um gemido de dor atravessado pela falta de ar. Todos na praça acorreram para ver o que se passava.
        

           "Tia" Jaqueline compreendeu tudo e começou a tentar acalmá-lo, segurou-lhe as mãos e fitou-lhe bem fundo nos olhos, por um momento o senhor parou:

           — Eu sinto muito. Sinto muito mesmo, não posso entender isso. Você teve uma perda tão grande quanto a minha, eu entendi tudo, você a amava e não conseguiu suportar a perda. É por isso que leva esse livro, não é? Para se lembrar dela, para se lembrar de Catarina.

           O velho não emitiu mais nenhum som, mesmo com o semi-círculo de pessoas em sua volta esperando qualquer movimento para ajudá-lo, nada foi feito, e ele continuou parado, e ficou parado por horas, até que abriu o livro uma hora e começou a ler silenciosamente.

          As pessoas não compreenderam isso e começaram a ir embora, numa certa altura minha professora também foi. Mas ninguém esquecia que aquela figura, aquela estátua humana que os pombos tinha a deferência  de respeitar, que os padeiros tinham o prazer de ajudar. Que aquela figura um dia chorara de dor diante de todos na mais profunda catarse na pequena ágora ateniense daquela praça.

          E lia, noite e dia. Lia sob o sol, e sob a chuva. Sob o calor das tardes e a luz dos lampiões da praça cheio de mosquitos à noite.

         “Ele era um velho que pescava sozinho em seu barco, na Gulf Stream. Havia oitenta e quatro dias que não apanhava nenhum peixe. Nos primeiros quarenta, levara em sua companhia um garoto para auxiliá-lo. Depois disso, os pais do garoto, convencidos de que o velho se tornara salao, isto é, um azarento da pior espécie, puseram o filho para trabalhar noutro barco, que trouxera três bons peixes em apenas uma semana.” 

      Ele estava naquela praça por noventa e dois dias agora, aquele velho e seu livro. E todos acompanhavam com os olhos  o modo como ele se esforçava para ler as letrinhas miúdas do livrinho mesmo com a catarata meio avançada. Até que um dia a leitura terminou...

           Um dia estava voltando da escola, era uma quinta feira, quando percebi que o banco estava agora vazio. As pessoas se distribuíam em roda, as fofoqueiras, as beatas, as freiras, os guardas, os bêbados de praça, os tabeliães da prefeitura, as mães, os filhos, os pedreiros, carpinteiros, padeiros, quitandeiros. Todo mundo.             


        

            Mas o velhinho não estava mais ali...




            Não estava, tudo que estava ali era o vazio, o velho tinha morrido, tudo que ficara foi seu livro.

            Não sei como ele morreu, mas ele fora a maior atração da cidade naqueles dias de verão. Lembro até hoje a missa e o velório que fizeram em sua homenagem, meu avô estava de terno. Uma raridade naqueles tempos em que eu só o via em mangas de camisa, certa hora ele me chamou depois de por graxa nos cabelos e falou:

            — A tristeza é o maior dos males, corrompe o corpo e lacera a alma. Essa é a lógica da vida.

          Pôs sua gravata vermelha e levou-me para procissão em carreata. Todos choravam, digo todos. Dos bêbados do bar, às maricotas das beatas, os guardas armados, mas sobre a tia Jaqueline. Ela entendeu a razão de tudo, aquele era um velho e o mar. O mar era de tristezas que nunca iriam acabar.

            Hoje lembro dos dias que o livro continuava intacto naquele banco de praça, até sua lombada fosse desgastada pelo tempo e pelos cupins, que sua  capa se separasse do miolo e que um dia virasse pó depois de tantas chuvas e tantos sóis. Nesse dia colocaram um livro de bronze no banco, o Velho e o Mar. O Velho e o Livro.

           Não sei quem era o velho, ninguém sabe. Nem convém saber, ele nasceu sem voz, mas nasceu para ser querido e lido de todas as formas possíveis.

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