segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Um homem com um livro

     Quando ainda morava no interior todas as vezes que saía pela  praça da cidadezinha um velho senhor sentado num banco branco meio enferrujado daqueles de praça; Era um banco bem localizado, sobre a sombra das castanheiras e dos grandes carvalhos daqueles bosques tão perdidos da minha infância, havia algumas mangueiras talvez, ou será que eram macieiras? Não sei dizer, mas o que importava que todo dia que ia à padaria comprar pão, ele estava lá; quando ia à escola ele estava lá; Quando ia ao barbeiro, o velhinho estava lá.

       Não era um simples andarilho que adotara do desconfortável banco a sua casa, pelo contrário, o chapéu e a capa escura denotavam que ele tinha vivido muitos anos e não era largado à própria sorte; As crianças brincavam ao redor dele, faziam troça e plantavam diabruras, mas ele não ligava, continuava sozinho sentado naquele banco com suas rugas tão bem cortadas, os bigodes grisalhos de bode e os olhos cansados de catarata.

       Meu pai dizia que era só uma estátua, alguém sem importância que tomara o banco por companheiro. Minha mãe sempre tinha medo de passar perto dali, achava que talvez o velhinho fosse louco; Todo mundo comentara nas primeiras semanas na primeira cidadezinha sobre aquele velhinho, nos bares, na Igreja, nas fofocas de pé de janela. Todo mundo queria saber quem era aquele simpático velhinho, talvez não fosse ninguém, mas era alguém que trazia um novo ânimo na cidade, nas conversas e na paisagem. Nunca em trinta anos aquela cidade fora tão badalada quanto agora;

      O padre de batina e bíblia na mão, cheirando a vinho estragado quis prestar a palavra de Deus à conselho das beatas desocupadas de interior. Não deu muito resultado, na primeira linha do livro Êxodo, quem foi embora foi o padre. O velho deu pouca importância ao Antigo Testamento, seu companheiro de velhice, que agora daria menor importância ao novo.

     Os manés pinguços de botequim sorriam nos bares e dedicavam grandes quantidades de cachaça ao velhinho da praça; Quem sabe ele se juntaria aos outros no calor do interior e tomaria uma gelada?  Não deu certo também

      O delegado num certo dia, incomodado com os boatos e fuxicos da redondezas saiu à procura de respostas, mas voltou com o quepe nas mãos e uma dúvida na cabeça: Quem era aquele velho e porque ninguém conseguia falar com ele.

      O velhinho era enigmático, tinha olhos de um tom escuro bem penetrante e uma barba tão longa que podia-se dar um nó. O aspecto envelhecido de sua pela, os ossos fracos e os olhos perdidos fizeram com que todos tivessem compaixão por ele. Ninguém sabia quem era, mas meu avô duvidava: "Esse homem perdeu alguém que amava na vida".

      Meu avô era um homem sábio, ele tinha razão; Aquele homem perdera a voz no dia que perdeu alguém importante, tudo que tinha era a roupa do corpo e um livro no colo. 


       As pessoas se apiedavam dele; Vez em quando o padeiro trazia alguns pãezinhos pela manhã, o dono do bar trazia um prato de churrasquinho de gato à tarde, e quando era nos finais de semana era o pipoqueiro que se tornava bom samaritano; Ele comia por inércia, mas olhava em agradecimento. Ser velho é ser triste.

        Todos sorriam de volta, e de repente o velhinho passou a ser uma figura da cidade. O prefeito pensou em removê-lo para uma pensão, mas a população olhou isso com desagrado: "Se ele queria ficar ali, era pra ele ficar ali". Quando os casais de namorados passeavam à luz fraca da penumbra do Sol das quatro, cumprimentavam o velhinho.

        O pessoal do dominó também tinha um enorme respeito por ele.Até os pombos que sempre foram meio travessos e porcalhões  não brincavam em sujar propositalmente o velhinho da capa escura. Tinha um tom amargo em sua vida que não lhe fazia enxergar os dias e as noites.

       Não sei como ele fazia para ir ao banheiro ou beber água, acho que ninguém sabia. Duvido que fosse a um hidrante. Tudo que eu sabia é que quando ia para a escola eu me deparava todos os dias com aquele velho e o seu livro. Que livro seria?

       Um dia minha professora resolveu conversar com esse senhor. Ela era uma jovem simpática, era das campinas de São Bórgia, tinha olhos glaucos de alemã e cabelos negros de italiana, bonita e irresistível a qualquer criatura com um pouco de coração, trazia ela uma pastinha e uma régua de madeira que sempre levava consigo.

        — Bom dia, senhor.

        Tinha uma voz doce a minha professora, a tia Jaqueline, ela era um poço de amor no mundo sujo de cidade de interior. Não se metia em confusões, estava longe das fofocas, fugia dos pretendentes que faziam fila em sua casa e apenas sabia ser amiga dos seus alunos. Dizem que ela sofria de alguma coisa, um amor perdido ou uma desilusão, mas não imagino quem em sã consciência faria isso com uma pessoa tão boa.

      — Vejo que o senhor não é muito de falar, tudo bem. Me chamo Jaqueline, sou professora nessa escolinha perto da prefeitura, vim saber como o senhor estava.

      O velhinho olhou para ela um tanto incrédulo, não emitiu nenhum som, mas era um avanço ver que ele mudara o foco dos seus olhos perdidos; O velhinho tinha cabelos brancos, grisalhos pelas areias do tempo, uma cabeça esculpida em pedra e revestida de carne para formar feições tão rudes, a pele morena de tantos sóis e um bigode e cavanhaque brancos, tinha um nariz de batata também, mas o resto não convém mencionar.

      — Sei que sua vida é um assunto seu, respeito isso, mas se precisar de ajuda estou aqui  para ajudar. Todos aqui nessa cidade querem saber de você, estão curiosos eu sei. O senhor tem uma família?

     Os olhos vermelhos da catarata encheram-se de lágrimas, mas o velhinho era forte demais para chorar. Engoliu o choro junto à glote; Minha professora entendeu que aquele era um ponto sensível e pediu desculpas. Pensou em ir embora, em vez disso ficou.

    — Eu imagino a dor que você esteja sentido. Deve estar sendo duro. Quando perdi meu pai foi assim, eu era muito jovem sabe? Meu pai era um homem assim como você, forte e de poucas palavras, mas eu sabia que ele gostava de mim.Era um advogado, um dos melhores lá em São Borja, o pessoal brincava para gente tomar cuidado senão São Borja acabaria trazendo "outro Getúlio Vargas". Felizmente meu pai nunca foi para a política; Minha mãe morrera quando eu nasci, e todo amor dele foi para mim... até que um dia ele morreu, ataque do coração fulminante. Nunca me senti tão triste na vida  — Tentou conter a lágrima junto às maçãs do rosto, mas a lágrima escorreu. O homem puxou um lenço do sobretudo, minha professora aceitou e quando devolveu, percebeu que o velhinho também ficara abalado;  — Foi a primeira vez que percebi que tinha ficado sozinha, eu estava na faculdade, aí tive que decidir entre trabalhar ou viver me lamentando, eu estava na porta de casa, matutando por duas horas, quando percebi que tinha que me levantar. Prestei o concurso para a fundação de cá e quando fui aprovada, eu vim; Isso tem cinco anos. 

       O velho olhava com uma estranha ternura para a menina, digo menina, pois ele parecia prestar atenção nela como se fosse uma garotinha sardenta do interior. A tia Jaqueline pensou que o velhinho estivesse a confundindo com alguém, mas continuou:

       — Eu consegui com muito esforço minha casa. Amo meu trabalho e adoro lidar com crianças, os adultos sempre têm algo de maligno dentro deles, por isso não me envolvo com gente grande, mas as crianças são puras; o choro de uma criança é um choro sincero, pode ter certeza.

       Minha professora notou que o velhinho tinha um livro em cima de seu colo. Um livro de cara de couro marrom, de folhas já amareladas pelo tempo e curiosa para saber o porquê daquele velhinho ser tão agarrado ao livro, perguntou:

        — Posso ver o seu livro? — Disse em tom delicado, o velhinho, com lágrimas nos olhos, meneou positivamente com a cabeça e tia Jaqueline pegou calmamente o livro em suas mãos.

        Era um livro antigo de 1962, dizia que era um livro do Sebo da Glória com um carimbo de março de 1963 na contracapa. Tia Jaqueline pegou o livro com bastante cuidado, segurando a base com a mão direita e folheando as páginas com a a ponta dos dedos. Era uma relíquia.

      As primeiras páginas estavam mais gastas que jornal velho, mas quando folheou a terceira página ela encontrou o título em letras de forma bem pronunciadas: "O VELHO E O MAR, por Ernest Hemingway. Editora Brasil, 1962". Foi então que tudo começou a fazer sentido, ela tinha lido esse livro quando era mais jovem, seu pai o tinha em sua biblioteca e lembrou o que ele dizia: "Um velho pode ser destruído, mas nunca derrotado".

       A emoção foi forte, suas mãos começaram a tremer e lágrimas rompiam de seu rosto, tia Jaqueline começara a ficar um pouco mais vermelha de sangue. Tentou se acalmar e leu um recado antes do Preambulo da edição brasileira:



       "Querido papai, eu queria lhe dizer nesse dia que tudo ficará bem. Sei que será difícil de agora em diante, o senhor perdeu a mamãe e agora está me perdendo. Não sei por quanto tempo durará a minha quimio e se dará grandes resultados. Ricardo está preocupado, ele tem medo de não suportar tudo. Ele é uma boa pessoa, ele é o ótimo marido e vem sendo um ótimo pai para nossos  filhos, espero que seja um ótimo genro para o senhor.
         Tenho medo de deixá-lo, papai, tenho muito mesmo, mas isso está além de mim. Por favor, me perdoe.
                                                                                                                       De sua filha,                                                                                                                                   Catarina"
                     

                                                                                                         
         O velho começou a chorar descontroladamente, começou a tremer de tanto nervosismos e abriu a boca com tanta força que Jaqueline achou que ele fosse gritar... Mas não gritou, os pulmões não tinham tanto ar quanto achava, mas ele emitiu o primeiro som desde que chegara era um gemido de dor atravessado pela falta de ar. Todos na praça acorreram para ver o que se passava.
        

           "Tia" Jaqueline compreendeu tudo e começou a tentar acalmá-lo, segurou-lhe as mãos e fitou-lhe bem fundo nos olhos, por um momento o senhor parou:

           — Eu sinto muito. Sinto muito mesmo, não posso entender isso. Você teve uma perda tão grande quanto a minha, eu entendi tudo, você a amava e não conseguiu suportar a perda. É por isso que leva esse livro, não é? Para se lembrar dela, para se lembrar de Catarina.

           O velho não emitiu mais nenhum som, mesmo com o semi-círculo de pessoas em sua volta esperando qualquer movimento para ajudá-lo, nada foi feito, e ele continuou parado, e ficou parado por horas, até que abriu o livro uma hora e começou a ler silenciosamente.

          As pessoas não compreenderam isso e começaram a ir embora, numa certa altura minha professora também foi. Mas ninguém esquecia que aquela figura, aquela estátua humana que os pombos tinha a deferência  de respeitar, que os padeiros tinham o prazer de ajudar. Que aquela figura um dia chorara de dor diante de todos na mais profunda catarse na pequena ágora ateniense daquela praça.

          E lia, noite e dia. Lia sob o sol, e sob a chuva. Sob o calor das tardes e a luz dos lampiões da praça cheio de mosquitos à noite.

         “Ele era um velho que pescava sozinho em seu barco, na Gulf Stream. Havia oitenta e quatro dias que não apanhava nenhum peixe. Nos primeiros quarenta, levara em sua companhia um garoto para auxiliá-lo. Depois disso, os pais do garoto, convencidos de que o velho se tornara salao, isto é, um azarento da pior espécie, puseram o filho para trabalhar noutro barco, que trouxera três bons peixes em apenas uma semana.” 

      Ele estava naquela praça por noventa e dois dias agora, aquele velho e seu livro. E todos acompanhavam com os olhos  o modo como ele se esforçava para ler as letrinhas miúdas do livrinho mesmo com a catarata meio avançada. Até que um dia a leitura terminou...

           Um dia estava voltando da escola, era uma quinta feira, quando percebi que o banco estava agora vazio. As pessoas se distribuíam em roda, as fofoqueiras, as beatas, as freiras, os guardas, os bêbados de praça, os tabeliães da prefeitura, as mães, os filhos, os pedreiros, carpinteiros, padeiros, quitandeiros. Todo mundo.             


        

            Mas o velhinho não estava mais ali...




            Não estava, tudo que estava ali era o vazio, o velho tinha morrido, tudo que ficara foi seu livro.

            Não sei como ele morreu, mas ele fora a maior atração da cidade naqueles dias de verão. Lembro até hoje a missa e o velório que fizeram em sua homenagem, meu avô estava de terno. Uma raridade naqueles tempos em que eu só o via em mangas de camisa, certa hora ele me chamou depois de por graxa nos cabelos e falou:

            — A tristeza é o maior dos males, corrompe o corpo e lacera a alma. Essa é a lógica da vida.

          Pôs sua gravata vermelha e levou-me para procissão em carreata. Todos choravam, digo todos. Dos bêbados do bar, às maricotas das beatas, os guardas armados, mas sobre a tia Jaqueline. Ela entendeu a razão de tudo, aquele era um velho e o mar. O mar era de tristezas que nunca iriam acabar.

            Hoje lembro dos dias que o livro continuava intacto naquele banco de praça, até sua lombada fosse desgastada pelo tempo e pelos cupins, que sua  capa se separasse do miolo e que um dia virasse pó depois de tantas chuvas e tantos sóis. Nesse dia colocaram um livro de bronze no banco, o Velho e o Mar. O Velho e o Livro.

           Não sei quem era o velho, ninguém sabe. Nem convém saber, ele nasceu sem voz, mas nasceu para ser querido e lido de todas as formas possíveis.

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