sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Um último conto de novembro

         Meu avô era um homem do interior, nascido e criado no calor dos sertões brasileiros; era um homem de simples. Honesto e trabalhador, não era homem de muitas palavras e quase nunca sorria. A despeito de sua simplicidade como pessoa, era alguém de valor e estima, mais esperto que muitos intelectuais hoje.

         Por algum tempo ele trabalhou com o contrabando de cachaça, saía todas as noites a cavalo carregado de produtos para não ser pego pelo fiscal da prefeitura que sobretaxava as bebidas. Mas de manhã tudo o que fazia era vender sacos de açucar no Recife. Valente, um dos poucos homens de fibra que ainda resistiam em seu tempo, enquanto os homens andavam de brilhantina, meu avô andava de espingarda.

        Bebia cachaça num só gole e fumava mais que uma chaminé. Vivia contando histórias de suas viagens para os amigos quando voltava do interior, mas o que mais se ressentia, a despeito de ser aventureiro. De ter perdido seu pai tão cedo. Meu avô sentia faltava de seu pai às vezes, quando falava de meu bisavô seus olhos enchiam-se de lágrimas.  Nunca soube como meu bisavô morreu, nem tampouco meu avô se esforçou a contá-lo. Vovô não gostava de contar de sua vida pessoa, mas adorava contar várias histórias de suas aventuras.

        Certa vez brigou com ladrões de cavalos no interior, atirou a espingarda, a primeira vez na sua vida e conseguiu salvar um carregamento inteiro de cachaça no caminho. Mas na segunda vez, não teve sorte porém, teve que entregar o cavalo caso contrário seria morto. Desde então passou a subornar os bandidos para que não o atacassem tanto durante a noite. O Brasil que ele vivia era diferente do Brasil atual, os bandidos ainda tinham cordialidade.

       Contudo, mesmo sendo um homem que poderia muito bem ter vivido no século XIX ou no faroeste americano, meu avô ainda era homem de seu tempo. Ficou sabendo pelo rádio a aclamação de Juscelino e mais do que isso notícias da construção de uma nova capital, no interior do Planalto Central. A TV ainda não tinha chegado ao interior, mas imagino o choque que fez meu avô sair de sua vida nos arredores de Recife e decidir enfrentar a estrada até o Goiás. Ele tinha vinte e três anos, pouco mais velho do que eu.

       Imagino o choque que foi encontrar os arranha-céus gigantescos e suntuosos de Oscar Niemeyer na Esplanada dos Ministérios ainda sob a forma de esqueletos de concreto armado. Para quem só era acostumado com casas de alvenaria muito antigas, para ele aquilo devia ter saído de outra realidade. 

       Meu avô nessa época escrevia tão pouco e tampouco lia como as pessoas leem hoje, mas era desnecessário naquela época. Ele era um operário do sertão, um candango, muito mais trabalhador empenhado do que um pobre miserável como eu que fica brincando de poeta-proletário.


        Em Brasília, as barracas de lona montadas na Cidade Livre e na vila IAPI era a evidência que o Brasil de JK ainda era um Brasil feudal a despeito da modernidade aparente. À noite, as crianças morriam no frio do inverno. De dia rolavam mortes e assassinatos por dívidas de jogo ou mesmo só pela bebedeira. Ainda assim Brasília era a primeira vez que ele veria uma cidade moderna.


        Canteiro de obras na terra vermelha. Meu avô trabalhou, seja nas obras no Ministério do Planejamento, Itamaraty, nas quatrocentos ou duzentos. Meu avô trabalhou. Trabalhou como pode no Hospital Militar e nas obras do Aeroporto, mas isso não lhe serviu para que fosse trabalhar na NOVACAP. Trabalhou tanto em Brasília, mas nem chegou a conhecer JK, apertar sua mão , bater no seu ombro e dizer: "Trabalho feito, presidente. Aqui está o novo Brasil". Ele mal conseguiria reconhecer o presidente da época agora, Jânio Quadros, com o seus ternos cheios de caspa e os óculos fundo de garrafa.


        Contudo, meu avô sabia reconhecer a beleza no meio do calor de homens suados correndo de um lado para outro com vergalhões de aço nas costas. E assim conheceu minha avó.

          Olhos azuis, cabelo negro.e o toque lusitano. Minha avó ainda hoje é um poço de inocência, uma criança no corpo de um adulto, ou melhor de uma velha. Suponho que fosse mais inocente na época, e mais bonita. Por isso acho bem provável que meu avô tenha se apaixonado por ela.


         E os dois passaram quarenta anos juntos, se não estou errado. E duvido que tenha partido deslizes do meu avô no meio do caminho (embora eu não possa afirmar categoricamente nada). O problema é que o amor de meu avô era compartilhado com a bebida e o cigarro, todas as vezes que ele voltava de sessões de bebedeira, passava a ser uma pessoa agressiva. Batia na minha avó e nos filhos. Entretanto, nenhum casamento é um mar de flores, e de fato, eles tiveram vários filhos: incluindo minha mãe, que não é exemplo pra nada.

         Meu avô começou a trabalhar num ótica na W3 Sul. E com muito sacrifício conseguiu construir uma casa num terreno muito espaçoso, o qual eu chamava deliciosamente chácara do vovô.   Ali tinha pés de tomate e chuchu, que minha avó usava para fazer suas comidas sem gosto. E também bananas verdes que davam no pé, cana de açucar que era cortada para a gente (os netos) comerem em lascas. 

        A "chácara de Seu Manel", me lembra muito verde e da época que brincava com meus tios de pique-esconde e jogar bola. Como também as brigas que tinha com meus primos e dos dias que saia de casa e ia dormir na casa de meu avô por causa dos conflitos constantes de minha mãe com o meu pai.



         Por muito tempo, meu avô era meu pai. E sim, foi ele que me criou a despeito de tudo. Vovô passou por muitas provações na vida, mas era um homem forte. A maior de todas elas foi não ter conseguido salvar meu tio dos braços das drogas, e isso o marcou profundamente nos últimos anos. O tornou um tanto mais amargo, o fim triste do meu tio, tornou-o outra pessoa.

          Os filhos passaram a ser um engodo para o meu avô. Sazonalmente há brigas de famílias graves e discussões tão banais que tornaram tudo mais difícil para uma pessoa de idade como o meu avô. Entretanto, apesar disso, a vida dele mostrava uma força de vontade alicerçada na fé. Religião pra mim é uma franca alegoria, mas para ele era uma coisa francamente séria.

          De fato, meu avô era um homem diferente de outras pessoas. Um homem corajoso, que depois de muito tempo se submeteu a enfrentar o cigarro e a bebida e tornar-se um indivíduo mais familiar. Era um homem silencioso ao mesmo tempo que sábio, e hoje entendo a razão de seu silêncio e falta de sorrisos. A vida é muito curta para ser desperdiçada com falácias;


          Só sinto pena de meu avô porque nem os seus filhos, nem os seus netos chegaram perto de sua pessoa, principalmente os filhos, que se tornaram tão mesquinhos por suas rixas sem importância através dos anos.  Quando fui vê-lo pela última vez eu pensei justamente nisso e me apiedei de não ter sido o melhor dos netos nos últimos anos.


          Hoje, dia 7 de novembro. Meu avô entrou na UTI, com um quadro de desnutrição e desidratação em decorrência de seu câncer terminal. A despeito de sua fragilidade nos braços, e a dor em seu rosto. Os cabelos caídos e suas rugas cada vez mais profundas. Esse homem que hoje descansa no leito, sem qualquer suporte dos médicos, senão umas poucas palavras reconfortantes (e mentirosas) é um herói para mim. Um herói que nunca será lembrado pela História, porque nunca foi político, ou mesmo cientista ou artista. Mas apenas um cidadão brasileiro.
         
. Correção: Hoje pela manhã, recebi a notícia que ele faleceu em decorrência do câncer. Ao contrário do que ele tanto desejara, não lhe foi ofertada a opção de morrer em casa. Descanse em paz, vovô. Você merecia bem mais

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