Ser de esquerda é ter um espírito próprio de se indagar sobre as injustiças do mundo, questionar os motivos para ter uma divisão absurda dos recursos materiais e humanos maior para alguns e quase nula para outros; É se compadecer com o sofrimento de muitos (e quando não for muitos mais, é ainda se compadecer com o sofrimento humano, mesmo que seja minoria).
Não admitir ser comodista é ser logicamente um progressista, e quem é de esquerda de verdade acredita inerentemente no progresso: O progresso material e social; Seja pela revolução, seja por uma economia de transição, quem é de esquerda crê construir algo de melhor; e no fim das contas, é uma pessoa bem intencionada por esses motivos.
Um verdadeiro partidário de esquerda é disposto a fazer sacrifícios em torno de um pouco mais de igualdade, justiça; sabe que a vida será um martírio, mas aceita de bom grado o desafio. Espera com uma moral arrebatadora o melhor de seus companheiros e o melhor de si, cobra todos os dias por eficiência em suas ações, e humanidade em seus atos. Ser de esquerda é pensar em quesitos humanísticos;
Mas o que fazer quando mesmo com o melhor dos espíritos nossos ideais são usurpados pela demagogia? Quando tiranos se aproveitam de nossos sonhos para impor um centralismo democrático tradicionalmente autoritário? Eles se corromperam ao acreditar que a mera violência por si mesma é solucionadora inerente dos problemas sociais; ao contrário, a violência pode ser a parteira da História, mas não é a única, e não podemos aceitar que ela se mantenha mesmo quando mantemos firme o nosso ideal.
A violência inerente com que a Revolução Russa levou uma sociedade que buscava seguir um caminho é algo que entristece de fato um segmento da social-democracia, é como se fosse uma mácula do pensamento socialista. "Não existem revoluções que não tenham tido Terror", Lenin teria dito. Em verdade, a justificativa que ele apresentou foi a partir da análise da Ditadura de Oliver Crowell e do Terro Jacobino de Robespierre, mas os próprios ocasionadores do Terror são fagocitados por sua própria criação, numa variação da novela de Robert Stevenson, Doctor Jekyll and Mister Hyde. O terror expõe as piores características humanas, a sua propensão pela violência.
E a despeito de o Iluminismo ter declarado que toda a violência é válida quando há um motivo justo, nenhuma violência é tecnicamente racional, nem quando houve o Termidor ou a caça aos kulaks na URSS, muito menos na Revolução Cultural. Nenhuma violência é válida pela simples razão de que ela não só viola os direitos do homem à vida e á liberdade, como também ceifa a sociedade de um espaço de discussão para o predomínio da loucura e da violência, inicia-se um caos social em que vizinho denuncia vizinho, amigo trai amigo e mulher se vinga do marido. As coisas mais mesquinhas aparecem por baixo do barranco.
Ser de esquerda é um exercício diário de humildade. Um exercício que muitas pessoas não conseguem manter quando chegam ao poder, e acabam impondo com violência a sua verdade a outras pessoas, seja opositores ou entusiastas; O maior delito que o pensamento radical construiu foi tentar impor valores sociais universais sem observar a realidade cultural de uma sociedade, tampouco, muitas vezes destruíam a realidade política a partir de assassinatos políticos e prisões.
O seio do ideal revolucionário é a destruição criativa. Destruir o sistema capitalista para construir algo inteiramente novo, um niilismo com propósitos nobres, mas nem sempre reais; Tal como hoje as velhas marias-fumaças enferrujam em seu ostracismo para dar lugar aos trens-bala, ou mesmo os automóveis darão lugar para o futuro teletransporte no futuro médio-distante, os revolucionários acreditavam que o capitalismo estava fadado à sua destruição.
A questão é que o capitalismo continua firme e forte (apesar que tenha seus momentos de fraqueza, conforme os ciclos de Kondratiev), e nesses momentos de crise, onde o povo sofre os mais profundos efeitos enquanto a concentração de renda aumenta, o capitalismo se renova e se refaz para continuar seu caminho: Às vezes ele cede às pressões sociais e toma "medidas profiláticas" de evitar novas revoluções, como foi o caso do New Deal, outras vezes, acaba retirando todas as seguridades sociais em torno da ilusão da eficiência das grandes empresas, neoliberalismo tharcheriano.
O fato que o atual sistema continua sendo assustadoramente eficiente para produzir riquezas, e crescendo cada vez mais, não só por mexer com os vícios e aspirações psicológicas das pessoas (que a psicologia econômica e a microeconomia hoje estudam com afinco), como também levou a uma proporção metafilosófica a vida cambial.
Não que o dinheiro já não fosse um conjunto filosófico de conferir valor a um bem que na verdade é só um pedaço de papel pintado (tal como o ouro ainda é um mineral dourado com propriedades reconhecidas apenas na eletrônica), mas o dinheiro passou a ter uma proporção cada vez menos palpável e concreta, até chegar ao nível filosófico intrísseco e ser atrelado ao conceito de número imaginário: um número existente na teoria, mas inexistente no mundo prático, exceto na computação. E esse é o valor do dinheiro hoje, o dinheiro hoje é um número imaginário que se elevado ao quadrado pode dar negativo, porque no fim, não há nada mais virtual e tecnológico do que o mercado de ações.
E o mercado de ações é um vício como outro qualquer, é uma evolução do Pôquer ou do Black Jack, onde você aposta todas as suas fichas em determinadas frações de uma empresa (sem necessariamente ter poder de administração desse negócio) para no fim esperar ter um ganho financeiro em cima de outra pessoa: No Black Jack, você nunca ganha nada em cima da casa, você sempre ganha em cima do fracasso de outro jogador. Psicologicamente falando, especulação é um vício tal como o vício em jogo de cartas e talvez tenha sido assim que surgiu a especulação, com o jogo.
O caráter lúdico do ganho de dinheiro não pode ser quantificado, assim como o caráter de colocarmos valores irreais num bem ou produto. Tal como foi com a Crise das Tulipas, na Holanda, que foi a primeira crise financeira que se teve notícia no mercado de valores.
Em todo caso, o papel da esquerda é fazer valer as regras sociais do jogo; defender os perdedores desse processo que não são levados em conta nesse vício lúdico que é o mercado de ações: os empregados, os proletários que vendem a sua mão de obra em troca de sua própria sobrevivência;
Marx dizia que a medida que os anos passariam, as tensões entre a burguesia e o proletariado aumentariam de modo que as fileiras do proletariado aumentariam cada vez mais juntamente com a exploração da burguesia sobre essa classe; Entretanto, Marx estava errado, no momento chave da expansão do capitalismo, o trabalhador inglês teve um aumento no seu poder aquisitivo em por volta de 15%, é claro que o lucro do burguês foi ainda maior, mas isso mostra que apesar do aumento da exploração, houve também um aumento dos direitos do trabalhador.
Isso incrivelmente se deu graças aos liberais e não aos socialistas, embora os socialistas estejam ligados a esse processo; os liberais foram responsáveis pela expansão do sistema educacional para as classes mais baixas devido à necessidade cada vez maior de técnicos para trabalharem nas fábricas, isso levou a um aumento do salário devido à lei da oferta e da procura, e quem não se especializou ficou para o exército de reserva. Foi uma janela de oportunidades que se abriu nas fileiras do proletariado.
Os movimentos trabalhistas eram duramente combatidos pelos conservadores, mas o liberalismo inglês foi perspicaz ao compreender que algumas mudanças pontuais no sistema, "medidas profiláticas", esse é o termo da literatura da época, eram interessantes para o seu projeto político de criar uma sociedade nova a partir de seus referenciais pressupostos: A felicidade geral do homem a partir do ganho material e das riquezas. E só numa sociedade estável, sem indícios de lutas internas violentas isso poderia se desenvolver, assim para acalantar as reivindicações sociais os liberais começaram a fazer concessões aos trabalhadores, lentas obviamente.
O papel da esquerda e dos trabalhistas é ser a vanguarda das mudanças sociais, é estimular cada vez mais que a exploração sobre o trabalhador comum seja menor e que ele passe a ter mais direitos; o papel dos conservadores é impedir que essas mudanças sejam nocivas ao corpo social como inteiro, para que não aja rupturas e derramamento de sangue, eles defenderam os pontos de vista dos "exploradores", mas eles também são responsáveis por uma parcela da identidade cultural da sociedade. E o papel dos liberais é mediar esses dois grupos, e por isso que o papel do liberal é o mais difícil, pois além dele ser criticado pelos dois lados, ele é vulnerável em certas épocas a desaparecer, como foi o caso do período entre a crise de 1929 até o final da Segunda Guerra Mundial;
O problema de mudanças bruscas na sociedade é acabar deixando a sociedade instável politicamente e sem um norte jurídico, nesse tipo de situação os impulsos psicológicos mais mesquinhos aparecem em atitudes francamente impensadas. Uma sociedade civil deve sempre buscar o equilíbrio entre o radicalismo e conservadorismo para a sua segurança institucional, caso isso não ocorra corre-se o risco de todas as antigas normas sociais serem desconsideradas.
A classe média (petit-bourgeosie, nos conceitos marxistas) é a vanguarda do pensamento conservador, não à toa que o fascismo, bem como o nazismo nasceram (e foram apoiados) em massa pela classe média italiana e alemã frustrada com suas perdas na crise de 29 e com o "perigo vermelho" que representava a União Soviética e o bolchevismo.
A classe média é instável consigo mesma, ela deseja se tornar uma burguesia com o poder aquisitivo e seguridade social desejados, mas tem um trauma de sempre estar em perigo constante de acabar se empobrecendo e entrando no proletariado. De modo que ela tem medo da pobreza, e esse medo faz com que ela aceite as coisas mais absurdas possíveis em prol de sua "falsa sensação de segurança". Tal reacionária quanto a classe média talvez só o camponês, como diria o Lênin em "Como iludir o povo", e Marx em vários escritos.
Entretanto a classe média também é uma das mais beneficiadas pelas lutas históricas da esquerda, ela conseguiu a previdência social, direitos trabalhistas, sistema de saúde, férias, e outras coisas que só foram obtidas a partir de lutas do proletariado. Ela é esquizofrênica em sua constituição e digo sem mais delongas, nunca será homogênea em seus interesses.
O radicalismo assusta a pequena-burguesia, e o radicalismo demais leva ao proletariado a tomar atitudes que externar a catarse de sua exploração por meio da violência a outros indivíduos, e esse é o perigo. O perigo de as lutas desconfigurarem por inteiro o convívio social, além do fato da reação descabida do conservadorismo.
Pior que o conservadorismo é o reacionarismo; O reacionarismo é um morto-vivo, um zumbi histórico, que aparece só em sociedades que não são tecnicamente desenvolvidas economicamente ou politicamente, pois não há coisa mais anacrônica que invocar o passado como modelo. O reacionarismo é possível em contextos repressivos de estados "atrasados", como a Rússia, Áustria e Prússia na Santa Aliança pós-Congresso de Viena, a Espanha de Franco depois da derrota dos republicanos na Guerra Civil Espanhola, Portugal (sempre sendo Portugal) de Salazar, a Argentina no golpe de 1930 pela aliança dos agropecuários com o exército para derrubar Yrigoyen, e o Brasil em 1964 com a sua Marcha da Família com Deus para Liberdade, e os TFP, onde a classe média apoiou o golpe civil-militar para acabar "com o perigo vermelho".
O papel da esquerda é difícil, ser a vanguarda das mudanças e demandas sociais nem sempre é fácil; Ela tem que lutar não só com os liberais e conservadores, como também tem que tentar dar uma homogeneidade aos anseios sociais existentes para que a vontade da maioria prevaleça; Na política, quando se está fora do poder, deve-se ser oposição, denunciar os erros e defender os desejos sociais. No poder deve tomar cuidado com a arrogância e passar a ouvir bem a sua base, compreender a identidade política existente e ter cuidado para não ser autoritário.
A União Soviética é sem dúvida nosso melhor legado; e sabem porquê, ela nos ensinou o que devemos fazer e, o principal, o que não fazer. O experimentalismo soviético deve ser louvado, então devemos dar fim ao nosso constrangimento quando lembramos que o muro de Berlim deu presságio ao agouro de Hitler: "Basta chutar a porta que o resto desmoronará". Tudo desmoronou porque deixamos, e esse foi o nosso erro.
Hoje temos que saber que uma economia estritamente planificada é uma forma completamente difícil e complicada de gerir recursos, que não é muito eficiente frente a uma economia de mercado e que não podemos aplicá-la do jeito radical na forma de Planos Quinquenais tal com a URSS aplicou desde Stálin e a China aplica até hoje. Devemos dar espaço às discussões, não exercendo pressão imediata nos grupos sociais existentes, para não cair no mito da inflabilidade de um Grande Líder ou de um modelo, devemos ser humildes para reconhecer nossos erros. Nós somos socialistas, não somos clérigos da Igreja.
O suspiro da Esquerda é de alívio, na medida que abandonamos o Zero e o infinito e o Arquipélago Gulag, hoje não há espaço para ditaduras; e o que aprendemos com isso tudo é ter sempre ciência no nosso papel como transformadores sociais; a social-democracia nórdica não teria tido forças sem o radicalismo bolchevique, tampouco o Welfare state francês ou alemão teria nascido senão tivesse a sombra de um bolchevismo forte, ou mesmo as pressões sindicais cotidianas.
Temos que identificar nossos erros sem nos basear em fidelidades pessoais, e esse é o nosso perigo hoje. Ficamos tão calados, tão presos a um modelo que estamos aceitando o esvaziamento de nossos ideais tão rápido em torno de um populismo e um assalto do Estado por usurpadores autoritários, seja na América Latina, seja na Europa. Temos que aprender com a União Soviética e o Zero e o infinito a nunca nos calarmos, a criticar até mesmo quem se diz ser dos nossos, pois um socialista na verdade nunca se deixaria levar pela corrupção e pelo populismo desorganizado.
A União Soviética nos mostra que começar tudo do zero é perigoso, sempre teremos que ter um autocontrole imenso para impedir nossos erros e ainda assim não fugiremos ao nosso passado. A ruptura inteira com nosso passado inexiste, é um sonho que não poderemos manter, de modo que criar um novo com a destruição do que já existiu é impossível, mas é possível modelar nosso tempo conforme as necessidades existentes.
A esquerda deveria estudar a União Soviética, estudar de verdade. Olhar seus erros, olhar o que deu errado e que não deve ser repetido. Deveria olhar para os que erram ainda hoje, Coreia do Norte, Cuba; e os que tentam se renovar e ainda não se encontraram direito, seja os ex-comunistas da Europa Oriental ou a China. Isso mostraria bem o que devemos fazer no futuro.
E não podemos nos esquecer as realizações do soviéticos. O combate ao analfabetismo (que só teve força com o poder bolchevique), as liberdades e direitos da mulher, o nascimento do feminismo como campo teórico, o experimentalismo soviético nas artes de vanguarda, seja cinema, seja artes plástica e teatro. As novas concepções de música e arquitetura, a transformação rápida para uma sociedade industrial de indústria pesada; As realizações científicas no campo da cosmonáutica e da medicina.
Mais do que isso, há um período muito bom para ser estudado que desgraçadamente foi deixado para trás, o laboratório de experiências: A década de 20 na União Soviética, onde se chegou mais perto de uma sociedade democrática na Rússia, com suas experiências "mais ou menos" bem sucedidas no campo de planejamento econômico na agricultura e na economia: a NEP.
Sim, parece desenterrar um cadáver, mas a NEP pode ser a resposta para os nossos problemas econômicos hoje, a teoria esbouçada por Bukharin e Rykov responde aos anseios de construir uma sociedade que haja ao mesmo tempo desenvolvimento econômico com a manutenção da seguridade social, com o firme controle do Estado em empreendimentos de significância estratégica, e a manutenção do livre mercado num aspecto de pequena e média propriedade. Os soviéticos têm muito a nos ensinar ainda.
O espírito de Lenin pode ter desaparecido, mas os ensinamentos dos soviéticos nem tanto. Eles têm muito a ensinar na sua sombra do passado e hoje, quase vinte e três anos desde a irresponsabilidade de Gorbachiov e Yeltsin, o mundo e sobretudo os intelectuais de esquerda podem olhar tudo com outros olhos.
O suspiro da esquerda é poder olhar seu passado agora criticamente e poder reconstruir seu futuro de maneira tecnicamente autossustentável. Esse é o legado da União Soviética que não podemos deixar desaparecer: aprender com nossos erros e seguir em frente.