sábado, 25 de maio de 2019

Aço Incandescente III

        Por entre as verdes folhas dos ciprestes
       O uivo temeroso irrompia a falena.
       Ouça bem, o que digo, aedo
       Que bem vivo é tremor do medo
       Que ressabia sobre nossos olhos.

       A toque de fuzis, na intensa saraivada
       Jaz no chão gelado do solo russo
       O sangue de nossos camaradas.

       Seus olhos brilhantes estão opacos,
       as cores vistosas do sangue e do medo
       cortam a extensão desses campos.
       Corvo Negro está próximo."
                                                 Abraham Goldstein, 1918.

      Era uma noite de sábado quando Malinovsky foi acordado contra a sua própria vontade, desabou no chão contrariado enquanto Goldstein e Markus arrumavam suas trouxas de campanha, o céu estava impronunciável, sem nuvens, sem que pudessem haver adjetivos para quantificar aquela noite tão assombrosa, aos poucos começou a cair a chuva, roubando o calor dos soldados que se acomodavam junto aos trilhos do trem, a umidade fria fazia com que alguns tossissem. O chão de barro passou a corromper e enxovalhar as botas dos soldados, enquanto o comissário Petrov lia as ordens de Moscou através do telegrafo.

      Tomado por um completo desrespeito quanto a sua felicidade do destino, Malinovsky pensava se iria durar muito até que a guerra tirasse aquela noite cinzenta e torna-se tudo diferente... Não demorou.

      Os seus olhos viam de longe pequenos vultos correrem pela noite, quando de repente o fumo da pólvora resplandeceu sobre o ar, o comboio estava sendo atacado. Os tchecos chegaram mais cedo, as artilharia escondidas por trás das árvores começaram a quebrar o aço do trem blindado; o foguista, apressado, começou a dar marcha ré para salvar ao menos o trem, os homens tentaram correr para dentro da composição, não houve tempo. Os cossacos começaram a trotar com os seus sabres encurvados pelos flancos, enquanto os tchecos corriam das valas com rifles na mão, não havia nenhuma sombra de conforto naquela situação.

    Malinovsky se jogou no chão, Markus e Goldstein tentaram correr, mas foram contidos diante da fuzilaria. Com o rifle Mosin Nagant engatilhado, o jovem rapaz tentava ver no escuro algo que pudesse atirar; a noite estava tão escura que ele não entendia como os tchecos conseguiam enxergar, foi quando o comissário abriu um caixa com dinamites e começou a acender o pavio com o isqueiro. A toque de poucos minutos, explosões e clarões cortaram o campo aberto e estilhaçaram com o ataque dos tchecos.

     "AO ATAQUE!", gritou o comissário Petrov com um revólver Mauser nas mãos e uma espada na outra. Alguns homens corajosos seguiram atrás do comissário, Malinovsky foi um deles, com o rifle nas mãos ele disparava a esmo; as peças de artilharia se moviam e recalibravam seus canos, tinha que ser rápido, antes que os cossacos chegassem, os soviéticos tinham que rechaçar o ataque à ferrovia.

     Os cavaleiros eram doze ao todo, uma tropa irregular, de homens barbados com ushankas de feltro felpudo, Malinovsky se escondeu atrás de uma pedra e começou a atirar, acertou um cossaco à sua esquerda enquanto outro cossaco ressabiava o seu sabre sobre o pescoço de um companheiro. Diante do caos, Petrov se embrenhou na mata e entrou em luta corpo a corpo com um soldado tcheco escondido debaixo de um tronco de árvore. Aos poucos, os oitenta soldados que sobraram, seguiram o exemplo dos dois e tomaram a iniciativa no ataque noturno; A lua vez por outra aparecia e iluminava a floresta, naquela fronteira entre a Europa e a Ásia, podia-se ouvir os lobos uivando à distância; Não demoraria muito para eles farejarem o cheiro de sangue.

       Markus correu raivosamente na direção de dois Brancos que disparavam indiscriminadamente nos camaradas feridos junto à linha do trem, enquanto os soldados agonizam de dor, os dois patifes se esforçavam pra prolongar a dor, atirando em suas pernas; Malinovsky ao perceber que Markus iria ser atacado por um tcheco, pulou em cima de um cavalo dos cossacos e atropelou o tcheco sem cerimônia.

       Goldstein tremia de medo quando de repente um bala de canhão caiu no jovem rapaz que estava se escondendo ao seu lado, com as tripas expostas, o garoto produzia um grunhido tão horrendo que ensurdeceu a todos no campo de batalha, foi quando o pequeno Abraham pegou o seu rifle e correu em direção à floresta com a baioneta descoberta.

       "Camaradas, protejam-se, não deixem que os canalhas os peguem desprevenidos", gritava Petrov.


        O comissário tropeçou numa pedra e caiu no chão acidentado de um morro, enquanto se arrastava pelo relevo irregular, ele servia de alvo fácil para os tchecos que correram em sua direção.

       "Cuidado, comissário!"

       Foi quando Markus entrou na frente e levou duas balas nas costas, não teve muito tempo, Petrov só pode ver o rosto do jovem letão cair pesadamente na sua frente, seus olhos exprimiam dor, aquilo chocou o comissário, que ainda impactado pela cena, correu para pegar o rifle e disparar contra os emboscadores. A escaramuça produzia resultados miseráveis, mas finalmente o trem blindado contornou a floresta e achou uma posição confortável de tiro, pela retaguarda dos Brancos, as canhoneiras estouravam os tímpanos e quebravam a defesa dos Brancos. As peças de artilharia explodiam ao impacto das cargas de fogo  e o aço incandescia com o calor, queimando a carne dos artilheiros inimigos. O cheiro da carne e do sangue tomou o campo de batalha, os tchecos perceberam que estavam em menor número e começaram a fugir, os cossacos tinham sido liquidados em pleno campo de batalha, Corvo Negro, o comandante Branco gritava para os seus homens voltarem, mas era ignorado, mais do que nunca, aquela tinha sido uma mostra da coragem dos bolcheviques contra os Brancos.

        Neste ataque durante a madrugada cinzenta, diante da cortina de fumaça, Petrov viu entornar o caldo vermelho da Revolução, em plena ebulição o vento frio cortava os seus ossos e beijava as têmporas de seus homens, Petrov tinha perdido ao todo vinte e cinco homens, os Brancos quarenta e três, havia o perigo de ter mais ataques durante a madrugada, foi quando ele gritou:

     "Vamos voltar para o trem, está muito arriscado para ficarmos ao descoberto; Amanhã chegamos a Noviy derevno".


       E assim foi o dia 27 de junho de 1918.



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