domingo, 19 de maio de 2019

Aço incandescente I

     Mas,
     Dizei-me,
     anêmicos e anões,
     os grandes,
     onde?
     Em que ocasião,
     escolheram
     uma estrada
     batida?


                                         Nesta vida
                                         Morrer não é difícil.
                                         O difícil
                                         é a vida e seu ofício.

                                                                                  Vladimir Maiakovsky




      "Estamos famintos de liberdade, e com nossa inclinação natural para a anarquia, podemos muito bem devorar a nossa liberdade. É uma coisa bastante provável. Nós destruímos as velhas formas de vida apenas fisicamente; moralmente elas nos cercam e estão em nós mesmos". O texto escrito em letras garrafais era distribuído aos montes, passando de mãos em mãos pelas vielas do bairro operário. O recado de Maximo Gorky era lido atentamente por oradores que usavam pequenos caixotes como se fossem palcos, a cidade estava em efervescência, apesar do frio daquela manhã cinzenta.


       Logo após a Revolução de Fevereiro, os bolcheviques e anarquistas foram os primeiros a serem intransigentes no combate à guerra. Todos estavam cansados da guerra, os soldados, as mulheres, as crianças. Os operários, os camponeses. O pão aumentava o preço todo dia, o carvão era racionado em migalhas no meio do inverno, os trabalhadores faziam armas e munições, mas ainda assim, mesmo trabalhando por 15 horas a fio, ainda era insuficiente para as tropas que lutavam contra os alemães. Foram quase três anos assim até que em outubro tudo estourou.


       O Instituto Smolny incendiou para sempre as páginas da história, Antonov Oevesenko corria com chapéu e rifle na mão na frente dos soldados para tomar o Palácio de Inverno. Lenin discursava, o encouraçado Aurora já tinha disparado aquela bala que iria sepultar de uma vez por todas a fraca república menchevique. Quantos sonhos surgiram naqueles dias! Konstantin Sergueiovich saiu da fábrica Putilov em Virborg e correu com seus camaradas gritando a Internacional a plenos pulmões, o passado era por fim enterrado, algo novo iria nascer. Algo belo, nada mais de patrões! Nada mais de senhores! Cada um agora seria chamado de camarada e cada um seria igual ao outro. Quantos anos ele esperava para ser ouvido, quantos anos ele não baixou a cabeça inconformado com medo do chicote da Okrana? Não mais.

        Foi quando ele soube que a guerra continuava. O czarismo não se dava por vencido e o Exército Branco ameaçava o futuro da revolução, foi por isso que ele se inscreveu para o curso de artilharia na escola Konstantinovskoe, ele pegou o bonde no centro e seguiu para a avenida Zabalkansky,17. 

       "Nome, Patronímico e sobrenome", questionou o chekista responsável.
       "Konstantin Sergueiovich Malinovsky"
       "Ocupação?"
       "Torneiro mecânico"
       "Camarada Malinovsky, sabe manejar uma arma?"
       "Sim, eu trabalhava na fábrica (de armas) Putilov.
       "Muito bem, precisamos de mãos firmes para esmagar os inimigos da revolução. Peso, altura e idade"
        "65 kilos, um metro e setenta e cinco, 24 anos".
        "Sabe o mínimo de aritmética?  Pra função que você irá desempenhar é preciso ler e escrever sem dificuldade, falar fluentemente e saber calcular".

          "Sim, camarada, eu sei calcular e ler sem problemas"

          "Míope?"
        
          "Não."

         "Muito bem, entre naquela fila".

          Malinovsky entrou numa fila que se formava na lateral do edifício, havia apenas dez pessoas na sua frente, cada uma delas era conduzida para dentro das instalações onde eram obrigadas a se despir e eram analisadas por um médico, quem estivesse com suspeita de tifo era descartado imediatamente. Logo após ter sido examinado, Malinovsky recebeu um pedaço de pão e de sopa, sentou-se no canto do refeitório.

          "Camarada, esse local está ocupado?"

          "Não, pode-se sentar", ergueu a mão por educação.

           Dois homens se aproximaram e sentaram-se defronte ao jovem rapaz. Um era pesado, com rosto ligeiramente rechonchudo, braços curtos e olhos brilhantes, tinha um sotaque ligeiramente carregado, Malinovsky apostou que fosse letão. O outro era pequeno, esguio, mas aparentava estar bem doente, o nariz adunco denunciava que era judeu.

            "Vimos o anúncio no Pravda", abriu a conversa o letão, "Parece que vamos ser mandados para ofensiva contra Kolchak"
   
             "Tomara, não aguardo a hora para acabar com esses Brancos", falou Malinovsky.

            "Eu sendo sincero só quero voltar vivo para conseguir casar com Irina, minha noiva", falou o pequeno homem com aparente vergonha, mastigava o pão com dificuldade e mantinha a cabeça baixa a todo momento.

             "De onde você é, camarada?"

            "Odessa. Eu estava na cadeia, me soltaram a pouco tempo"

            "Difícil,  a Ucrânia está toda com os Brancos, isso quando o problema não é Makhno, só Kiev é nossa", respondeu Konstantin Sergueivich.

            "É, a agulha é fina, mas o rasgo é grande", disse o letão em tom de pilhéria. "Eu sou Janis Markus, esse é Abraham Goldstein", os dois estenderam os braços.

              "Konstantin Malinovsky".

              "Prazer, camarada"


             Logo depois do almoço, os recrutas foram encaminhados ao dormitório para deixarem as suas coisas e voltaram ao salão principal onde estava armado um palanque. Um homem pequeno, de barba aparada, nariz aduco e cabelos encaracolados tomava a frente, ele vestia um casacão de couro preto, calças de brim escuro e botas. Aquele era Trotsky, o Comissário da Guerra:


           "Camaradas, cada um de vocês foi selecionado para representar o nosso esforço de derrotar os resquícios cadavéricos do czarismo. O mundo inteiro está de olho em nós, as potências imperialistas nos ameaçam, mas nós somos um vergalhão de aço que não pode ser dobrado diante as adversidades. Cada um de nós tem a missão de defender os ideais de nossa revolução proletária. Os nossos filhos, nossas mulheres e nossos camaradas contam com isso, devemos estar fortes e ágeis, a hidra da autocracia ainda não foi eliminada! Mas serão vocês, camaradas, que irão cortar de uma vez por todas esse câncer que explorou por tantos séculos nossos antepassados.

           Guerra aos canalhas czaristas! Paz para os nossos filhos e para nossas esposas! Todo poder aos Sovietes! Trabalhadores do mundo, uni-vos!"


          E foi quando a banda marcial começou a tocar a Internacional, aquela massa disforme de 30 homens, cantou desafinadamente o hino em uníssono, Trotsky desceu do palanque e deu um breve aceno aos homens, logo em seguida, as aulas começaram. Seria um curso preparatório de dois meses até que todos pudessem ser declarados aptos para o front da Sibéria.


         E foi assim que se passou, dois meses, todos estavam sendo embarcados de trem em direção a Omsk, para combater a Legião Tcheca e os Exércitos de Kolchak.

          Durante o regime czarista, exigia-se que os soldados andassem enrijecidos, de barrigas encolhidas, sem respirar, executassem manobras militares circenses sobre comandos de eia, hurra, e cantassem os hinos em homenagem ao czar. O regime precisava disso para se manter sólido, mas agora tudo isso era passado, os marinheiros de Kronsdant, no lugar, marchavam com bandeiras negras e vermelhas, gritando a plenos pulmões a Marselhesa dos Trabalhadores enquanto se despediam dos camaradas que iam para a Sibéria.

         "Somos o exército do trabalho combativo! Ninguém irá nos comandar, companheiros!" Gritava o comissário Chernov enquanto todos embarcavam. "Saudações a vocês, companheiros do regimento Moskovsky, granadeiros, trabalhadores e metralhadores. Vocês acabarão com a raça de Kolchak!"

          "Konstantin, leia isso que Abraham escreveu", Markus entregou-lhe o papel


           "Guardas! Gendarmes!
            Escutem, fúteis.
            Será que fomos nós que levamos
            Essa escória aos quartéis?


            Ou foram vocês que colocaram
            às suas próprias fileiras.
            Bando de covardes,
            múmias desse passado remoto
            que iremos hoje apagar para sempre.

            Seremos só culpados
            De apunhalar de peito aberto
            A asquerosa nódoa dos seus pecados
            contra o grande esforço do proletariado!

            Morte aos canalhas imperialistas!
            Morte a vocês, corvos negros da morte!"


            "Ficou muito bem feito, Abraham", Konstantin Sergueivich olhou para o amigo, "Mas sua atenção é ao fuzil e não à pena. Essa guerra vai ser vencida só na base da baioneta".

              "Ainda assim venceremos".


         A pesada locomotiva começou a mover suas bobinas à medida que o vapor quente se soltava e condensava no topo de sua chaminé, aos poucos o cavalo de ferro arrastava os quatro vagões da estação Yaroslav em direção à Sibéria. Era com pouca cerimônia que os três companheiros se separavam da jovem capital soviética e de sua efervescência e iam em direção ao desconhecido terreno da guerra; Malinovsky tirou uma garrafa de vodka debaixo do casaco e dividiu com os dois amigos:

           "Brindemos!"

           "Ao desconhecido!"


           "Ao desconhecido!"







                Continua na terça-feira


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