sábado, 18 de janeiro de 2014

Uma maçã vermelha



       Casada com um pequeno médico de província que passava os dias inteiros fora de casa, Gabriela passeava de bicicleta pelas ruas estreitas de pequenos ladrilhos azuis na cidadezinha de Vista Alta. Na praça central da cidade, os velhos jogavam dominó, os meninos brincavam de subir nas mangueiras e as meninas corriam de brincar amarelinha no parque.

       Gabriela tinha que comprar na feira, mas comprar o que na feira? Ela tinha um pequeno papelzinho embrulhado no cesto da bicicleta de Roterdã, a jardineira de interior, o macacão jeans, os cabelos rubros ao vento esvoaçante sorriam para os amigos da família com o vibrante colorido daquela tarde abafada de sábado. Os jogos do campeonato de futebol paulista era narrado de maneira parvalhona pelo locutor no rádio de pilha da quitanda.

       Gabriela não queria saber quanto os armadores tinha o time do Corinthians e como estava difícil a retranca do São Paulo, ela estava preocupada com sua idade, 35 anos e nenhum filho. As rugas já começavam a se desenhar em seu rostinho delicado de mocinha e ela tinha medo que as rugas fossem um sinal de estar velha demais para ter filhos.

      Acariciou a barriga aquela ruivinha, nem se importando se seus cabelos pintados discordavam com a sua idade. Ela era jovem, ela mesma dizia. Abriu a sacola de pano e pegou três tomates bem maduros, um cacho de bananas e pediu maçãs bem maduras ao quitandeiro.

      O quitandeiro era um chinês muito engraçado, não sabia ser simpático quanto o seu vizinho nipônico e resmungava toda hora que um dia voltaria para Shangai, mas Shangai não estava perto e ele tinha medo de voltar para casa. Toda vez que via os cabelos de Gabriela tinha a recordação de que a China ainda era comunista, não entendia porquê essa associação, mas tratava de atendê-la o mais rápido possível.

       Gabriela pediu cinco maçãs bem maduras, daquelas da Argentina. Sim aquelas maçãs tão vermelhas quanto os seus cabelos plantadas no clima ameno de Córdoba, que vem em carro frigorifico pela fronteira do Rio Grande do Sul e quando chegam a São Paulo pela Régis Bittencourt, tem um sabor portenho misturado à poluição da capital. E quão cara elas são, cinco e cinquenta o quilo! Até Gabriela que costumava ser tão calma se assustou com o preço, estava exorbitante. Passou o desespero e pagou ao quitandeiro a conta, mais de vinte reais.

        Tomou de novo sua bicicleta, uma bela bicicleta da Caloi vermelha com o cesto de palha na frente, com pneus finos e dez marchas. Era uma bicicleta comum, mas ainda sim muito bem tratada. Esperou o semáforo fechar, o sábado estava calmo e pacato, os homens assistiam nos bares o jogo com bastante frustração, bebendo goles e mais goles de cerveja. Era um dia quente de janeiro.

       Gabriela roubou uma maçã do cesto, que mordiscou enquanto andava de bicicleta. A ruivinha era tão meiga comendo aquela maçã, origem do libidinoso pecado que era quase impossível não reparar o modo como aquela criatura descia silenciosamente os ladrilhos da rua principal.
 
       Ah Gabriela, nem pode ver a picape D-20 vermelha que descia em alta velocidade do bar em sua direção. Nem pode ver o rosto do dono revira-se de tanto álcool no sangue, sem o controle da marcha e do pedal. Quando mais ou menos, Gabriela, que tinha pensado que o carro havia desviado, percebeu que tinha sido atingida em cheio.

       A ruivinha não cogitou ver o modo como o rubro licor que saía de seu semblante contornava o asfalto ladrilhado, nem imaginava por um momento estar sendo traída no outro lado do Estado por seu marido ou que a maçã vermelhinha de Córdoba caiu na boca-de-lobo. Gabriela caiu da sua bicicleta Caloi num sábado, dia de jogo do Corinthians quando ia voltando do mercado depois de comer maçãs. Que doces maçãs são as maçãs vermelhas de Córdoba!



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