quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Decameron político

         A prática política torna-se um exercício enfadonho quando se percebe que a política deixa de ser a expressão dos direitos do homem para passar a ser um mero contrato comercial. Essa é a frase inicial desse caderno de comentários iniciais sobre  a política vigorante em vigor; 
  
        Aristóteles acreditava que a política era o resultado da procura dos indivíduos da pólis pelo bem comum, e mais do que isso pela felicidade. Maquiavel, pai da ciência política, acreditava que um bom príncipe era um indivíduo que ao mesmo tempo que era amado por seu povo se fazia temido quando necessário e que a política era a busca pelo poder e pela virtude, onde a fortuna (traduzida pela sorte) não deveria interferir no julgamento de um bom governante. A sorte é algo que acompanha um governante, mas não deve ser o pilar do seu governo, da mesma forma que não se governa somente pela sorte, não se pode governar sem ela.

       Política é um jogo, uma mostra máxima do que seria um tabuleiro, mas não de xadrez; Política não é um jogo linear, é um jogo onde há trapaças, conspirações e subterfúgios que desafiam a linha tênue do que é moral ou imoral, a ética aristotélica não vigora tanto quanto antes, mas é conveniente não se esquecer que a despeito do que seja a política, não é um jogo que vale tudo.

      Alexis de Tocqueville temia o poder que o exercício democrático poderia trazer ao mundo e tinha profundo temor pelo progresso que a democracia na América impunha, ele acreditava que dali em diante tudo tenderia a piorar, mas Tocqueville estava analisando uma realidade onde a democracia era um aspecto enraizado na espinha dorsal desde sua essência, que é a sociedade norte-americana, entretanto, acredito que se ele tivesse visitado uma realidade um pouco mais ao sul do Equador ele  tomaria uma postura ainda mais pessimista que a demonstrada no seu livro a Democracia na América.

     É conveniente destacar que a realidade latino-americana sugere a existência de uma estrutura profundamente gestada no caudilhismo, no poder paralelo e concorrente ao poder central. Isso marcou um período de grande instabilidade política na América Hispânica em meados do século XIX e levou a divisão e intrigas regionais entre os povos hispano-americanos, entretanto, o caso do Brasil é incomum, pois ao invés de existir um embate entre o poder paralelo e concorrente ao poder central na Guanabara, houve uma aliança, onde primeiramente o Imperador, depois os presidentes, reconheciam os direitos das elites locais e davam benesses e em troca não tinha sua autoridade questionada. Esse é a base do pacto federativo até hoje no Brasil, isso não é algo que se observa em sistemas democráticos consolidados.

      A política brasileira se traduz por redes, redes clientelares de parentesco que são produto da herança portuguesa do século XIII e XV, sobretudo da administração Manuelina em diante, essas redes acabam agindo na criação de relações de amizade na manutenção de um corpo social, isso se traduz no serviço público e na ideia de curral eleitoral.

      O sistema democrático brasileiro nunca foi pleno, as eleições eram um direito de um grupo muito seleto da sociedade e conforme o tempo e as pressões sociais foram se alargando os direitos para outros segmentos sociais, o período da ditadura de Vargas trouxe um quadro esquizofrênico ao país, onde os direitos sociais anteveriam os direitos políticos e individuais, o que em outras realidades veio justamente ao contrário, a sucessão linear seguiu no caminho que a obtenção dos direitos individuais na Carta Magna levaram a uma pressão popular por maiores direitos políticos que uma vez obtidos passaram a levar em conta as questões sociais.

       O Brasil é um caso único pois a sua herança é algo peculiar, o que hoje chamamos de corrupção é algo que acompanhou a gestação do processo de formação nacional e o profundo quadro de segregação social, por motivos econômicos facilitou o nascimento de uma modalidade de apadrinhamento nas regiões mais necessitadas do país, formando uma modalidade chamada coronelismo. Esse mesmo coronelismo foi ressignificado a um nível nacional com Vargas e seus seguidores e tomou a feição de populismo.

     O populismo não é algo que só existe no Brasil, ele também está enraizado na Argentina, Uruguai, Paraguai e outros países latino-americanos; Contudo, quando o país caminhava na linha de desenvolvimento de uma democracia, o aspecto reacionário das elites locais findou qualquer ambiente de diálogo e discussão com o Golpe de 1° de Abril de 1964 que retirou qualquer exercício democrático desvencilhado da manipulação da Junta Militar e das antigas redes de coronelismo  locais. A perseguição política a alguns grupos trouxe em cheque ainda mais o exercício legal e jurídico existente. Por esses motivos, acredito que o Brasil não é uma democracia plena no sentido distinto do termo, o Brasil não é uma Inglaterra ou um Estados Unidos (embora os Estados Unidos sejam o grande espelho do norte), o Brasil é um país de desigualdades que vive sob sonhos, surtos de desenvolvimentos intercalados com períodos de crise extrema; São esses sonhos que acabam iludindo seu povo e trazendo uma profunda mágoa do cidadão com a política. Sendo esse cidadão apenas um cidadão de papel, um cidadão que nunca foi cidadão pleno, pois seu direito não é atendido mesmo tendo um título de eleitor e uma tremenda vontade de mudar a realidade.

       A apropriação das Jornadas de Julho pelos partidos políticos é um profundo insulto à memória daqueles que correram sob o sol dos batalhões policiais de cavalaria, apanharam dos cassetetes, engoliram o gás lacrimogênio e tão inutilmente tentavam se proteger com panos calçados de vinagre. O atual ano é de eleições e o erro espera à espreita, temos inúmeros projetos para esse país e o projeto que provavelmente será vencedor não está mais dando da realidade atual.

         Assim, vivemos num decameron político.

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