São várias coisas que mostram cada dia mais o quanto é complicado
ser um escritor. A primeira delas é não ser lembrado, não ter apelo algum pelo público
e sequer ser reconhecido. A maioria dos escritores passa por isso porque a
escrita e a pena são profissões ingratas. Mas talvez pior do que isso sejam
duas coisas, ter um lapso criativo e envelhecer.
Sim, o papel branco que nos martiriza quando tentamos preenchê-los
com ideias que depois de meros minutos de escrita parecem absurdas e meras
bizarrices de um ilusionista fracassado em um circo de segunda linha. Nunca
conseguimos escrever o que realmente pensamos e não conseguimos dormir sabendo
que se escreve até na hora do banho.
Mas a pior parte é envelhecer. Pior que envelhecer é envelhecer e
lembrar do seu próprio passado. Essa é a origem das frustrações de Manoel, uma
pessoa ainda desconhecida de muitos, até mesmo de seus próprios colegas. Autor
de romances tipo B, e incrivelmente cosmopolita tinha a imagem de um semblante
jovem, barbeado e com um temperamento de trinta e cinco anos.
Bem-educado, bem de vida. Ao contrário da maioria, ele vivia bem,
tranquilamente num casarão sozinho, sem nenhuma espécie de companhia ou amigos
que pudessem se destacar no dia a dia. Ele era uma ilha dentro de uma própria
ilha. Ele talvez fosse o mais solitário dos escritores.
Também deveras, sua rotina era bastante rigorosa. Acordava às oito
e meia, tomava um banho quente, se vestia e ia trabalhar na repartição. Após
horas de procrastinação, voltava e quando estava afim, lia um livro diferente a
cada dois ou três dias, jantava fora, bebia sozinho, e voltava para casa. Sua
rotina era enfadonha.
Às vezes caminhava sozinho nos finais de semana, analisando as
pessoas nos parques, shoppings ou mesmo no museu e tentava estudar cada vez
mais seus personagens. Absorvendo-se da “artificialidade do cotidiano”, como
ele gostava de chamar, a felicidade geral com que as pessoas exibiam que não
eram sequer verossímeis a si mesmo;
Ele não se julgava melhor ou pior do que as “caricaturas em forma
de pessoa”, muito pelo contrário, às vezes até se divertia com isso. Mas algo
lhe fazia julgar a si mesmo incapaz de ser como os outros, talvez por ser
apenas um escritor. Ou um fantasma social.
Ele tentava solucionar esses problemas bebendo de forma absurda
goles inteiros de álcool, seja o mais refinado whisky escocês até a mais barata
das cachaças. E não desgrudava de seu cachimbo de madeira. Afinal o cachimbo
tinha sido um presente bastante antigo com que se afeiçoara emocionalmente,
sabia que fumar fazia mal, mas a despeito disso achava-se dono de si.
Sozinho, às vezes pensava que a solidão era sua companheira de
longa data. Mesmo quando andava com vários amigos pelos bares e restaurantes à
fora. Num ímpeto em sua juventude concluiu que eles estavam se perdendo em essência e que ele
também se perdera, e se isolou por um bom tempo. Abandonado, ou pelo menos
pensou que estivesse, passou a ficar cada vez mais solitário e vazio por
dentro.
Sim, ele era inteligente, bastante até, Manoel era um dos homens
mais inteligentes que essa terra criou. Falava oito línguas diferentes,
conseguia discutir filosofia, história e até física dependendo da ocasião. E
além disso era bom conhecedor de vinhos, música e moda. Era um bon-vivant
por excelência. Mas vazio.
O Céu Magenta, seu último
romance encalhado. Não por escolha própria, mas por falta de ideias, que vocês
hão de convir são um passatempo bastante pernicioso para a vida de um escritor.
Enfurnado em seu escritório, olhando para a tela branca do
computador piscar com violência para a sua retina, ele se retirou por um
momento e andou em círculos a matutar. Os quadros na parede era arte
ilustrativa, um neoimpressionismo de autoria do próprio Manoel em um momento de
diletância pura. Os livros o acompanhavam impacientes, assim como o relógio de
pêndulo e a máquina de escrever quebrada. Pensou:
“Diabos, se a máquina tivesse
funcionando eu já teria algo em mente”...
Pensou em desistir da obra no meio
do caminho, mas algo lhe fez desistir. Seja as oitenta páginas escritas, seja a
ideia do romance ainda lhe parecer emocionante. Tentou matutar, até que sua
cabeça doeu, e ligou o rádio para ouvir
algo de novo.
Colocou no empoeirado microsystem um
CD, um jazz de Louis Armstrong para tentar relaxar, não era por exemplo as
suítes noturnas de Shostakovich ou as operetas de Giuzeppe Verdi. Ele tinha um
estilo eclético às vezes, ouvia Carlos Gardel num dia e noutro estava ouvindo
música tradicional irlandesa. Isso quando num deleite de ufanismo, não se
dedicava a bandas militares. Algo lhe dizia que seu sangue tinha algo de
cigano.
Tomou um copo e serviu trago de
whisky 12 anos. Que por sinal avaliou estar forte naquele dia, mas coberto de
sombras, achou conveniente. Ele passou um tempo avaliando a escuridão e o teto,
até que por fim decidiu que tudo aquilo era inútil.
Ficou sozinho em meio aos seus
pensamentos, percebeu que estava se sentido solitário e saiu para a noite
suburbana e bucólica na Capital. A “cosmopolitana cidade de interior” como ele
adorava chamar, ou mesmo o quadradinho do Planalto Central, às vezes lhe era
acolhedor, às vezes era sufocante; Nesse dia era ambos.
Tentou correr atrás de um ônibus tal
como criança correra atrás de borboletas. Mas logo julgou isso inútil, e como
um fantasma, de capa e calça jeans, vagou pelos bairros a procura de algo para
fazer. Era um Hemingway sem fama, ou pior do que isso, um mero Paulo Coelho sem
fé. E profundamente decadente de sentimentos procurou um pouco de descarrego.
Tentou se mesclar nos bares,
restaurantes, mas ele não conseguia ser mais um. Ele só admitia ser o único. E
sempre foi assim.
“Cidade ignóbil”, pensou.
Andou pelas calçadas e com um tom
bastante boêmio pensou:
“E o jovem Souza Campos ainda
cansado de mais um dia de trabalho, com o paletó nos ombros e um paiol apagado
dentre os dentes sorria enquanto acompanhava com os olhos esbulhados o bonde
passar da esquina de Santa Maria. O jovem mulato, que não era bobo nem nada,
sabia que correr não iria adiantar, e exausto de suas forças começou a cantar.
O malandro senta na mesa do café...
Mas ele não era um malandro
qualquer, era um sindicalista que gostava de brincar de sambista de vez em
quando”
Campos? De onde tirara esse nome?
Ah, sim. Daquele seu antigo candidato que morrera num acidente aéreo. Por mais que
os laudos da aeronáutica atestassem, ele ainda acreditava que ao avião tinha
sido sabotado. E por quê? Porque ele não confiava em ninguém, nem na própria
sombra.
Puxou o cachimbo do bolso, mas não
fumou. Ele não tinha mais o hábito de fumar. Não mais. Ele só gostava de morder
o cabo daquele objeto, sentir a madeira desviar-se com o movimento da mandíbula
e se sentir importante. Ele parecia o comissário Maigret, de capa e cachimbo na
boca. Queria ele próprio ser descrito pela narração deliciosa de Simenon na Noite
da Encruzilhada, ou Pietr, o Letão. Quase ninguém sabe o que ele
devia estar pensando, e ele se sentiu confortável com isso.
Sentou-se num bar e bebeu uma
cerveja. Queria ler alguma coisa, seja um caderno econômico para ver os juros
do Banco Central, seja álbum de figurinhas que tencionava completar. Mas nada
disso, só tinha uma televisão velha que estava passando futebol, e pra piorar,
nem era jogo do Corinthians!
Pagou e saiu.
“A lua está bonita hoje. Nunca vi
céu mais belo do que hoje”.
— “E olhou para a lua no céu da
Guanabara. O céu exibia um clarão tão intenso que sequer o nosso querido personagem
apercebeu-se que estava sendo vigiado de tocaia pelos delegados do estado da
Guanabara. A reunião clandestina ocorreria de forma secreta nos porões da
Fábrica de Motores Nacionais, e a tocaia dos guardas da Secretaria de Ordem
Pública levaria a prisão de vários militantes naquele dia. Os dias eram difíceis,
e ninguém sabia o que iria acontecer. Tantas greves! Será que Jango era
comunista?”
“Jango”. Sorriu. Era assim que
chamava o seu melhor amigo, Jango. Isso foi há pelo menos quinze anos atrás,
quando ele ainda era jovem e brincava de ser militante estudantil. Parece que
foi em outra vida. E que bom amigo o “Jangoulart” era, nunca tinha visto uma
pessoa tão honesta e capaz atuar na direção de uma entidade estudantil como
ele. Quando o sucedeu, logo depois, não pode repetir o mesmo feito. Manoel
reconheceu, ele era jovem, e bastante imaturo.
Por onde ele andaria, de certo
deveria ter se casado com aquela menina, ele gostava muito dela, ou talvez não.
Mas o que importava é que talvez ele fosse o mais próximo do que viria a ser um
irmão; Na época pensava assim, mas o tempo sempre foi um carrasco infeliz de
amizades.
Mordia o cachimbo com mais
nervosismo enquanto subia a ladeira entre as quadras 400 e o Eixo rodoviário.
Brasília era uma cidade estranha, com pessoas estranhas. E ele sorria com isso,
não era como Rio de Janeiro ou mesmo a Sampa (ou “a pátria paulista”, como
chamava em tom de brincadeira). Ela era uma cidade projetada para robôs, não para
seres humanos.
E ainda assim era bucólica e tão
provinciana que chegava a ser mais uma porteira do Brasil Central.
— “Povo Brasileiro, trabalhadores e
nobres camaradas. Hoje estamos prestes a construir um dia histórico. Nunca antes
na história desse país...” Não, não posso usar isso, isso cheira muito
lula-petismo. “ ‘Nunca antes, tivemos tamanha força como agora.’ Souza Campos
suava em forma de tufos em meio a holofotes, não esperava que tanta gente
apareceria àquela reunião que devia ser clandestina, na verdade, até reclamou.”
E anotou em seu caderninho. Uma
caneta de pena saiu de seu bolso.
Engraçado como ele começou a usar
canetas-tinteiro, foi por intermédio de seu orientador. Ele se recusava
firmemente à ostentação de ter uma caneta mais cara que uma BIC, mas com o
tempo se seduziu pelo toque retrô e pela escrita deliciosa de uma ponta de irídio.
Ele sorriu ao se lembrar disso, e a
despeito de não ter correspondido às expectativas, lembrou-se com carinho do
semblante bonachão e engraçado do seu antigo orientador.
Subiu às 200 e tentou atravessar o
Eixo que naquela altura estava bem movimentado. Uma música subiu-lhe à cabeça.
— “Nossa senhora do Cerrado/
Protetora dos pedestres/ Que atravessam o Eixão/ Às seis horas da tarde”... — E
sorriu.
Não lembrava bem dessa música do
Legião Urbana, mas a sensação foi exatamente essa. Brasília era uma cidade
musical, cidade do Cazuza, Cássia Eller, Legião Urbana, Capital Inicial e
tantas outras bandas. Não era uma cidade de escritores, como Port’alegre ou
Curitiba.
“Um fio de suor correu-lhe à espinha
quando de repente viu vultos luminosos adentrarem na reunião... Souza Campos
pensou em correr...”, matutou.
Subiu a 109 Norte e a 309 com o
cachimbo entre os dentes. E encontrou um sinaleiro fechado na Avenida W3. Cheio
de sim, aspirou o cheiro de sua infância quando ele corria com sua mãe atrás
das zebrinhas (que hoje não mais existem) para ir para casa.
Ficou feliz com seu toque
regionalista, lembrar de Brasília assim é para poucos; O metrô inacabado que
parava na Praça do Relógio, o Teatro Nacional que vivia fechado em reformas, os
blocos de pilotis dos prédios de apartamentos nas quadras 400. Onde às vezes
ele ia namorar, ou fugia da chuva quando estava saindo da UnB.
O Pastel de Cana carregado de óleo da
Rodoviária, a cúpula de cimento pintado do Museu Nacional. Algo lhe lembrava a
infância. E ainda assim lhe trazia más lembranças. Seu regionalismo era ainda
limitado a tomar chimarrão e comer pão de queijo ouvindo samba em meio ao
Carnaval de Olinda. Era algo estranho e amorfo.
Ele tinha algo de estrangeiro, não
só em seu rosto ou em sua pele pálida que o assemelhava a um eslavo. Mas ele
era um estranho no seu próprio país, passara quinze anos fora. E se lembrou de recitar Carlos Gardel na hora:
“Yo adivino el parpadeo
De las luces que a lo lejos
Van marcando mi retorno...
Son las mismas que alumbraron
Con sus palidos reflejos
Hondas horas de dolor..
Y aunque no quise el regreso,
Siempre se vuelve al primer amor..
La vieja calle donde el eco dijo
Tuya es su vida, tuyo es su querer,
Bajo el burlon mirar de las estrellas
Que con indiferencia hoy me ven volver..”
E lembrou-se de seu pai, quando ainda era vivo, quando esse tentava
lhe dar conselhos de como lidar com o mundo. Hoje ele entendia o porquê. Ele
estava só de verdade. E quando voltou para Brasília é como se tivesse voltado a
seu velho amor, a cidade estava velha e ele também.
Lembrava de sua primeira namorada,
de quem fizera por muito tempo esforço para esquecer, para não sofrer mais
ainda. Ou mesmo dos amores perdidos, da menina que retirou a sua virgindade que
depois nunca mais desejou vê-lo, ou mesmo a outra que partiu para bem longe
depois de uma situação indigesta.
E pensou na última. Tinha ido para
longe, foi para o recanto mais sujo da Europa e esquecido. Portugal. E ele não
gostava muito de Portugal (sorriu). Portugal lhe deu muitas coisas, mas ele
gostava de menosprezar aquele país que visitara apenas uma vez, e por vezes
fazia troça do espírito português.
Ele era anti-lusitano e ainda assim
era luso-brasileiro. Engraçado.
Acendeu o tabaco do cachimbo. A
fumaça se fez. Será que ela estaria bem? Com certeza sim, casada talvez ou
seria uma mulher de sucesso. Quinze anos, Gardel, Hondas horas de dolor.
E ele viajara muito nesse meio tempo.
O cachimbo lhe dera ideias. “Se
escondeu na batida numa das sombras da noite, mas ele não pode esconder o seu
espanto ao ver a polícia nocautear seus companheiros com saraivadas intensas de
balas. Por vezes alguns se rendiam e era mortos ali mesmo com uma bala na nunca”.
Andou pelo canteiro central da W3
com o concreto rachado pelas raízes das árvores maiores que a terra do Cerrado.
Olhou para o alto e viu o reboco das marquizes descascar e aquela parte central
que antes era viva nos seus olhos juvenis se desfazer na decadência dos anos
fazem ao coração de uma cidade.
Ali se multiplicavam os pontos de
droga, os prostíbulos e a falta de paciência com a cidade por parte de Manoel.
Andou recolhido em sua capa, como se fosse um inglês. Ou uma “águia das
montanhas”, como gostava de se alto denominar no alto de sua arrogância e andou
sozinho.
Foi então que viu as prostitutas,
uma delas o chamou:
“Ei, gostoso. Vamos fazer um
programa?”
Ele ficou chocado no primeiro
momento. Mas logo depois aceitou de sobressalto, ele era um Hemingway sem fama.
E nem preciso descrever esse momento de intimidade seu.
Perdido e velho. Estava com trinta e
tantos anos na cara e ainda não sabia o que era si. Ele vagava como se fosse um
fantasma e pior do que isso, não conseguia fugir do alto de sua autopiedade. Sozinho
e amargurado, sentiu-se sujo, até que por fim voltou para casa e olhou seu
bloco de anotações.
Manoel se lembrava muito de sua
juventude, de como viajara como mochileiro pelo Cone Sul com um amigo ou mesmo
como fora sozinho de Lisboa até a Sibéria apenas de trem durante dois meses
bastante felizes na companhia de uma namorada provisória. Mas lembrou-se que
escritores não tendem a ser felizes, felicidade foge muito do que vem a ser a
arte.

"Volver... con la frente marchita,
Las nieves del tiempo platearon mi sien...
Sentir... que es un soplo la vida,
Que veinte años no es nada,
Que febril la mirada, errante en las sombras,
Te busca y te nombra.
Vivir... con el alma aferrada
A un dulce recuerdo
Que lloro otra vez"
E se sentiu mais vazio do que o pó das cinzas do tabaco e a fumaça negra carregada de alcatrão.
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