sábado, 23 de agosto de 2014

A fumaça de um cachimbo





São várias coisas que mostram cada dia mais o quanto é complicado ser um escritor. A primeira delas é não ser lembrado, não ter apelo algum pelo público e sequer ser reconhecido. A maioria dos escritores passa por isso porque a escrita e a pena são profissões ingratas. Mas talvez pior do que isso sejam duas coisas, ter um lapso criativo e envelhecer.

Sim, o papel branco que nos martiriza quando tentamos preenchê-los com ideias que depois de meros minutos de escrita parecem absurdas e meras bizarrices de um ilusionista fracassado em um circo de segunda linha. Nunca conseguimos escrever o que realmente pensamos e não conseguimos dormir sabendo que se escreve até na hora do banho.

Mas a pior parte é envelhecer. Pior que envelhecer é envelhecer e lembrar do seu próprio passado. Essa é a origem das frustrações de Manoel, uma pessoa ainda desconhecida de muitos, até mesmo de seus próprios colegas. Autor de romances tipo B, e incrivelmente cosmopolita tinha a imagem de um semblante jovem, barbeado e com um temperamento de trinta e cinco anos.

Bem-educado, bem de vida. Ao contrário da maioria, ele vivia bem, tranquilamente num casarão sozinho, sem nenhuma espécie de companhia ou amigos que pudessem se destacar no dia a dia. Ele era uma ilha dentro de uma própria ilha. Ele talvez fosse o mais solitário dos escritores.

Também deveras, sua rotina era bastante rigorosa. Acordava às oito e meia, tomava um banho quente, se vestia e ia trabalhar na repartição. Após horas de procrastinação, voltava e quando estava afim, lia um livro diferente a cada dois ou três dias, jantava fora, bebia sozinho, e voltava para casa. Sua rotina era enfadonha.

Às vezes caminhava sozinho nos finais de semana, analisando as pessoas nos parques, shoppings ou mesmo no museu e tentava estudar cada vez mais seus personagens. Absorvendo-se da “artificialidade do cotidiano”, como ele gostava de chamar, a felicidade geral com que as pessoas exibiam que não eram sequer verossímeis a si mesmo;

Ele não se julgava melhor ou pior do que as “caricaturas em forma de pessoa”, muito pelo contrário, às vezes até se divertia com isso. Mas algo lhe fazia julgar a si mesmo incapaz de ser como os outros, talvez por ser apenas um escritor. Ou um fantasma social.

Ele tentava solucionar esses problemas bebendo de forma absurda goles inteiros de álcool, seja o mais refinado whisky escocês até a mais barata das cachaças. E não desgrudava de seu cachimbo de madeira. Afinal o cachimbo tinha sido um presente bastante antigo com que se afeiçoara emocionalmente, sabia que fumar fazia mal, mas a despeito disso achava-se dono de si.

Sozinho, às vezes pensava que a solidão era sua companheira de longa data. Mesmo quando andava com vários amigos pelos bares e restaurantes à fora. Num ímpeto em sua juventude concluiu que eles  estavam se perdendo em essência e que ele também se perdera, e se isolou por um bom tempo. Abandonado, ou pelo menos pensou que estivesse, passou a ficar cada vez mais solitário e vazio por dentro.

Sim, ele era inteligente, bastante até, Manoel era um dos homens mais inteligentes que essa terra criou. Falava oito línguas diferentes, conseguia discutir filosofia, história e até física dependendo da ocasião. E além disso era bom conhecedor de vinhos, música e moda. Era um bon-vivant por excelência. Mas vazio.

O Céu Magenta, seu último romance encalhado. Não por escolha própria, mas por falta de ideias, que vocês hão de convir são um passatempo bastante pernicioso para a vida de um escritor.

Enfurnado em seu escritório, olhando para a tela branca do computador piscar com violência para a sua retina, ele se retirou por um momento e andou em círculos a matutar. Os quadros na parede era arte ilustrativa, um neoimpressionismo de autoria do próprio Manoel em um momento de diletância pura. Os livros o acompanhavam impacientes, assim como o relógio de pêndulo e a máquina de escrever quebrada. Pensou:

            “Diabos, se a máquina tivesse funcionando eu já teria algo em mente”...
            Pensou em desistir da obra no meio do caminho, mas algo lhe fez desistir. Seja as oitenta páginas escritas, seja a ideia do romance ainda lhe parecer emocionante. Tentou matutar, até que sua cabeça doeu, e  ligou o rádio para ouvir algo de novo.

            Colocou no empoeirado microsystem um CD, um jazz de Louis Armstrong para tentar relaxar, não era por exemplo as suítes noturnas de Shostakovich ou as operetas de Giuzeppe Verdi. Ele tinha um estilo eclético às vezes, ouvia Carlos Gardel num dia e noutro estava ouvindo música tradicional irlandesa. Isso quando num deleite de ufanismo, não se dedicava a bandas militares. Algo lhe dizia que seu sangue tinha algo de cigano.

            Tomou um copo e serviu trago de whisky 12 anos. Que por sinal avaliou estar forte naquele dia, mas coberto de sombras, achou conveniente. Ele passou um tempo avaliando a escuridão e o teto, até que por fim decidiu que tudo aquilo era inútil.

            Ficou sozinho em meio aos seus pensamentos, percebeu que estava se sentido solitário e saiu para a noite suburbana e bucólica na Capital. A “cosmopolitana cidade de interior” como ele adorava chamar, ou mesmo o quadradinho do Planalto Central, às vezes lhe era acolhedor, às vezes era sufocante; Nesse dia era ambos.
            Tentou correr atrás de um ônibus tal como criança correra atrás de borboletas. Mas logo julgou isso inútil, e como um fantasma, de capa e calça jeans, vagou pelos bairros a procura de algo para fazer. Era um Hemingway sem fama, ou pior do que isso, um mero Paulo Coelho sem fé. E profundamente decadente de sentimentos procurou um pouco de descarrego.

            Tentou se mesclar nos bares, restaurantes, mas ele não conseguia ser mais um. Ele só admitia ser o único. E sempre foi assim.
            “Cidade ignóbil”, pensou.
            Andou pelas calçadas e com um tom bastante boêmio pensou:

            “E o jovem Souza Campos ainda cansado de mais um dia de trabalho, com o paletó nos ombros e um paiol apagado dentre os dentes sorria enquanto acompanhava com os olhos esbulhados o bonde passar da esquina de Santa Maria. O jovem mulato, que não era bobo nem nada, sabia que correr não iria adiantar, e exausto de suas forças começou a cantar.
            O malandro senta na mesa do café...
            Mas ele não era um malandro qualquer, era um sindicalista que gostava de brincar de sambista de vez em quando”

            Campos? De onde tirara esse nome? Ah, sim. Daquele seu antigo candidato que morrera num acidente aéreo. Por mais que os laudos da aeronáutica atestassem, ele ainda acreditava que ao avião tinha sido sabotado. E por quê? Porque ele não confiava em ninguém, nem na própria sombra.
            Puxou o cachimbo do bolso, mas não fumou. Ele não tinha mais o hábito de fumar. Não mais. Ele só gostava de morder o cabo daquele objeto, sentir a madeira desviar-se com o movimento da mandíbula e se sentir importante. Ele parecia o comissário Maigret, de capa e cachimbo na boca. Queria ele próprio ser descrito pela narração deliciosa de Simenon na Noite da Encruzilhada, ou Pietr, o Letão. Quase ninguém sabe o que ele devia estar pensando, e ele se sentiu confortável com isso.
            Sentou-se num bar e bebeu uma cerveja. Queria ler alguma coisa, seja um caderno econômico para ver os juros do Banco Central, seja álbum de figurinhas que tencionava completar. Mas nada disso, só tinha uma televisão velha que estava passando futebol, e pra piorar, nem era jogo do Corinthians!
            Pagou e saiu.

            “A lua está bonita hoje. Nunca vi céu mais belo do que hoje”.

            — “E olhou para a lua no céu da Guanabara. O céu exibia um clarão tão intenso que sequer o nosso querido personagem apercebeu-se que estava sendo vigiado de tocaia pelos delegados do estado da Guanabara. A reunião clandestina ocorreria de forma secreta nos porões da Fábrica de Motores Nacionais, e a tocaia dos guardas da Secretaria de Ordem Pública levaria a prisão de vários militantes naquele dia. Os dias eram difíceis, e ninguém sabia o que iria acontecer. Tantas greves! Será que Jango era comunista?”


            “Jango”. Sorriu. Era assim que chamava o seu melhor amigo, Jango. Isso foi há pelo menos quinze anos atrás, quando ele ainda era jovem e brincava de ser militante estudantil. Parece que foi em outra vida. E que bom amigo o “Jangoulart” era, nunca tinha visto uma pessoa tão honesta e capaz atuar na direção de uma entidade estudantil como ele. Quando o sucedeu, logo depois, não pode repetir o mesmo feito. Manoel reconheceu, ele era jovem, e bastante imaturo.

            Por onde ele andaria, de certo deveria ter se casado com aquela menina, ele gostava muito dela, ou talvez não. Mas o que importava é que talvez ele fosse o mais próximo do que viria a ser um irmão; Na época pensava assim, mas o tempo sempre foi um carrasco infeliz de amizades.

            Mordia o cachimbo com mais nervosismo enquanto subia a ladeira entre as quadras 400 e o Eixo rodoviário. Brasília era uma cidade estranha, com pessoas estranhas. E ele sorria com isso, não era como Rio de Janeiro ou mesmo a Sampa (ou “a pátria paulista”, como chamava em tom de brincadeira). Ela era uma cidade projetada para robôs, não para seres humanos.

            E ainda assim era bucólica e tão provinciana que chegava a ser mais uma porteira do Brasil Central.


            — “Povo Brasileiro, trabalhadores e nobres camaradas. Hoje estamos prestes a construir um dia histórico. Nunca antes na história desse país...” Não, não posso usar isso, isso cheira muito lula-petismo. “ ‘Nunca antes, tivemos tamanha força como agora.’ Souza Campos suava em forma de tufos em meio a holofotes, não esperava que tanta gente apareceria àquela reunião que devia ser clandestina, na verdade, até reclamou.”

            E anotou em seu caderninho. Uma caneta de pena saiu de seu bolso.

            Engraçado como ele começou a usar canetas-tinteiro, foi por intermédio de seu orientador. Ele se recusava firmemente à ostentação de ter uma caneta mais cara que uma BIC, mas com o tempo se seduziu pelo toque retrô e pela escrita deliciosa de uma ponta de irídio.
            Ele sorriu ao se lembrar disso, e a despeito de não ter correspondido às expectativas, lembrou-se com carinho do semblante bonachão e engraçado do seu antigo orientador.

            Subiu às 200 e tentou atravessar o Eixo que naquela altura estava bem movimentado. Uma música subiu-lhe à cabeça.


            — “Nossa senhora do Cerrado/ Protetora dos pedestres/ Que atravessam o Eixão/ Às seis horas da tarde”... — E sorriu.

            Não lembrava bem dessa música do Legião Urbana, mas a sensação foi exatamente essa. Brasília era uma cidade musical, cidade do Cazuza, Cássia Eller, Legião Urbana, Capital Inicial e tantas outras bandas. Não era uma cidade de escritores, como Port’alegre ou Curitiba.

            “Um fio de suor correu-lhe à espinha quando de repente viu vultos luminosos adentrarem na reunião... Souza Campos pensou em correr...”, matutou.

            Subiu a 109 Norte e a 309 com o cachimbo entre os dentes. E encontrou um sinaleiro fechado na Avenida W3. Cheio de sim, aspirou o cheiro de sua infância quando ele corria com sua mãe atrás das zebrinhas (que hoje não mais existem) para ir para casa.


            Ficou feliz com seu toque regionalista, lembrar de Brasília assim é para poucos; O metrô inacabado que parava na Praça do Relógio, o Teatro Nacional que vivia fechado em reformas, os blocos de pilotis dos prédios de apartamentos nas quadras 400. Onde às vezes ele ia namorar, ou fugia da chuva quando estava saindo da UnB.

            O Pastel de Cana carregado de óleo da Rodoviária, a cúpula de cimento pintado do Museu Nacional. Algo lhe lembrava a infância. E ainda assim lhe trazia más lembranças. Seu regionalismo era ainda limitado a tomar chimarrão e comer pão de queijo ouvindo samba em meio ao Carnaval de Olinda. Era algo estranho e amorfo.

            Ele tinha algo de estrangeiro, não só em seu rosto ou em sua pele pálida que o assemelhava a um eslavo. Mas ele era um estranho no seu próprio país, passara quinze anos fora. E se lembrou de recitar Carlos Gardel na hora:

“Yo adivino el parpadeo
De las luces que a lo lejos
Van marcando mi retorno...
Son las mismas que alumbraron
Con sus palidos reflejos
Hondas horas de dolor..

Y aunque no quise el regreso,
Siempre se vuelve al primer amor..
La vieja calle donde el eco dijo
Tuya es su vida, tuyo es su querer,
Bajo el burlon mirar de las estrellas
Que con indiferencia hoy me ven volver..”

                E lembrou-se de seu pai, quando ainda era vivo, quando esse tentava lhe dar conselhos de como lidar com o mundo. Hoje ele entendia o porquê. Ele estava só de verdade. E quando voltou para Brasília é como se tivesse voltado a seu velho amor, a cidade estava velha e ele também.


            Lembrava de sua primeira namorada, de quem fizera por muito tempo esforço para esquecer, para não sofrer mais ainda. Ou mesmo dos amores perdidos, da menina que retirou a sua virgindade que depois nunca mais desejou vê-lo, ou mesmo a outra que partiu para bem longe depois de uma situação indigesta.

            E pensou na última. Tinha ido para longe, foi para o recanto mais sujo da Europa e esquecido. Portugal. E ele não gostava muito de Portugal (sorriu). Portugal lhe deu muitas coisas, mas ele gostava de menosprezar aquele país que visitara apenas uma vez, e por vezes fazia troça do espírito português.
            Ele era anti-lusitano e ainda assim era luso-brasileiro. Engraçado.

            Acendeu o tabaco do cachimbo. A fumaça se fez. Será que ela estaria bem? Com certeza sim, casada talvez ou seria uma mulher de sucesso. Quinze anos, Gardel, Hondas horas de dolor. E ele viajara muito nesse meio tempo.


            O cachimbo lhe dera ideias. “Se escondeu na batida numa das sombras da noite, mas ele não pode esconder o seu espanto ao ver a polícia nocautear seus companheiros com saraivadas intensas de balas. Por vezes alguns se rendiam e era mortos ali mesmo com uma bala na nunca”.

            Andou pelo canteiro central da W3 com o concreto rachado pelas raízes das árvores maiores que a terra do Cerrado. Olhou para o alto e viu o reboco das marquizes descascar e aquela parte central que antes era viva nos seus olhos juvenis se desfazer na decadência dos anos fazem ao coração de uma cidade.

            Ali se multiplicavam os pontos de droga, os prostíbulos e a falta de paciência com a cidade por parte de Manoel. Andou recolhido em sua capa, como se fosse um inglês. Ou uma “águia das montanhas”, como gostava de se alto denominar no alto de sua arrogância e andou sozinho.

            Foi então que viu as prostitutas, uma delas o chamou:
            “Ei, gostoso. Vamos fazer um programa?”

            Ele ficou chocado no primeiro momento. Mas logo depois aceitou de sobressalto, ele era um Hemingway sem fama. E nem preciso descrever esse momento de intimidade seu.

            Perdido e velho. Estava com trinta e tantos anos na cara e ainda não sabia o que era si. Ele vagava como se fosse um fantasma e pior do que isso, não conseguia fugir do alto de sua autopiedade. Sozinho e amargurado, sentiu-se sujo, até que por fim voltou para casa e olhou seu bloco de anotações.

            Manoel se lembrava muito de sua juventude, de como viajara como mochileiro pelo Cone Sul com um amigo ou mesmo como fora sozinho de Lisboa até a Sibéria apenas de trem durante dois meses bastante felizes na companhia de uma namorada provisória. Mas lembrou-se que escritores não tendem a ser felizes, felicidade foge muito do que vem a ser a arte.



            Velho, bêbado e meio sozinho, ele avaliou a sua vida e julgou: “Minha vida é uma merda”. E no fim, apenas fumou um trago de seu cachimbo quando chegou em casa.

"Volver... con la frente marchita,
Las nieves del tiempo platearon mi sien...
Sentir... que es un soplo la vida,
Que veinte años no es nada,
Que febril la mirada, errante en las sombras,
Te busca y te nombra.
Vivir... con el alma aferrada
A un dulce recuerdo
Que lloro otra vez"

E se sentiu mais vazio do que o pó das cinzas do tabaco e a fumaça negra carregada de alcatrão.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Haber e o uso da ciência para o "bem" e para o "mal"

A figura mais controversa pra mim na história da Ciência não é Oppenheimer (pai da bomba nuclear), nem Alfred Nobel (criador da di...