segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Estudo sobre o seriado El Chavo del Ocho







        Pois o Chaves é o nosso Sherlock Holmes...





Espere, eu posso explicar. Através do método dedutivo tive a seguinte impressão cognitiva: O seriado mexicano da década de 1970, El Chavo del Ocho, representa uma visão sobre a sociedade latino-americana da época e também a de hoje, de tal modo que exemplifica a questão sociológica que permeia toda a sociedade latino-americana por meio de clichês e imagens caricaturizadas sobre  vários segmentos sociais.





O Chaves é uma criação do ator e diretor Roberto Gómez Bolaños que foi ao ar na Televisa Mexicana em 1971, não se sabe se por intermédio da força política e familiar que ancorava Bolaños de alguma forma (afinal de contas Gustavo Díaz Ordaz Bolaños foi presidente do México de 1964 a 1970 e por alguma coincidência ou não, era tio do criador do Chaves) o seriado começou a ser rodado pela Televisa e teve ampla receptividade pelo público, não só no México como em outros países da América Latina.


Chaves foi considerado por muitos como um “programa idiota” e “imbecializante” que gerava a alienação do público ao fornecer um enredo simples, de diálogos de fácil entendimento, piadas estanques de teor político e que levava ao riso fácil, mas o seriado em si é uma crônica social. Pelos personagens mesmo temos uma observação das características de algumas situações sociais que ocorriam na América Latina:



A começar por Dona Florinda,  ou como ela preferia se intitular  Florinda Corcuera y Villalpando, viúva de Matalascallando; Dona Florinda é a encarnação da classe média empobrecida e decadente que se mantém orgulhosa mesmo com a sua situação financeira estar debilitada, não só pela questão da inflação (num certo episódio a própria Dona Florinda se vê sem dinheiro), como também de sua dependência aos benefícios do governo, no caso a pensão de morte de seu marido, Matalascallando. Matalascallando era marinheiro da Marinha Mercante, aparentemente que morreu num desastre marítimo no caminho, deixando Florinda a ver navios junto com o seu filho pequeno.



Dona Florinda é a encarnação de uma mulher latino-americana submissa ao marido e profundamente dependente aos dogmas sociais, que vê sua existência ser tomada por um desastre pessoal o qual não consegue se recuperar, e por tal desastre pessoal, Dona Florinda, em uma análise psicológica, fecha-se em seu mundo do qual acredita que sua antissociabilidade e mau-humor são resultado de uma superioridade social desta para com os seus vizinhos.


        Ela se assegura sobre velhos parâmetros de comportamento, não só seu romantismo, como parâmetros sociais de uma antiga sociedade de corte que não existe mais e  no seu espírito de arrogância, ela não ver problemas em subjugar e humilhar a figura do Seu Madruga que é mais humilde e injustiçada. De tal modo, Dona Florinda ao esbofetear o Seu Madruga tem na simples ação de agredi-lo um fio-terra de toda a pressão social que ela reside em conservar sobre si própria e exige sobre os outros.


       Sua inação por muito tempo é traduzida pelo desejo de encontrar um novo amor, nesse caso, o professor Girafales, em todo caso, essa inação é superada quando Florinda vê que a situação financeira está ruim e começa a trabalhar; Primeiramente, abre uma parceria com Seu Madruga que resulta em fracasso no negócio de churros, posteriormente, ela abre um restaurante.



         O caráter superprotecionista que ela carrega sobre o filho faz com que ele seja um menino mimado que perdeu o senso de realidade, que não consegue conviver com as outras crianças da forma esperada e que sempre recorra ao choro para resolver seus problemas. Quico é a encarnação de uma infância roubada pela frustração dos pais; Arrogante, manipulador e invejoso, Quico é o lado mais devasso da própria infância que não se recente de humilhar Chaves e as outras crianças com seus brinquedos de último tipo e seus comentários pejorativos sobre sua condição social.



A vestimenta do Quico é uma homenagem póstuma ao seu pai falecido, de modo que Dona Florinda maqueia a identidade de seu filho com essa construção sobre seu vestuário e comportamento, de modo que Quico não tem uma personalidade própria, e procura nos seus amigos um desejo de se encontrar e identificar como ser humano. Nisso procura também no Professor Girafales, namorado de sua mãe, uma figura paterna que nunca teve.








Professor Girafales é a encarnação do profissional idealista e compromissado com o seu serviço, nisso Bolaños valoriza (de modo um tanto correto) o papel do professor como transformador de uma sociedade. Legalista, pragmático e cavalheiresco antes de todo, Girafales é o herói romântico da América Latina que a “tiraria das vias de seu subdesenvolvimento”. Utilizando de uma boa oratória e inteligência, Girafales consegue conquistar Dona Florinda com o seu amor sincero, embora romanesco demais, tanto que quando os dois se encontram é inevitável tocar a  abertura de Casablanca. Seu aspecto romanesco é uma observação da cultura comum a vários países hispano-americanos de haver um aspecto meio romântico em sua sociedade; contudo, Girafales também é ciumento e chegou a marcar um duelo com o uso de espadas contra Seu Madruga por Dona Florinda.



        Seu Madruga é a encarnação do homem latino-americano desempregado e um pouco sem perspectivas, que não tem muita instrução e que para o teor ideológico (até do seriado) é um vagabundo profissional. Madruga tem uma vida sofrida a qual não pode se desvencilhar, perdera a mulher cedo no parto de sua única filha, Chiquinha, a quem ele gosta muito, e teve que abrir mão do mercado profissional para cuidar da filha. Embora tenha aberto mão do mercado de trabalho desde os quinze anos, Seu Madruga é uma definição de malandro que é um tanto incomum, ele sofre em ser malandro, ele não é da boemia. Ele é o malandro que virou pai, que as vezes tenta fazer algumas artimanhas (como conseguir os dólares do Seu Barriga via Chaves através de um álbum de figurinhas), outras  com bicos, como carregar lenha, ser sapateiro, barbeiro ou caixeiro viajante. Seu Madruga é um deslocado social.



Sendo  um deslocado social, ele é humilhado constantemente pelo ímpeto raivoso de Dona Florinda que o vê como um traste humano e constantemente assolado pelas insistentes visitas de Seu Barriga, dono da vila. Seu Madruga foge, foge de seus problemas correndo, se escondendo e fumando. Foge da dondoca envelhecida que é Dona Clotilde e foge do emprego que um dia nunca vai ter. Seu Madruga está fadado a pobreza enquanto continuar fugindo de seus problemas, para a obra do Bolaños;

       Seu Madruga é um homem justo antes de tudo e bondoso às vezes, de tal forma que ninguém consegue odiá-lo totalmente, mas ele não é tratado muitas vezes com dignidade. Apenas o professor Girafales o trata como se fosse realmente um ser humano, Seu Barriga tem um sentimento de pena quando fala com Seu Madruga e Dona Florinda, de repulsa;


       Chiquinha, sua filha, é uma menina que ainda está descobrindo a sua vida, e uma paixonite pelo Chaves, ela se vê meio diminuída por suas condições econômicas mais baixas que as de Quico e Nhonhô, bem como não se adequar aos valores de beleza estabelecidos. Constantemente pede dinheiro a seu pai como forma de se equiparar aos amigos mais ricos, embora nunca tenha resposta. A isso ela chora, chora por ser pobre, chora por não ser como as outras crianças. Chiquinha às vezes desconta as suas frustrações no pobre Chaves.


         É conveniente analisar também outras figuras que se mesclam com Seu Madruga, como Dona Clotilde e Seu Barriga.


       Clotilde, apelidada carinhosamente de Bruxa do 71, é a definição do que viria a ser o vocábulo machista “ficou para titia”, outrora deveria ter tido uma beleza comum e rotineira, mas com o passar dos anos, como a própria dona Clotilde não foi se casando, ela acabou passando da idade socialmente aceita para o casamento. Na falta de pretendentes, ela vive uma vida solitária com o seu cachorrinho Satanás. A imagem de bruxa foi posta pelas crianças pelo seu aspecto físico e Clotilde se recente muito disso, de tal forma que ela vê o Seu Madruga como sua última oportunidade de não viver até o fim dos seus dias sozinha. Clotilde é de família abastada, tendo uma irmã morando na França, e realizando muitas viagens, mas sua idade a impede que viva sozinha numa casa, de modo que ela prefere viver em companhia à vizinhança da vila.



       Seu Barriga é a encarnação do estereótipo do burguês tradicional: Gordo, sempre de terno preocupado com os seus negócios. Vive preocupado com a vila que ele mantém e os aluguéis a serem pagos. Barriga é a definição da burguesia latino-americana dissociada de um espírito capitalista tradicional: Seu Barriga não é um investidor que aplica seu dinheiro em outros negócios que lhe darão lucro, Zenón Barriga y Pesado é o  antigo homem de negócios que tem no regular repasse dos dividendos do aluguel de sua vila um meio de garantir a renda. Assim, Seu Barriga depende do Seu Madruga.
"Pague o aluguel"
"Não é comigo que é pra acertar é com ele"



          Seu Barriga hostiliza Seu Madruga, por ele não pagar em dia e sempre o ameaça deixar no olho da rua. Mas ele precisa do seu Madruga. Não só pela definição econômica de que sem ele, não tem outro meio de receber o aluguel, mas existencial até, pois Seu Barriga vê um pouco de humanidade ao encontrar Madruga, com toda a sua pobreza e miséria, e Barriga precisa sentir empatia por Madruga para manter sua identidade como homem, por isso normalmente ele acaba cedendo as pressões e permitindo que Madruga lhe deva 14 meses de aluguel. Seu Barriga é a definição de uma burguesia latino-americana, que hostiliza o pobre, o ameaça, mas depende diretamente de sua exploração para se manter.



             Contudo, há um elemento no Chavo del Ocho não considerado; Seu Barriga é um homem caridoso também, o que mostra a ideia de caridade que é importante na cultura política e social latino-americana e isso combina com a própria noção de Cristandade, não só porque Seu Barriga sempre deixa Madruga ficar com o lote, por “caridade”, como também realiza eventos na vila, faz doações às crianças e convida seus inquilinos para uma festa de Natal. Zenon  não é uma pessoa estritamente ruim ou odiosa no sentido sincero do termo, esse é um caráter um pouco romantizado do homem de negócios que Bolaños tentou inserir.


          Esse homem de negócios que raramente convive com o filho e se recente por isso; Nhonhõ é uma criança solitária que apesar de todo o sucesso material do pai, abriria mão de tudo isso por um pouco mais de afeto. Esconde suas frustrações na comida, de modo que sofre de sobrepeso. Por esse fato é humilhado pelas outras crianças e se sente só; Nhonhõ é uma criança deprimida que tenta nos amigos um motivo para se ver como criança; Não é arrogante como o Quico, tenta ser o mais simples possível com os colegas e foca nos estudos toda a sua atenção, já que não recebe qualquer forma de atenção e afeto em casa.



            Nhonhõ é a definição da infância reprimida dos filhos da classe média e que não é saneada devido à falta de atenção dos próprios pais.




            Na mão justamente oposta está Chaves, Chaves del Ocho, o menino que não se chama Chaves. Órfão, Chaves foi encontrado na vila ainda pequeno com uma trouxa de roupas nas costas, foi adotado pelo Seu Madruga de certa forma como um filho, embora Chaves nunca pudesse viver com Madruga devido as poucas condições materiais desse. Todo mundo acredita que ele more num barril, mas na verdade é o seu cantinho secreto, onde ele se esconde todos os dias dos problemas da vida. A infância retirada pela pobreza, o estigma da fome e de uma vida sem pais; Chaves tem problemas de aprendizado em decorrência da fome, e sofre muito por causa de suas condições sociais frente as outras crianças. A resposta que ele encontra: A violência. Violência contra aqueles que riem da sua pobreza, de seu déficit de aprendizado, que brincam e fazem joça de sua fome e que não tratam Chaves como uma criança normal;



Chaves é desastrado e as vezes bate em Seu Barriga sem querer que briga com o garoto, mas deixa tudo de lado, pois quer se esquecer da pobreza do garotinho; Barriga se omite quando não ajuda o pequeno garotinho, Seu Madruga é a figura mais próxima de Chaves a uma figura paterna, enquanto o rapazinho não possui nenhuma referencia como mãe. O professor Girafales é a figura que mais se apieda do pobre garotinho e às vezes o trata como um filho, um filho que nunca teve. Uma criança em que ele teria a franca vontade de ajudar, mas como simples professor não teria a oportunidade.

          Chaves a despeito de tudo tenta continuar a ser uma criança, brinca de fazer castelos com latas vazias, de aviõezinhos de papel, brinca de ser cavaleiro com uma vassoura. Chaves é a criança que não quer deixar de ser criança, é a criança de todos nós.



           Existem elementos não abordados na minha análise que outros poderão apontar, mas eu acredito que o Chaves seja o nosso Sherlock Holmes. Pois ele investiga a natureza do crime que continua até hoje em todo o continente ibero-americano, a natureza da infância roubada pela pobreza;



          O método indutivo desmascara de alguma forma o sentimento de amalgama que se criou junto a uma identidade de grande América Latina. As veias abertas se escancaram, em todo caso, Chaves ainda é caricatural e  mensagem do seriado não é mesmo por em debate a questão social na América Latina. Acredito que essa não era a pretensão de Bolaños (alguns chegam até a acreditar que a concepção política de Bolaños seja de direita, principalmente por causa de seu tio), mas querendo ou não ela surge e é conveniente refletir sobre tudo isso.  


"Foi sem querer, querendo"

Um comentário:

  1. Estudo maravilhoso sobre os personagens do seriado. Deixou de lado os elementos cômicos e focou em cada personagem sob uma ótica objetiva.
    Chaves é um seriado maravilhoso.

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