sábado, 8 de junho de 2013

Uma queda (conto)

      Saiu pois de casa, não antes de lustrar a maçaneta com um pouco de álcool em gel que desastrosamente  tinha deixado cair na mão e desapareceu na garoa fina que caía na rua a essa hora da tarde. Achou estranho que algo assim ocorresse no Planalto Central em pleno mês de junho, mas desapareceu em meio às sombras que se projetavam na penumbra das nuvens carregadas do céu.

     Seguia pelas ruas sem olhar para os lados, sempre para o chão, esboçando tamanha humildade que poucas pessoas teriam se admirado que estivesse saído tão combalido de casa. Quase foi atropelado por um desaviso, e doía-lhe até agora os tímpanos o modo como o motorista daquele pequeno hatch azul martelara a buzina.

     Sujou seus sapatos num gramado ensopado e correu para pegar o comboio para outra parte do Cerrado, foi aí que escorregou e...

                                                           ....

      — Eu te amo. Eu sei que você me odeia, mas eu te amo. Quero construir uma vida com você...
      — Se você me ama, pare com essas coisas.
      — Mas eu te amo.
      — Isso é típico de você, isso só mostra o quanto você consegue ser infantil.

      "Isso só mostra o quanto você consegue ser infantil. Infantil. Infantil... infantil. Infantil?"

      "Foi naquela festa, fazia um frio asqueroso naquela noite; acho que tinha bebido um ou dois copos de uma vodka bem vagabunda, talvez mais. Sim, foi naquela noite que tudo começou. Infantil.

      Eu estava só, sem amigos, apenas com colegas que sequer conhecia naquela altura, me sentia só como nunca me senti. Sim, você era bem infantil. Foi quando ela apareceu: Não era a mais bela das moças, tinha um queixo um pouco deformado, mas algo nela me seduziu. Será o cabelo escuro? O modo como falava com pleno domínio de algumas coisas que eu gostava? Ou será simplesmente inocência minha?

     Peguei-me um dia pensando nela, não em mim, não no meu amor mais recente ou na menina que tentava me seduzir. Mas eu pensei nela, justamente nela, por quê? Isso faz tanto tempo, nem parece que estava vivo quando lembro de tudo o que aconteceu.

    Eu cresci, acho que cresci com o passar dos anos, mesmo assim cometemos nossos erros. Esse foi um deles, tinha me apaixonado por quem de mim não gostava. Acontece, não é mesmo? Chorei por ela, senti solidão em suas palavras, solidão. Talvez tenha sido isso, eu me identifico com pessoas solitárias, eu as entendo melhor, não sei porquê.

   Mas não tinha calculado as variáveis, sempre cogitei que a solidão fosse uma característica involuntária, mas a bem da verdade, percebo que tudo isso é volátil. Afinal de contas, a solidão pode ser autoimposta. Não acreditava nisso. Infantil.

   Correto, fui infantil. Devia ter dito isso tête a tête e não ter escrito isso de maneira vulgar numa dessas mídias sociais, me escondi covardemente nas palavras, meu único porto seguro que são as letras. Eu mereci aquele fora por ter sido tão burro, mas o padrão se repetiu mais uma vez.

   Não sei porque estou pensando nela, não sei porque penso nela agora. Nunca ligou para mim, por que haveria de pensar nela? Afinal, por que está tudo tão escuro, não enxergo nada. Eu estava indo... AH!"

                                                                ...

       — Levem-no para o helicóptero, ele teve uma concussão cerebral, vai morrer com certeza se não chegarmos logo.

      — Diabos, um rapaz tão jovem!

     — Basta estar vivo para essas coisa acontecerem, Souza. Vamos, vamos levar a maca para cima.

     As agulhas retroativas corriam de forma circular no céu enquanto o cabelo dos paramédicos tremulava com o redomoinho produzido pelas lâminas do helicóptero, os dois se afastaram e deram um sinal de ok, enquanto o guarda de trânsito tentava organizar o trânsito.

    — Circulando, circulando. Não há nada para ser visto.

    — O que aconteceu? O que aconteceu?

    —  Desculpe, senhora,você tem que ficar calma, os médicos farão tudo o que é necessário — conteve amigavelmente outro guarda.

                                                               ...

    "Mãe, por que eu a vejo aqui do alto?"

    "Sim, minha mãe é aquela ali que está desesperada enquanto o guarda tenta acalmá-la. Ela era bem mais bonita do que hoje, tinha feições de uma bela modelo quando o meu pai a conheceu, mas o tempo sempre foi um filho ingrato.

     Sobre o que discutimos hoje, por falar em filhos? Foi sobre o carro não foi mesmo?"

                                                                       ===

     — Nossa, tô atrasado pra c@&*#%! Preciso da chave do carro.

     — Não, eu preciso levar a sua irmã pro médico. Vou precisar do carro.

     — Mas o carro é meu. Por que não posso usá-lo?

    — Correção, o carro é do seu pai.

    — Mas o meu pai se foi, ele deixou o carro pra mim em testamento.

    Com lágrimas nos olhos, me encarou horrorizada; Eu também ficaria, como eu falei algo assim, não tinha nem duas semanas quando tinha acontecido... Como pude entrar nesse assunto. Ela só teve força para me responder com um tapa numa das bochechas.

     Fiquei sem reação, mas a encarei com o ódio nos olhos, eu estava segurando o frasco de álcool em gel que deixei cair no chão e furioso saí de casa batendo a porta.

     — Me desculpe... — Foi tudo que pude ouvir.

                                                               ===

      "Me desculpe. É como eu já usei essa palavrinha, depois de fazer piadas infelizes, elogios que não devia ter feito. E... Sim, eu também pedi desculpas.

      Pedi desculpas por ter dito que a amava, não sei se as obtive, mas nunca me perdoei por ter agido daquela forma, me fiz parecer tão servil, tão ignóbil... Engraçado, me sinto meio fraco, a cabeça está meio tonta, o que me aconteceu?

      Não sei dizer, mas não me sentia tão fraco desde o enterro de meu pai. Meu pai era um homem honesto e trabalhador, sim, uma figura muito decente, embora quando eu era criança, fosse dado à bebida, esse seria no fim das contas a sua derrocada. 

      Meu pai dizia que eu precisava pensar grande, que eu devia ser um grande juiz e propagar a lei sobre todos. Deus sabe o quanto ele ficou decepcionado quando viu que o filho foi ser historiador. É, eu não o culpo, ter gasto uma fortuna em bons colégios para ver o filho jogar tudo para o ralo e ainda se envolver com política? Meu pai estava certo.

     Ficou um bom tempo sem falar comigo. Seis meses. Lembro até hoje. Desde então nunca mais fomos os mesmos, nunca mais nós nos falamos como pai e filho, o que para alguns é triste, mas eu prefiro não pensar nisso. Quando eu pensei em me matar, meu pai não estava ali, não em sua forma física. Eu vi que ele estava acabado ali.

     Acabou que os anos tinham-no pegado e doente como estava, foi morrendo aos poucos até que o coração não quis mais bater como antes, e pela primeira vez em sua vida ele pode descansar. Sim, eu não era um bom filho e minha mãe estava certa em me bater, mas considerando o quanto o meu pai me bateu quando era criança, sem qualquer motivo, não posso dizer que tudo só foi culpa minha.

     Deixou-nos razoavelmente bem de vida, meu pai, e conseguimos lidar com as nossas vidas conforme a normalidade. Às vezes a minha mãe não dormia à noite de tanto chorar, e deitava-se no chão pensando nos dias que tinha passado com o meu pai. Eu tentava não ouvir isso à noite, mas era mais ensurdecedor que um suspiro no espírito.

     Me sinto mal por não ter chorado no enterro do meu pai, eu realmente me sinto mal hoje; Mas nada vai fazer com que ele volte nesse momento. Sinto falta mesmo é do meu avô, que me ensinou o que eu precisava saber, como caçar e pescar, até como se portar e agir. Meu avô era bem mais amigável que o meu pai... Ele morreu não tem menos de cinco anos num desses canceres que nos destroem aos poucos, quando o vi pela última vez, ele não era nem a sombra do homem forte que eu conheci na minha infância.

...

    — Pressão caindo... Nós estamos perdendo.

   — Não pode ser. Tragam o neurologista, precisamos saber o que é.

   — Pobre guri, na flor da idade — Suspirou a enfermeira — E ele era tão bonitinho. Parece com o meu filho quando era da idade dele.

  — Menos, Maria, eu preciso do eletro... Nós vamos perdê-lo.

  — Diabos, afastem.

...

   O que é essa luz que se projeta na minha frente, serão minhas lembranças? Esse carrinho aqui laranja eu  ganhei quando tinha cinco anos, eu costumava andar muito nele pela rua onde eu morava. As crianças me achavam um bebezão por não querer emprestá-los, mas a minha mãe disse que não me deixaria brincar de novo se me roubassem o carrinho.

    Aquele ali é o rádio do meu pai, eu costumava brincar com o vinil que ele tinha; Não tinha bons discos como os do meu avô, mas dava para brincar legal. Esse é o escritório do meu pai?

    Meu pai sempre deixava a papelada exposta e bagunçada em sua escrivaninha e colocava o rádio para tocar enquanto ia contar a despensa dos produtos pra ver se faltava alguma coisa. Tinha duas mesas ali, uma de minha mãe, onde ficava a máquina de escrever e outra do meu pai, onde ficava o fax.

   Ali me criei em meio ao papel-carbono e as vias de pedido, cresci desde cedo para o comércio. Meu pai também tinha seus segredos, parando pra pensar, foi ali também que descobri (eu era um pré-adolescente à flor da idade) a minha primeira revista de mulher pelada. Luiza Ambiel para a Sexy, era a edição de 1996? Eu lembro que ela estava brincando com uma cobra, foi a primeira vez que eu vi algo do gênero. Devia ter quantos anos? Dez, onze anos?

    Sim, a revista desapareceu, certamente a minha mãe deve ter jogado fora na mudança. Mas essa coisa ficou na minha memória. Assim como eu lembro do dia que cheguei em casa depois de ter levado uma surra do meu colégio, meu pai saiu furioso de casa como nunca antes eu vi. Foi a primeira vez que eu em lembro de ter visto o meu pai me defendendo.

   Rayara? Sim. Também lembro dela. Minha primeira "namorada", se posso chamá-la assim. Eu tinha 7 anos e estava usando um belo terno. Eu era um garotão loiro de covinhas e estava apaixonado por ela sem nem mesmo saber o que era amor. Ainda bem que eu cresci, ela não não era tão bonita para valer a pena ( e me odiava também)

    Me odiava... Será isso um padrão? Eu não sei dizer, mas isso é até um pouco engraçado. Não tinha pensado nisso.

  Mas continuo caminhando nesse caleidoscópio de emoções e recordações. Sinto-me tão fraco o que anda acontecendo?"

...

   — Não, nós não vamos te perder, guri. Aguenta firme.

  Uma carga fez vibrar o corpo inerte enquanto um ensurdecedor ruído  agudo martelava o ouvido de todos na sala, na sala contígua ouvia-se um lamúrio abafado pelo choro. Todos ficaram tensos ao perceber que não havia resposta.

   — Aumente para duzentos! — Gritou o médico para o enfermeiro — Vamos lá, companheiro, resista! Não tem nada a perder ficando aqui.

    Tentou mais uma vez, pareceu inútil.

...

       "Tudo ficou escuro de novo? Onde eu estou?

       — Alan... Onde está você? Sua avó fez o almoço

       "Vovô? Não pode ser. Como posso ter voltado?

       Ei, espere. Eu lembro disso, eu estava brincando de pique esconde quando me escondi dentro dessa caixa d'água vazia. Eu tinha oito anos, eu acho.

      — Anda, meu neto, sai daí de dentro. A sua avó tá te chamando — pela abertura da caixa entrou um pouco de luz, uma mão se estendeu para me puxar para fora.

...
       — Não vá, companheiro, não vá;

       ...

       "Vovô?"

       — Venha, meu neto, o seu pai veio te buscar. A sua mãe anda ocupada com algumas coisa, ela não vai poder vir.

       — Sim, vô. Eu estou indo...

...

      — É inútil, doutor Roberto. O senhor fez tudo o que poderia, ele se foi.

      — Não, eu não fiz tudo o que poderia, esse menino não tem nem vinte anos. Ele podia ser o meu filho!

      — Não adianta, doutor. Pode ser que ele esteja num lugar melhor que esse aqui.

      — Hora da morte... — Disse entre lágrimas o rosto enrugado por de trás da máscara — Dez e cinquenta e cinco. Paciente n° 253 resistiu por apenas sete horas. Vou avisar à mãe do garoto.

...

       "Isso, Alan. Para você dar um nó que não seja frouxo, você tem que pegar a corda desse jeito.

       Certo, vovô.

      Ah, como é bom tê-lo de volta, meu neto.

      Eu digo, a mesma coisa, vô. Eu digo a mesma coisa."
  

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