Era uma
tarde, daquelas meio traiçoeiras nas quais o sol irrompe sobre as nervosas
nuvens do céu. Algo tinha de sedutor naquele tom meio acinzentado,quase de
asfalto, com o qual o dia havia nascido.
Tudo
era tão estranho, todo mundo estava com roupas de frio, mas tudo o que sentia
era calor. Muito calor por sinal. Tentou abrir a janela do comboio, mas nada
adiantou, naquele ônibus lotado, sequer podia ouvir a sua respiração.
Era um
calor ardente, ofegante, que vinha do peito e queria sair pela boca junto com o
coração. Ninguém notava, ou ninguém queria notar, mas ele transpirava horrores
pelas têmporas, fazendo cair o gélido filete de suor pelas magras maçãs do
rosto.
Para piorar, toda hora ele esfregava a língua nos lábios. Sentia uma sede absurda, uma vontade incontrolável por encontrar uma garrafa de água e bebê-la furiosamente. Chegava a ser inexplicável.
Parecia
saudável, embora a palidez do seu rosto fosse algo anormal. O tom opaco de sua
pele dava-lhe uma aparência meio póstuma para um jovem. Mesmo assim, parecia
ser saudável. Não falava, não sorria, só estava lá, em pé, esperando
ansiosamente chegar na estação.
O
ônibus estava lotado; Pessoas no fundo debatiam sobre a última partida de
futebol de domingo, mulheres meio obesas fofocavam com gosto a vida alheia, e
um casal de namorados se beijava num dos bancos.
O rapaz
viu com palidez tudo isso, parecia sentir algo ruim ao ver os dois se beijando,
um pouco de dor, arrependimento e uma pitada de inveja. Quando os dois
namorados desceram, sentiu seu ombro relaxar nas costas.
Um
vendedor de doces entrou no ônibus com sua cesta repleta de guloseimas, para
deleite das criancinhas e para o desespero das mães: “Olha a paçoca, a paçoquinha
bem docinha. 1 real.”
O
vendedor passou por todos os bancos, fustigando os passageiros com o seu grito
estridente de vendedor, mas mesmo assim só conseguiu vencer dois dropes e um
pacote de chicletes para algumas senhoras. Sendo completamente ignorado pelos
outros.
O
cobrador mesmo estava irritado com o jeito meio fanhoso com que o vendedor
falava, e deu graças a Deus quando o mascate foi para o fundo do comboio, não
antes sem gritar: “Vamos logo, minha gente, que estou descendo”.
O rapaz
fitou meio com agonia a cesta de doces, mas tudo o que conseguiu foi uma olhada
grosseira do vendedor com marcas de varíola; Aquele olhar resignava até o mais
duro dos homens.
Logo
quando desceu o mascate, uma parada depois, também desceram alguns engravatados
com pastas de couro nas mãos próximo ao Banco Central: Era o pessoal do funcionalismo
público, arrogante e presunçoso, embora também não tivesse onde cair
morto.
Faltavam umas duas estações para
a Rodoviária, e o rapaz se sentia cada vez mais fraco. O coração havia
disparado como se tivesse levado uma pancada no meio do peito, o suor escorria
pela sua camisa, tomando feições de uma tromba d’água e as pernas já não se
aguentavam mais em pé.
Numa das curvas, depois da parada
da Galeria dos Estados, no Setor de Autarquias o braço não segurou, e o jovem
se desprendeu na curva, caindo junto ao banco vazio... Felizmente ninguém viu
aquilo.
“Vamos, vamos, preciso chegar,
preciso chegar LOGO”, pensou consigo o rapaz.
Mas a sinaleira não ajudou em
nada e de quebra, o sedutor céu nublado tinha dado seus ares meio perversos naquela
proto-selva de pedra. Começou a chover fino no centro da capital, uma chuva tão
rala que nem merecia ser chamada de chuva, ainda assim isso não apagara a
situação de mal-estar que o rapaz presenciava.
Demorou-se enfadonhos cinco
minutos até a sinaleira abrir e o ônibus passar por cima do afamado Buraco de
Tatu, chegando assim na plataforma inferior da fedida e suja rodoviária da
capital. E isso não era hipérbole alguma, mesmo sendo uma das mais renomadas
obras de um famoso arquiteto, a Rodoviária era uma monstruosidade opulenta de
pobreza e gente. Nos seus boxes ainda se escondem mendigos e trombadinhas, à
espera do último níquel de algum desavisado, e a pedra branca tão suja
combinava tão bem com o concreto negro das calçadas mal cuidadas daquela construção.
“Vamos logo, vamos logo”, pensou
agora de forma categórica, a ansiedade o corroia por dentro, mais até que a
incomoda sensação de queimação que percorria-lhe no peito. De repente ele
começou a sentir que estava suando frio.
A lerdeza com que o ônibus se
movia só ajudava ainda mais o seu nervosismo, e para piorar, ele começou a ver
tudo distorcido, como se tivesse tomado algum psicotrópico que distorcera a sua
mente, mas não era nada disso.
Quando o ônibus parou, ele correu
para junto da porta que tão rapidamente saiu por ela quando se abriu. Tentou
correr, mas tinha muita gente na sua frente, naquelas imundas calçadas, então
foi cortar caminho pelo asfalto mesmo.
“Vamos logo, vamos logo, Anda.
Anda!”
Sentiu suas pernas ficarem bambas
e a garoa fina que caía sobre o seu rosto se afinava cada vez mais até que por
fim os seus olhos ficaram turvos e desabou no chão. Sim, ele caiu ali, aos
olhos de toda aquela gente que só pensou em seguir em frente, sem que ninguém o
ajudasse.
Caiu com o rosto virado para
cima, deixando gotejar sobre o seu olho o fino chuvisco do céu de Brasília, um
céu escuro e devasso, e olhando para longe, com um pequeno sorriso tentando
disfarçar a dor, imaginava ele uma menina, uma linda garota mesmo, até suas
vistas apagarem de vez.
“Cidadão! Cidadão! Você está bem?”
Gritava uma voz a qual não podia se distinguir, o garoto sequer sentiu ser
arrastado pelos policiais até a plataforma da rodoviária.
“Deve ter sido um ataque de
glicemia, talvez ele fosse diabético”... Talvez ele fosse.
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