quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Um conto sobre um soldado chamado Mikhail

          "Cuidado, cuidado; Metralhadora logo à frente"

          Setembro, 1917, Front Oriental

        "O que você está fazendo Ivan? Você enlouqueceu?"

        O estampido brutamontes entrou sem cerimônia no tímpano de Mikhail deixando-o zonzo em meio à trincheira, era mais um daqueles "espremedores de batata" alemães. Mikhail caiu no chão com tanta coisa explodindo ao seu arredor e acabou sujando a sua gimnaterska no chão de terra batida da trincheira.

     Ao seu lado gritava eufórico Ivan, brincando com um pedaço de perna de um morto, próximo ao falconete apontado para as posições alemãs: ""Marechal Ivan, preparar para apontar! — gesticulou com o membro decepado — FOGO!!!"

     BUM!BUM! Pode-se dizer que os alemães ouviram bem o que Ivan falava, embora não entendessem russo:

      — Mas que coisa infernal! Se não mantermos essa posição os alemães vão tomar essa colina, e se tomarem não estarão longe de Petrogrado! — Gritou o coronel.

      O coronel estava certo, os alemães com certeza iria passar daquela colina e não seria difícil eles chegarem na capital. Malditos tempos infernais... Foi quando Mikhail se levantou com o telegrafo de fronte nas mãos.

     — "O Telegráfo, camarada coronel"

     — "Camarada coronel", com quem você acha que está falando, seu infeliz? — olhou-o com repugnância aristocrática — Veja minha patente, como um camponesinho como você pode me chamar de camarada?  Devia mandá-lo fuzilar senão estivéssemos em tão maus lençóis!

      O coronel franziu o seu maxilar e girou a manivela que fazia funcionar o pequeno telegrafo: — Aqui é Krutkin. Nossa posição está sem amparo logístico nenhum, nós não temos mais rifles nem munição. Quais são suas ordens, senhor?

      "Minhas ordens são: RESISTIR! RESISTIR ATÉ O ÚLTIMO HOMEM! Nenhum passo para trás, não vamos perder essa colina!"

      — Nenhum passo para trás... Mas estamos sem rifles.

      "Você tem amor pela sua pátria, coronel? `Por sua mulher e por seus filhos?"
   
      — Sim, general.
       
      "Então cumprirá minhas ordens. Mandem colocar baionetas nos rifles e sorteie os rifles. Quem não tiver rifle segue o que tem, quando o que tiver morrer, aí pega o rifle"

     — O senhor está sugerindo um ataque suicida?

     "Estou sugerindo um ataque patriótico. Que esses paspalhos aprendam como são os russos de verdade!"

     — Certo, general
 
     "Boa sorte Krutkin"
   
      — Não há sorte na morte, senhor.

     Sombrio, o coronel desligou o telégrafo e gritou: "— Preparem os homens"

     Retirou a sua garrafinha de vodka do bolso e bebericou um bocado e o ofereceu ao operador de telegrafo: "— Tome, você também vai precisar, meu chapa". O operador bebeu um pouco e logo em seguida colocou a ushanka na cabeça.

     O coronel subiu para a borda da trincheira e retirou com uma linda Nagant prateada do bolso. Devia ter sido presente de alguém importante, porque ele beijou cerimonialmente o aço gelado do cano.

      O operador de telegrafo guardou o instrumento e conseguiu com muito custo um rifle Mosin Nagant de cinco balas, uma trambolho pesado e bastante incomodo:

     "Colocar baionetas!" — Gritou.

    "Colocar baionetas!"

     O coronel destravou o revolver e logo em seguida bebericou as últimas gotas de álcool que ainda permaneciam em sua garrafinha metálica, uma bela garrafa de bolso de prata que não fez questão ao jogar ela no chão de terra batida recheado de neve. Retirou a espada que tinha junto à cintura e gritou:

    "Quem pela espada vier a nós, pela espada perecerá. Assim é e sempre será enquanto nosso exercito marchar!"

      E saiu da trincheira com a espada gritando URA! URA! em direção à terra de ninguém...


     URA!!!!!!


      O operador de telegrafo seguiu logo atrás, junto com mais outros vinte homens, lado a lado em fila indiana, seguidos por mais outros, sobre o gargalhar das metralhadoras e os gritos histéricos das granadas que cavavam com força o campo de batalha.

      Muitos homens caíram no meio do ataque, alguns do lado do pobre rapaz, mas ele continuava a correr atirando as últimas balas de seu rifle contra os alemães, embora não tivesse mira de nada. Tinha perdido o coronel no meio daquela carnificina, tudo que tinha era a vontade de viver, e ferrar com a vida de um "alemão desgraçado".

       Os apelos revolucionários não eram nada naquela hora, a irmandade dos povos era totalmente esquecida. Tudo o que se tinha era amigo, russo, e inimigo, alemão. Era algo meio maniqueísta  mas no meio do campo de batalha era o que imperava.

     
         Quando estava prestes a entrar na trincheira alemã, com os oponentes gritando: "Achtung! Achtung! Russiches in der berg", tudo o que o simples operador de telegrafo quis fazer foi fatiar o bucho de um daqueles alemães sujos e maltrapilhos que eram parecidos com ele, estavam também sob comando e não queriam lutar essa guerra.

         O operador pensou nisso, sua mão tremeu e ele hesitou. Foi então que ele caiu, com uma bala de uma Walter de um oficial no peito, tremeu perante o "inimigo" erro capital.


       O céu antes tão acinzentado começou a ficar turvo, Mikhail passou a ver tudo com maior dificuldade.. Ali caído na terra de ninguém tudo o que sentia era frio, o frio da terra entrar em seu corpo e um fio gelado correr sobre o seu peito. Tremelicou um pouco, achou tudo aquele tão injusto. Ele era tão jovem, só tinha vinte e poucos anos e ia morrer daquele jeito, num campo de batalha, numa guerra que não era dele e sem ver a Revolução.


       Ouviu o brandir de uma balalaika no meio de todos aqueles tiros e sorriu, pensou no tio Afonya com o seu acordeon tocando no dia de São Nicolau no pequeno vilarejo que ele tinha nascido perto de Poltava... "Oh, meus campos, oh, vida injusta" E caiu ali no chão.


                                                        ...


        Quando acordou, pensou que fosse apenas um pesadelo. E era, ele não era um soldado chamado Mikhail e nem estava na Primeira Guerra. Era outra pessoa e estava na nossa época, dormindo confortavelmente em sua cama quente enquanto Mikhail adormecera para sempre naquele campo gelado de terra batida em algum lugar na Rússia.

       Sentiu pena do pobre Mikhail, embora ele próprio tivesse pensado no sonho ser Mikhail... Mikhail, o pequeno camponês da sua idade, magricelo e sujo que só sabia mexer naquele telégrafo  levado àquela guerra e que por uma infelicidade do destino tremeu ao tentar matar um semelhante e por isso morreu.

       Ele se sentiu como Mikhail, viu que a vida era injusta. Viu como o coronel relutou cumprir as ordens, embora também não fosse bonzinho. Viu o agora insano Ivan gritar com um pedaço de um braço nas mãos ordens para batalhões que não existiam.

       Foi então que o rapaz decidiu escrever, decidiu escrever o drama de Mikhail, desse rapaz, assim como os outros foram levados a uma guerra, e dela não voltaram e dos quais hoje não há mais nenhuma sombra, nenhum grão de pó.

   
   


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